Volume 1
Edição nº 11
2011
Seção:
EM PAUTAS
Artigo 7

A NOÇÃO DE EMBODIMENT E QUESTÕES SOBRE ATUAÇÃO

Elisa Belém


A discussão sobre o termo inglês embodiment apresentada por Fischer-Litche pode contribuir para uma reflexão a respeito das palavras representação, interpretação e atuação. No Brasil, representar e interpretar são palavras usadas algumas vezes como opostas. O termo atuação, por sua vez, é tomado como mais abrangente. Por outro lado, há considerações a respeito da não-atuação. Neste artigo pretendo mostrar, através da noção de embodiment,que a atuação e a não-atuação podem ser analisadas a partir de um modelo de retroalimentação.

O termo embodiment não tem uma tradução exata para o português, aparecendo na literatura teatral como “incorporação” ou “encarnação” - termos que caíram em desuso. A palavra embodiment se refere a tornar algo físico ou corporificar.

Entre nós, uma discussão próxima a aquelas a respeito da noção de embodiment caracteriza o trabalho de um importante grupo teatral, o LUME – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais. O grupo LUME surgiu em 1985, a partir do trabalho do ator Luís Otávio Burnier que propôs pesquisar a arte de ator. Obtendo apoio institucional da UNICAMP, Burnier iniciou uma pesquisa sobre o treinamento para o ator desenvolvendo práticas com Carlos Roberto Simioni que informa:

Foi nesses dois anos (1985 a 1987) que surgiu toda a linha de pesquisa. Principalmente a ideia do Burnier: estudar a arte do ator no sentido não interpretativo. Ele acreditava que já havia bastantes estudos nesse sentido. Encontrar uma maneira do corpo representar, de representar pelo corpo. Então nós ficamos três anos, apenas eu e o Burnier, e depois entrou o Ric (Ricardo Puccetti). E já nesses primeiros dois anos criou-se o Laboratório Unicamp de Movimento e Expressão – L.U.M.E. (Simioni. In: FOSSALUZA, 1999, p. 109)

O grupo se consolidou ao longo dos anos por uma profunda pesquisa prática em torno da sistematização de treinamentos e também investigando a criação. O LUME estabeleceu relações com outros grupos da América Latina e da Europa, principalmente aqueles ligados à Antropologia Teatral, que tem Eugênio Barba como uma referência.  Na tese de Doutorado do ator Luís Otávio Burnier há uma discussão sobre o binômio representar e interpretar. Logo nas primeiras páginas, Burnier afirma que sua abordagem da arte do ator será pelo viés da representação. Esclarece também que as palavras representação e interpretação são usadas por ele não em seus sentidos filosóficos, linguísticos ou semióticos, mas sim, no sentido teatral:

Em seu sentido próprio, interpretar quer dizer traduzir, e representar significa “estar no lugar de” (o chefe de gabinete que representa o prefeito), mas também pode significar o encontro de um equivalente. Assim, quando um ator interpreta um personagem, ele está realizando a tradução de uma linguagem literária para a cênica; quando ele representa, está encontrando um equivalente. (BURNIER, 2001, p. 21) (grifo original)

Em seguida, Burnier expõe ideias de Etienne Decroux, com quem se formou em Mímica Corporal Dramática numa relação de mestre-aprendiz. É exposto que Decroux defendia que o ator deveria encontrar um equivalente, que corresponde a “dar a ideia da coisa por uma outra coisa” (BURNIER, 2001, p. 21). A continuidade da explicação anuncia que não é função do ator oferecer uma leitura, traduzir, mas representar. A noção do ator como intérprete é associada por Burnier tanto à literatura dramática, quanto à intermediação do mundo ficcional da peça através da personagem em relação ao espectador. Essa ideia é refutada por ele em prol da defesa de que o espectador é o verdadeiro intérprete da personagem apresentada pelo ator. A noção de interpretação é associada por outra via, de acordo com Burnier, à “questão da identificação (de idem = o mesmo) psíquica e emotiva do ator com o personagem” (BURNIER, 2001, p. 23). Em contraposição ao termo interpretação, Burnier propõe representação:

O ator que não interpreta, mas representa, não busca um personagem já existente, ele constrói um equivalente, por meio de suas ações físicas. Essa diferença é fundamental. Se pensarmos no sentido da palavra representar, o ator ao representar não é outra pessoa, mas a representa. (BURNIER, 2001, p. 23)

Burnier destaca ainda que, na sua visão, a noção de representação no teatro tem também a significação de re-apresentar, e justifica seu argumento a partir da visão de Eugênio Barba e de Decroux em torno do corpo do ator que cria algo ou induz o espectador a criar algo entre eles.

Renato Ferracini, ator do grupo e hoje seu coordenador institucional, apresentou uma comunicação[1] em 2008, afirmando que essa discussão deve ser atualizada. Para Ferracini, a suposta diferenciação entre os termos apresentada por Burnier servia ao propósito de destacar o trabalho de criação do LUME a partir de composições de ações físicas do ator de forma independente de um texto teatral. Nessa via de criação, a palavra “representação”, para Burnier, apresentava-se mais significativa e clara do que “interpretação”, que sugeria como ponto de partida um texto escrito, além de uma construção da personagem pela via psicológica. Ferracini aponta que essa separação de territórios - aquele de composições a partir da ação física e o outro, textocêntrico - se arrefeceu na contemporaneidade. Sendo assim, o autor propõe o uso do termo atuação como mais abrangente, podendo incluir o que Burnier entendia por interpretação e por representação:

