Volume 1
Edição nº 11
2011
Seção:
EM PAUTA
Artigo 1

Abrigos poéticos

Ana Maria Rodriguez Costas


“[...] o corpo é o que multiplica a alma, lhe oferece uma geografia, uma geologia, uma topologia”. (José Gil)

Apresentação

Nesse artigo pretendo compartilhar algumas reflexões nascidas em um contínuo processo de pesquisa dedicado as relações entre a dança e as abordagens somáticas[1]. Tal investigação foi aprofundada e sistematizada em meu doutorado (2010), período em que ampliei o estudo dialogando com a poética da artista Lygia Clark[2](1920-1988).

Mais especificamente, intento abarcar aqui certas noções de corpo, espaço e tempo, que surgiram das fricções artístico-pedagógicas, num contexto específico, o Ateliê Somático em Dança, disciplina destinada a trabalhar com a ampliação de potenciais técnico-inventivos e expressivos, no trânsito de procedimentos somático-dançantes com alunos em fase inicial de um curso de graduação na área. Partindo de indagações sobre as relações entre sensação, percepção, expressão, criação e subjetividade, para dar corpo à ementa disciplinar foi concebido o projeto “Por que Lygia Clark?”[3]. Tendo como sujeitos o(s) corpo(s) e objetos relacionais o projeto desenvolveu-se através de proposições mirando a afetação dos sistemas sensoriais, de tal forma, a quebrar certas rotinas da percepção, favorecendo a experiência de novos circuitos sensório-motrizes, a mobilização do imaginário e a investigação de novos gestos (Godard, 2006a) pelos dançarinos.

Como etapa preparatória a improvisação e aos estudos coreográficos, sem a exigência de encontrar repertórios num diálogo com matrizes estéticas determinadas, nessa disciplina e no projeto que a conduziu, poderia dizer que o intento foi levar o artista-aprendiz a desenvolver o gosto pelo desconhecido em seu corpo, o prazer de viver um movimento do qual parece não haver rastro ou registro, e que poderia até ser intitulado pelo sujeito como algo “novo”, inédito em sua corporeidade. E, possibilitar a experiência de um espaço-tempo de acolhimento à oriência do ato dançante: pulsos, vibrações. Quase-qualidades, quase-gestos, quase-desenhos. Permitir-se ser e estar corpo movente, como um explorador-cartógrafo que mapeia um território embrenhando-se nos seus percursos e trajetos.

No percurso de uma pesquisa em dança quando formulamos procedimentos e conduzimos práticas corporais, tais formulações estão norteadas por e constituem-se como conceitos de corpo. Identificar e nomear tais conceitos, sem dúvida, é uma importante tarefa do artista-pesquisador envolvendo a revisão da produção de conhecimento de sua área e, muitas vezes, o diálogo com outras áreas.

Particularmente, um dos desafios em meu doutoramento, foi pensar qual seria (ou, quais seriam) o conceito norteador, ou melhor, dizendo, tradutor do corpo capaz de adentrar numa experiência somático-dançante com objetos relacionais reminiscentes da poética clarkiana. Problematizar essa questão encaminhou-me a refletir sobre quais seriam as condições ambientais para a gestação, alimentação e preservação desse corpo.

O corpo paradoxal

Segundo o filósofo português José Gil (2004), a fenomenologia desempenhou papel crucial ao considerar: “[...] o corpo percebido e o corpo vivido, em suma o corpo sensível, a “carne” de Husserl, de Merleau-Ponty e de Erwin Strauss” (p. 55-56). Tal imagem do corpo adquire extrema importância para coreógrafos e teóricos da dança, em especial na segunda metade do século XX, nos Estados Unidos, o que para ele, pode ser observado na obra da filósofa americana Suzanne Langer (1895-1985).

Assim como na dança, as abordagens somáticas forjadas desde o fim do século XIX serão adensadas, no século seguinte, nos seus diálogos com as demais descobertas e reflexões sobre o corpo, principalmente pelas correntes fenomenológicas[4]. Os pioneiros da educação somática encarnaram uma revolução na educação do corpo e do movimento: resgatar a perspectiva do sujeito ciente e crédulo de suas sensações e percepções, como participante fundamental da experiência pedagógica. Do ponto de vista epistemológico, a produção do conhecimento somático implicou, desde sua origem, em uma amálgama do inteligível e do sensível, o que se explicita: no objetivo último do conhecimento, que é a integração corpo-mente; no próprio ato do conhecimento que não tem objeto que não sejam sujeitos (não há separação entre sujeito-objeto); e no método em que as sensações, as percepções, as compreensões, as análises são um continuum sem fim. O ato de pesquisar impõe o viver o corpo em movimento.

Alguns dos estudos sobre as transformações nas práticas pedagógicas da dança na interlocução com o pensamento somático (GREEN, 1999; FORTIN, 2003) desenvolverão suas reflexões considerando as contribuições de Foucault (2005) com a noção de corpo dócil.

Na linhagem de Michel Foucault (1975), nós podemos dizer de fato que a prática da dança, como todas as outras práticas corporais, contribui para construir, desconstruir e reconstruir incessantemente o nosso corpo. Duas questões tornam-se importantes de saber: 1) que valores são suscetíveis de guiar essa construção e 2) que papel a pessoa é chamada a desempenhar nessa construção (FORTIN, 2003, p. 164).

Atuando em processos formativos de dançarinos e professores de dança – no que diz respeito, aos trânsitos da dança com as abordagens somáticas – coordenei disciplinas com dois propósitos distintos e inter-relacionados, mobilizando saberes, competências e questionamentos específicos no trabalho de docência e, consequentemente, implicando em diferentes chamados para o (também literalmente) corpo discente.

Um desses propósitos diz respeito ao convite realizado ao estudante de dança a percorrer um processo de cunho somático, de consciência corporal voltado à reestruturação do corpo, à reeducação do movimento, com base em experiências sensório-motoras. Nesse caso, são ofertadas práticas de sensibilização destinadas ao despertar para os sentidos e à sua relação com o movimento; práticas de percepção dos diferentes sistemas do corpo e sua integração no movimento; práticas de percepção do outro e do entorno. Esse trabalho também pode estar presente em disciplinas técnicas de dança, porém, com trânsito de outra natureza, orientado para o ensino-aprendizado de códigos e sistemas complexos de movimento.

Do ponto de vista da docência, percebo nessa esfera de atuação a mobilização de toda uma experiência acumulada nas práticas terapêuticas e pedagógicas com leigos, nos anos que antecederam minha entrada em um curso para a formação de profissionais da dança. A iniciação de processos exige o olhar atento, cuidadoso frente ao despertar da percepção e consciência do próprio corpo. Um estar junto de um processo delicado e comovente: fazer-se testemunha da descoberta de um sujeito, de uma subjetividade no corpo que dança. Uma verdadeira quebra de paradigma: romper com a docilidade do corpo (FOUCAULT, 2005), ditada por modelos de corpo e movimento, para adentrar no corpo próprio, no corpo vivido (MERLEAU-PONTY, 1994) por meio de experiências.

O outro propósito seria aquele que norteou a disciplina Ateliê Somático em Dança, dirigido a possibilidade de o estudante adentrar nas abordagens somáticas para conhecer suas contribuições aos estudos criativos e expressivos da dança. Nessa esfera de atuação, apoio-me na experiência acumulada com processos artísticos vivenciados em especial, em meu percurso de formação com coreógrafo e pesquisador Klauss Vianna, para quem o “[...] material que cada bailarino tem para desenvolver como dança residiria em seu próprio corpo; o ponto de partida seriam as próprias sensações [...] (COSTAS, 2008, p. 64).

Como diria a historiadora francesa Annie Suquet (2008), ao considerar as contribuições de Rudolf Laban, tais sensações estariam impressas na “memória da matéria” (p. 525). E, para viabilizar tal acesso, no viés somático-dançante de Vianna,

[...] o dançarino deveria fazer um treinamento, priorizando a habilidade de observar essas sensações e mensagens inscritas no corpo, explorando-as expressivamente; tal treinamento estaria fundado num profundo processo de reestruturação corporal para que o dançarino não se encontrasse limitado por suas tensões crônicas, podendo, assim, estabelecer um diálogo de sua individualidade com a universalidade (COSTAS, 2008, p. 64).

Perscrutar uma investigação da interioridade do corpo, compreendida como lugar no qual a subjetividade está encarnada na fisicalidade. Sob tal premissa de investigação, nas atividades de um ateliê de criação, preciso estar preparada para adentrar com os estudantes em uma zona de risco de experiências artísticas propriamente ditas. O risco é inerente ao mergulho no corpo que deseja ir além de si mesmo. O foco já não é apenas cuidar para adequar os esforços e empreender gestos com a energia necessária. Trata-se aqui de ir mais além: modular o tônus como matéria expressiva da dança. Descobrir os ossos e seus alinhamentos também já não basta. O reconhecimento dessas estruturas, a capacidade de mobilizá-las agora serve à procura de formas e mais formas do gesto. Os sistemas corporais visitados e solicitados pela percepção podem agora gerar a ocorrência de estados, qualidades de estar no próprio corpo. Trata-se de investigar forças e fluxos de movimento que atravessam a interioridade do corpo, encaminhamento que se exacerba no diálogo com os objetos relacionais oriundos da poética clarkiana.

As diferentes fases e proposições, assim como as falas de Lygia Clark, merecem atenção nas suas elaborações poético-conceituais do fenômeno corpo: “[...] a leitura dos textos de Lygia Clark é uma experiência transtornadora.” (LOUPPE, 2006, p. 33). Em um de seus textos, “Breviário sobre o corpo”, a artista fala de sua filiação, num devir-animal: “Sou da família dos batráquios; através da barriga, vísceras e mãos me veio toda a percepção do mundo” (CLARK apud LOUPPE, 2006, p. 33). Não apenas as mãos por meio do tato, mas o chamado sistema neurovegetativo – o visceral – aparece aqui como canal sensorial para perceber os estímulos do mundo. A artista sugere a existência de uma dinamogenia[5] de zonas do seu corpo, sem hierarquias ou determinações lógicas, no que diz respeito às suas funções.

De certa forma, torna-se inevitável não pensar no corpo sem órgãos, pensado por Deleuze:

[…] não faltam órgãos ao corpo sem órgãos, falta-lhe apenas organismo, quer dizer, organização dos órgãos. O corpo sem órgão se define, portanto, como um órgão indeterminado, enquanto o organismo se define como órgãos determinados [...] (2007, p. 54).

A filósofa, bailarina e educadora somática Letícia Teixeira (1998) sugere que os conceitos de corpo vivido de Merleau Ponty, o corpo dócil de Foucault e o corpo sem órgãos de Deleuze são três noções fundamentais para as reflexões daqueles que trabalham práticas corporais relativas às abordagens somáticas. É possível constatar que os três conceitos apontados edificam e articulam-se, assim como, permitem refletir sobre os trânsitos da dança com as abordagens somáticas. Tais abordagens, ao investirem no corpo próprio vivido e percebido, colaboram para que aprendizados complexos (das diferentes técnicas de dança) possam ocorrer em uma perspectiva não mecanicista; o dançarino, trabalhando na esfera do “saber-sentir”[6], apropria-se ao invés de ser apropriado como corpo-objeto ou corpo dócil. Quando o foco está orientado para a criação (em minha pesquisa, imbricada com a poética clarkiana), o corpo sem órgãos torna-se quase necessário, pois esse profundo conhecimento relativo à integração, organização ou reeducação corporal precisa estar à disposição da arte do dançarino, que 

[...] consiste assim em construir um máximo de instabilidade, em desarticular as articulações, em segmentar os movimentos, em separar os membros e os órgãos a fim de poder reconstruir um sistema de equilíbrio, infinitamente delicado – uma espécie de caixa de ressonância ou de amplificador dos movimentos microscópicos do corpo: esses, nomeadamente cinestésicos, sobre os quais a consciência não pode ter controle a não ser concentrando-se neles. Então, o corpo solta-se e a consciência do corpo torna-se um espaço interior percorrido por movimentos que refletem, à escala macroscópica, os movimentos sutis que atravessam os órgãos (GIL, 2004, p. 23).

Em um artigo, sugestivamente intitulado “Lygia Clark não pára de atravessar nossos corpos”, Louppe (2006) aborda as congruências dos pensamentos dessa artista com o de alguns dos “grandes inventores de pensamento do movimento” (p.33), nesse caso, educadores somáticos e artistas da dança. Constata com surpresa em Lygia Clark aquilo que considera os três usos do corpo na dança: 1) (corpo poesia) o corpo instrumentarium simbólico com potenciais a serem colocados em circulação; 2) (corpo saber) o corpo objeto de conhecimento, de exploração, para se conhecer o que pode o corpo; 3) (corpo terapia) e, por conseguinte, corpo que pode conhecer suas debilidades físicas e psíquicas, labirintos de intranquilidade (p. 33). Tais níveis se encontrariam hoje visitados pelos bailarinos contemporâneos.

Haveria um conceito de corpo capaz de abrigar a complexidade, as sobreposições e os entrecruzamentos, as convergências e as divergências de tais noções histórico-filosóficas, dançantes, somáticas, clarkianas – no ato e na criação dançante?

Refletindo sobre a dança, Gil (2004) formula a noção decorpo paradoxal:

Consideremos aqui o corpo já não como um fenômeno, um percebido concreto, visível, evoluindo no espaço cartesiano objetivo, mas como um corpo metafenômeno, visível e virtual ao mesmo tempo, feixe de forças e transformados de espaço e de tempo, emissor de signos e trans-semiótico, comportando um interior ao mesmo tempo orgânico e pronto a dissolver-se ao subir à superfície. Um corpo habitado por, e habitando outros corpos e outros espíritos, e existindo ao mesmo tempo na abertura permanente ao mundo por intermédio da linguagem e do contato sensível, e no recolhimento da sua singularidade, através do silêncio e da não inscrição. Um corpo que se abre e se fecha, que se conecta sem cessar com outros corpos e outros elementos, um corpo que pode ser desertado, esvaziado, roubado da sua alma e pode ser atravessado pelos fluxos mais exuberantes da vida. Um corpo humano porque pode devir animal, devir mineral, vegetal, devir atmosfera, buraco, oceano, devir puro movimento. Em suma, um corpo paradoxal (p. 56).

Após um percurso de instabilidade e inquietude, considerei que tal noção abarcaria de forma geral o conceito norteador do corpo nas práticas de minha pesquisa. Contudo, tais práticas revelam especificidades e seguiram exigindo a invenção e reinvenção (ressignificação) de palavras que dessem conta de nominar outros conceitos, por exemplo, relativos ao habitat desse corpo.

A experiência como habitat

O termo habitat segundo a rubrica da ecologia, pode ser compreendido como um conjunto de circunstâncias físicas e geográficas capaz de oferecer condições favoráveis à vida e ao desenvolvimento de uma determinada espécie, seja ela, animal ou vegetal (HOUAISS, VILLAR, 2001). Define-se ainda como um ambiente caracterizado por um conjunto de condições bióticas e abióticas[7]em permanente relação sistêmica. Para a antropogeografia, o habitat indica a ocorrência de um conjunto de condições de organização e povoamento pelo homem do meio em que vive ou habita (HOUAISS, VILLAR, 2001). E, por extensão de sentido, é um local onde alguém pode se sentir em seu ambiente ideal.

A identificação de um conceito tradutor de potências que buscava trabalhar com meus alunos veio acompanhada da reflexão sobre como se configura o contexto artístico-pedagógico, nesse caso, relativo a um trânsito interdisciplinar (dança, educação somática e artes visuais), capaz de abrigar um corpo paradoxal. Ou, melhor dizendo, como configurar um habitat favorável à vida desse corpo?

Impactada pela leitura de alguns textos de Bondía[8](2002, 2009), tomei consciência da importância de revisitar o conceito de experiência, talvez, tão óbvio nas áreas de conhecimento em que me encontro envolvida, e, por outro lado, tão desgastado na educação e tão inoperante na atualidade da vida cotidiana.

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (BONDÍA, 2002, p. 24, grifo meu).

Costumo pensar e conversar com meus alunos sobre o privilégio de, tanto eu, professora, como eles, na atual situação social de interdição da experiência, permanecer algumas horas do dia prestando atenção no corpo, percebendo sensações, investigando movimentos, dialogando com o outro, sentindo o grupo, o espaço, o tempo. Sem nenhum romantismo, pois tenho profunda consciência de todas as adversidades da profissão na área educacional e artística. Mas é interessante considerar que, talvez, o que as pessoas estrangeiras às áreas das artes do corpo queiram dizer para nós quando comentam “como deve ser bom trabalhar com a dança, com o corpo” seja exatamente isso: como gostariam de, em seu cotidiano, habitar espaços e tempos mais destinados a experiências. Apesar de, não se tratar de algo exclusivo às práticas artísticas e corporais constituir tais possibilidades, a noção de experiência, conforme conceituada por Bondía (2002) está no cerne das pedagogias somáticas, de certas pedagogias da dança contemporânea, assim como, das proposições de Lygia Clark.

Ao discorrer sobre a noção de experiência, Bondía (2002) considera quem seriam os sujeitos da experiência: “o sujeito da experiência é sobretudo um espaço onde têm lugar os acontecimentos” (p.24). Ou seja, para a experiência configurar-se como um habitat não apenas devem ser oferecidas condições para os sujeitos nela se alimentarem e se sentirem num lugar favorável e ou ideal para sua existência, mas também, os sujeitos deverão se disponibilizar para configurar o ambiente, o habitat, a experiência, no próprio corpo.

Assim sendo, o sujeito da experiência “[...] se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura” (BONDÍA, 2002, p. 24). Podemos viver uma experiência. Então, o habitat da experiência é em primeiro lugar o próprio sujeito, aquele que se “ex-põe”, sujeito “ex-posto” (p. 25) a experiência.

Por isso é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se “ex-põe”. É incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre (BONDÍA, 2002, p. 25).

A exposição não está exatamente vinculada a uma ação externa, dirigida para fazer algo no mundo, mas aparece, aqui, vinculada a uma capacidade de permitir que aquilo que acontece no mundo (as condições bióticas, por exemplo) possa ser sentido.

Não um sujeito que permanece sempre em pé, ereto, erguido e seguro de si mesmo; não um sujeito que alcança aquilo que se propõe ou que se apodera daquilo que quer; não um sujeito definido por seus sucessos ou por seus poderes, mas um sujeito que perde seus poderes precisamente porque aquilo de que faz experiência dele se apodera (BONDÍA, 2002, p. 25).

A ideia de um sujeito da experiência “[...] sofredor, padecente, receptivo, aceitante, interpelado, submetido” (BONDÍA, 2002, p. 25) de início, pensando no processo educacional do corpo dançante, pode sugerir um retrocesso à ideia de um corpo-objeto. Mas, somos levados a redimensionar tal interpretação quando Bondía (2002) fala do sujeito incapacitado a viver uma experiência como “um sujeito firme, forte, impávido, inatingível, erguido, anestesiado, apático, autodeterminado, definido por seu saber, por seu poder e por sua vontade (p. 25).

A imagem do corpo em pé (erguido) opõe-se ao corpo que se expõe a uma experiência (de si), deitado nas sessões de Estruturação do Self de Lygia Clark, nas experiências somático-dançantes, entregando-se à gravidade, à passividade, ao descanso, a não ação em oposição à firmeza, à afirmação, sempre, pela ação (informação, opinião, vontade).

Anestesia e apatia não são sinônimos de entrega, de receptividade, de aceitação, de submissão à experiência. Seja nas proposições de Clark ou nas práticas somático-dançantes, quando alguém se expõe a ser estimulado por um objeto, ou ao contato em movimento com um parceiro, à percepção das sensações, o que está em foco é a estesia relativa aos sentidos (sentir) e a patia, da origem grega pathos, que quer dizer paixão, que se refere a tudo o que pode ser vivenciado como algo novo, ao padecer frente a um acontecimento, algo relativo à mobilidade e à imperfeição.

Além de considerar o que seria a experiência e quem seriam os sujeitos da experiência, partindo de um detalhado estudo etimológico do termo, Bondía (2002) considera o “[...] que nos ensina a experiência” (p. 25). Do latim, experiri, provar (experimentar). Periri, radical que se encontra em periculum, perigo. Mas também, diz ele, per se relaciona à ideia de travessia e, consequentemente, de prova. Em grego, Bondía (2002) irá confirmar que derivam da raiz per inúmeras palavras que remetem à passagem, à travessia, a ir até o fim, ao limite. Daí irá dizer:

O sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasião. A palavra experiência tem o ex de exterior, de estrangeiro, de exílio, de estranho e também o ex de existência. A experiência é a passagem da existência, a passagem de um ser que não tem essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente “ex-iste” de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente (p. 25).

A dinâmica da experiência, como na construção de uma fita de Moebius na obra “Caminhando”[9]de Lygia Clark, implica em um movimento dentro-fora. O contato com o mundo exterior (a viagem, a travessia, o estranhar-se) reforça e é ao mesmo tempo possível, porque existe alguém, um singular, com contorno: um dentro, portanto. Mas, estranhar ou estranhar-se (resgatando o meu interesse em questões relativas às quebras de rotina da percepção) significa que houve um movimento rumo ao diverso, ao diferente, àquilo que não conhecemos, de nós mesmos e do mundo.

Quando me referi ao contexto artístico-pedagógico capaz de abrigar o corpo paradoxal, estava pensando sobre tais dimensões. Mas, como levar em conta a construção de um ambiente que comporte os riscos implícitos aos mergulhos nas camadas profundas do corpo, de onde emerge a expressividade, aos processos de exposição de si e ao outro, ao estar junto, à procura de um novo gesto, em um coletivo?

O corpo-continente: alguns cuidados no habitar

Em geral, as pedagogias somáticas, preocupam-se em não apresentar a noção de um corpo como referência, um corpo ideal a ser seguido. Isso na verdade é um princípio: conhecer o corpo significa sentir e perceber o próprio corpo, e não buscar um modelo em outro corpo. Nesse sentido, diante de uma indicação para que um aluno perceba como estão seus apoios no chão, não existe o certo ou errado, mas, sim, a observação de como aquele aluno está se dedicando àquela investigação, pois quem poderá falar sobre as sensações do contato com o chão será apenas o aluno.

Como a finalidade da educação somática, em si, é em última instância oferecer uma melhoria na qualidade de existência corporal do sujeito, talvez seja muito compreensível um contexto de ensino pelo qual não aconteçam grandes conflitos quanto à ideia de expor-se; cada um está aprendendo a cuidar de si, para (melhor) estar com o outro.

A ideia do estar exposto, diferentemente dos contextos educacionais somáticos, diz respeito à essência do fazer das artes cênicas do corpo: o “se dar a ver” ao público.  Levar em conta essa questão é um dos aspectos que considero fundamentais aos contextos de ensino da dança, em que existe uma expectativa do estudo da expressividade e da criatividade, nos moldes que venho expondo.

A emergência do gesto desconhecido, de qualidades expressivas que desconheço em minha dança, é por vezes frágil e pouco lapidada. É necessária a criação de um ambiente de receptividade, de escuta, de disponibilidade, de aceitação, de submissão ao que não conheço em mim, mas, fundamentalmente, ao que irei conhecer no/do outro.

Uma das obras-acontecimento[10]de Lygia Clark, de 1969, é um pedaço de plástico com sacos cosidos nas extremidades. Para os participantes, que poderiam pelo material realizar diferentes experimentações individualmente ou com outras pessoas, “[...] o tocar se exerce sobre os próprios corpos” (CLARK, 1980, p. 36). O número de pessoas pode variar como células que se multiplicam. Para ela, em tal proposição, “[...] o homem, através de sua expressão gesticular, constrói um sistema biológico que é um verdadeiro tecido celular” (CLARK, 1980, p. 36). O gesto inaugura uma arquitetura viva (espaço), biológica, a qual, terminada a experiência, se dissolve. Podemos pensar em uma arquitetura sensível, na qual os gestos tornam-se como que abrigos poéticos “[...] onde o habitar equivale a comunicar” (CLARK, 1980, p. 36). Sobre tal ideia de habitar, a concepção da artista remete à noção de que o próprio ato constitui sentido e forma a um espaço-objeto – folha de plástico – por meio de comunicações táteis. O sentido dessa experimentação seria então fruto da soma dos sentidos atribuídos pelo próprio coletivo, e poderia ser vivida em qualquer lugar: parques, ruas, em nossa própria casa.

Tendo como matriz a noção de corpo paradoxal de Gil (2004), a noção da experiência como habitat e inspirada profundamente pela noção de abrigo poético[11] presente na proposição de Lygia Clark, procurei nomear alguns saberes – cuidados, talvez – que desejo ensinar a aprender e aprender a ensinar, aos meus alunos, futuros artistas-professores de dança.

Um corpo-continente[12]. Trabalhar nessa dimensão surge da necessidade de oferecer contorno, apoio, referências para que ele (o aluno) possa, paradoxalmente, estar exposto à experiência, ou seja, em risco. Do ponto de vista pedagógico, implica na construção de um ambiente seguro para o aluno habitar seu próprio corpo e adentrar (talvez) em camadas mais vertiginosas, como, por exemplo, a experiência de se sentir muito diferente do que habitualmente se sente. Minha prática artístico-pedagógica transcorre em uma grande metrópole, a cidade de São Paulo; as pessoas – os alunos – estão expostas a um duro cotidiano e, por vezes, estão muito afetados, negativamente, na sua subjetividade. Procuro respeitar os momentos e as possibilidades de cada aluno, e também desenvolver neles a noção de respeito a si mesmos, dando elementos que favoreçam a diferenciação entre os desafios possíveis a serem enfrentados (inerentes às práticas artísticas profissionais) e os que não precisam ser enfrentados, a não ser em um âmbito mais pessoal, ou melhor, em outro contexto, por exemplo, de trabalho terapêutico. Dar continência a si, ao outro, ao que consigo, ao que não consigo, ao que fizemos e ao que não fizemos. Ao que somos e não somos. Esses pensamentos ecoam fundamentos das pedagogias somáticas, mas também estão presente nas inúmeras falas de Lygia Clark, quando ela se recolhe em seu apartamento e se interessa por cada um dos sujeitos que recebe, acolhendo-os na tentativa máxima de fazer da sua arte a possibilidade de o outro ser criativo.

Sobre a pesquisa aqui relatada, entendo que a subjetividade e as condições para a emergência do criativo, em uma etapa inicial da formação do dançarino, dizem respeito substancialmente a esse corpo-continente. Nessa direção, Godard (2006b) sugere uma reflexão que considero pertinente sobre a responsabilidade do propositor, mediador, orientador da experiência, nesse caso, relativa ao corpo paradoxal:

Os detalhes da informação proprioceptiva, a sensação de um eu de carne e osso que está lidando com seu contexto é a chave que empresta significado para a emergência do movimento corporal e, consequentemente, para o estabelecimento de uma identidade. É aqui que podemos mensurar a fragilidade de qualquer ação educacional. A consciência das escolhas que fazemos na tribulação das sensações que emergem envolve não apenas a progressão material de movimento corporal, mas também, em segundo plano, da nossa posição em relação aos outros e a segurança de um eu constante, apesar do fato que o próximo movimento é ainda desconhecido (GODARD, 2006b, p. XI, grifo do autor, tradução minha).

A experiência é o habitat do corpo paradoxal. Esse habitat é ao mesmo tempo o corpo, como sujeito da experiência, e o ambiente (espaço-tempo), onde se processam os aprendizados, as experiências. A dimensão paradoxal da experiência pode ser expressa, por exemplo, na sensação de estranhamento que para tanto pressupõe a sensação de reconhecimento (de si, do próprio corpo) por parte do sujeito da experiência. Daí, paradoxalmente, a noção do corpo-continente acompanhar o risco, a exposição, a viagem, a deriva do corpo na experiência dançante.


Ana Maria Rodriguez Costas Artista da dança, educadora somática, Socióloga (FFLCH/USP), mestre em Artes (IA/UNICAMP) e doutora em Educação (FE/UNICAMP). É professora titular do Curso de Dança da Universidade Anhembi Morumbi. Presta consultorias a projetos de formação profissional e educação continuada para artistas e professores de dança.


Notas
  1. São inúmeros os métodos e as escolas que compreendem a educação somática, dentre os quais destaco: a Alexander Technique de Mathias Alexander (1869-1955); a Eutonia de Gerda Alexander; o Método Feldenkrais de Moshe Feldenkrais (1904-1984); a Ginástica Holística de Elsa Gindler (1885-1961) e Lily Ehrenfried (1896-1994); a Bartenieff Fundamentals de Imgard Bartenieff (1890-1981); a Ideokinesis de Mabel Elsworth Todd (1880-1956) e Lulu Sweigard (1895-1974); o Rolfing de Ida Rolf (1896-1979); o Body-Mind Centering de Bonnie Bainbridge Cohen (1943-); e, no Brasil, a pesquisa de Klauss Vianna (1928-1992) e sua parceira Angel Vianna (1928-). Cada uma dessas vertentes apresenta singularidades quanto aos seus fundamentos, princípios, objetivos e procedimentos. A escolha do termo abordagens somáticas, além de revelar tal diversidade, evidencia que o caráter de minhas investigações não se refere exatamente a aplicação de um método específico, mas, essencialmente, a uma maneira somática de abordar o corpo dançante.^

  2. Nascida em Belo Horizonte, Lygia Clark inicialmente percorreu uma trajetória como pintora e escultora. Foi signatária do manifesto Neoconcreto em 1959 e, já na década seguinte, com a série Bichos, realiza construções metálicas geométricas articuladas por meio de dobradiças que requerem a coparticipação do espectador. A partir dos anos 1960, dirige-se à poética do corpo, formulando proposições sensoriais. Esse período é demarcado por diferentes fases de experimentações as quais desembocam na Estruturação do Self, última etapa de investigação artística e terapêutica. Clark desenvolveu parte de sua obra com seus alunos de arte na Sorbonne, em Paris, onde atuou e residiu entre 1970 e 1976. Retornou para o Brasil nesse ano, dedicando-se então ao estudo das possibilidades terapêuticas da arte sensorial e dos objetos relacionais. ^
  3. No período de 2007 a 2010 coordenei quatro vezes a realização do projeto “Por que Lygia Clark?”, como docente responsável pela disciplina Ateliê Somático em Dança o que constituiu-se como campo da pesquisa do meu doutoramento.^
  4. É o caso da eutonista Vishnivetz (1995), que trata de evidenciar alguns dos fundamentos da Eutonia fundada por Gerda Alexander (1904-1994), considerando os conceitos de consciência, atenção, awereness/alerta, intenção, experiência e self. No percurso dessa teorização, a autora procura considerar a conexão da Eutonia com os pensamentos de Willian James (1842-1910), Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) e Donald Winnicott (1896-1971) que, segundo ela, apesar de suas diferentes perspectivas teóricas e área de atuação, têm em comum a ideia da experiência corporal como questão fundamental no processo de vida de cada pessoa (VISHNIVETZ, 1995, p. 171).^
  5. O fenômeno da dinamogenia ou dinamogênese, do ponto de vista da fisiologia, diz respeito ao aumento de energia ou superativação da função de um órgão devido a uma excitação de qualquer natureza. ^
  6. Segundo Suquet (2008), em plena década de 1910, o coreógrafo e estudioso do movimento Rudolf Laban já preconizava o afinamento da percepção – o “saber-sentir” (LAUNAY apud SUQUET, 2008, p. 525) – como algo fundamental, como um saber da dança a ser desenvolvido pelos dançarinos. E, como a autora ressalta, não apenas um saber de si, interno, do próprio corpo, mas desse em interação com o mundo e suas configurações. ^
  7. As condições bióticas referem-se às influências que os seres vivos recebem em um ecossistema, derivadas de aspectos físicos, químicos, bioquímicos. As condições abióticas dizem respeito aos efeitos da atividade dos seres vivos no ecossistema.^
  8. Jorge Larrosa Bondía é doutor em Filosofia da Educação e atua como professor da Universidade de Barcelona.^
  9. Em um de seus textos, escrito em 1965, Clark (1980), fala de uma de suas primeiras obras-ato, a proposição “Caminhando”. Sugere que o leitor, ele mesmo, faça a experiência de construir seu “Caminhando”: basta pegar uma tira de papel − por exemplo, aquela que envolve um livro para protegê-lo de sucessivas aberturas desnecessárias −, cortá-la no sentido da sua largura e colar as duas pontas, construindo uma fita de Moebius. A proposição é, com o auxílio de uma tesoura, seguir um caminho, recortando-a no sentido de seu comprimento, evitando encontrar com o primeiro ponto de corte, o que dividiria a fita em duas partes iguais; basta escolher que direção tomar, esquerda ou direita, ao se deparar com o ponto inicial. Após detalhar toda a descrição, ela comenta: “Se eu utilizo uma fita de Moebius para esta experiência é porque ela contrasta com nossos hábitos espaciais: direita – esquerda; avesso – direito etc. Ela nos faz viver a experiência de um tempo sem limite e de um espaço contínuo” (CLARK, 1980, p. 25-26). ^
  10. Tal proposição foi denominada “Arquiteturas biológicas” e integra a fase intitulada “O corpo é a casa”. ^
  11. “Abrigos poéticos” tornou-se o nome de um grupo de estudos que desenvolvo com alunos e ex-alunos do Curso de Dança da Universidade Anhembi Morumbi a partir do projeto “Por que Lygia Clark?”.^
  12. Além desse conceito outros três foram nomeados e discutidos em meu doutorado, a saber: corpo-sensível, corpo-plástico e corpo-dialógico (COSTAS, 2010).^

Referências Bibliográficas

Outros links úteis

Sites de técnicas que compreendem a educação somática em ordem de citação/nota de rodapé n. 1)

Alexander Technique

Eutonia

Método Feldenkrais

Ginástica Holística

Body Movement, livro de Irmgard Bartenieff

Ideokinesis

Rolfing

Body-Mind Centering

Klauss Vianna

 

Sobre Lygia Clark

Lygia Clark, website sobre a artista

Estruturação do Self e os componentes da singularização

Neoconcretismo, breve definição pela Enciclopédia Itaú Cultural

Outros

Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia, de Gilles Deleuze, Gilles e Félix Guattari, Resenha do Prof. Ovídio Abreu Filho da UFF.

Movimento Total – o corpo e a dança, livro de José Gil

 “O corpo vivido na dança: possibilidade de re-significação da corporeidade na escola.”, artigo de Larise Piccinini e Maria do Carmo de Oliveira Saraiva.

Os dispositivos de poder e o corpo em Vigiar e Punir, artigo de Saly da Silva Wellausen





Data de Recebimento:
15 de outubro de 2011
Data de Aceite:
30 de novembro de 2011
Data de Publicação:
25 de dezembro de 2011