Podemos pensar em atuação. O ator, e mesmo o dançarino e o performador, todos eles, atuam. Atuam enquanto ação de atuar, de modificar, de possibilitar. O ator atua COM sua interpretação ou representação assim como o dançarino atua COM sua dança e o performador atua COM sua performance. Atua, age, afeta um espaço-tempo constantemente recriado gerando principalmente, além de percepções macroscópicas musculares e de movimento, sensações microscópicas afetivas. (FERRACINI, 2008, p.3)

Essa discussão como um todo aponta para as reflexões apresentadas pela teórica Erika Fischer-Litche, que mostra modificações processuais na noção de embodiment no teatro europeu. No século XVIII, o ator deveria tornar seu corpo hábil para apresentar estados psíquicos, emoções e pensamentos que caracterizavam a personagem dramática. O ator deveria ter a habilidade de produzir signos com seu corpo a serem decodificados pelo espectador como a um texto. Para isso, a individualidade do corpo do ator deveria ser temporariamente suspensa, a fim de que mostrasse em cena um corpo da personagem. Essa noção foi modificada ao longo dos séculos. Os encenadores modernos contribuíram para a percepção de que a presença e os movimentos do corpo do ator provocam processos de afecção no espectador. A ideia de signos a serem decodificados, de representação de códigos expostos no texto literário vai aos poucos sendo substituída pela ideia do corpo como gerador por si mesmo de sentidos. A individualidade dos corpos dos atores é então retomada, numa visão integral de corpo e mente. Encenadores como Jerzy Grotowski e como a coreógrafa Pina Bausch passaram a se interessar em trabalhar com o ser de forma integral, importando a eles a atualização da memória individual através de movimentos e ações. Nesse sentido, concordo com Ferracini que a discussão em torno do binário representação/interpretação precisa ser atualizada e que a substituição pela palavra atuação pode ser útil.

Segundo Fischer-Litche, o primeiro uso do termo embodiment, no teatro alemão, está ligado à emergência de um teatro literário e também ao desenvolvimento de uma arte de ator psicológica, da escola realista-naturalista. Nesse momento, os atores deveriam se tornar hábeis para expressar fisicamente as significações que os poetas exprimiam por meio da escrita – destacando-se aí as emoções, os estados mentais, os processos de pensamentos e as características das personagens dramáticas.

O corpo deveria se tornar texto. Por sua vez, o espectador no teatro teria que perceber e se identificar, ter empatia pela personagem dramática. Se a sua atenção se dispersasse para o corpo fenomenológico do ator, isto inevitavelmente destruiria a ilusão. Ou seja, a platéia seria obrigada a deixar o mundo ficcional da peça para entrar no mundo físico real. Para a autora, esse tipo de pensamento reafirma uma concepção dualista entre corpo e mente. Os significados são associados a um universo mental ou espiritual e este só se torna aparente através de um sistema de signos correspondente. Isso implica que a linguagem (referindo-se à linguagem textual) representaria um sistema de signos ideal que expressariam significados verdadeiros e puros, enquanto o corpo humano oferecer-se-ia como um material e meio para significação muito menos confiável. Apresenta-se então uma polêmica interpretação dessas questões, dizendo que para o corpo ser empregado na arte da atuação visando o propósito de tornar-se um texto, deveria ser primeiro despido de sua corporeidade particular e conduzido num processo de “des-corporificação” (disembodiment), ou seja, deveria ser apagada a particularidade do corpo. Nesse sentido, o corpo se tornaria semiótico, hábil, capaz de produzir signos a serem decodificados, expressivo, dentro de uma concepção pré-determinada de expressividade que o distancia de um corpo cotidiano:

Qualquer referência ao estar corporal no mundo do ator deve ser eliminada de seu corpo material para produzir um corpo totalmente semiótico. Somente um corpo semiótico “puro” poderia comunicar os significados do texto “verdadeiramente” e perceptivelmente para o público. Incorporação pressupõe, então, des-corporificação [disembodiment][2]. (FISCHER-LICHTE, 2008, p. 78-79) (Tradução da autora)

No início do século XX, os praticantes e teóricos teatrais se lançaram contra a ideia que prevalecia até aí do termo embodiment. Com o objetivo de separação da literatura, declarou-se o teatro como uma forma de arte independente não mais satisfeita em expressar significações textuais. Esta mudança já pode ser vista como uma virada performativa (performative turn), de acordo com Fischer-Litche. A arte da atuação passou a ser concebida como física e como uma atividade criativa que gera significações por si. A autora se refere nesse ponto do ensaio a um novo modo de abordagem da arte de atuação focada em refletir a natureza material do corpo. Nesse sentido, Meyerhold desenvolveu suas proposições. A ideia de materialidade do corpo pode ser vista já nas propostas de Meyerhold em contraste à análise semiótica. Os exercícios da biomecânica revelavam a potência corporal dos atores e não eram concebidos para produzir signos a fim de transmitir determinados significados do texto literário. Dessa maneira, para Fisher-Litche, Meyerhold desenvolveu a arte da atuação como uma antítese para o conceito até então vigente de embodiment. Para Meyerhold, o efeito da arte do ator não dependia da habilidade do espectador de decodificar signos dados pelos movimentos; presumia-se que o corpo flexível do ator tinha por si um efeito imediato no corpo do espectador. O potencial para causar afetos, afecções do corpo passou a ser valorizado em detrimento à sua capacidade expressiva. O termo expressivo refere-se nesse caso à geração de códigos que representam os signos textuais ou expressam estados mentais, emocionais e psicológicos das personagens dramáticas.

De acordo com Fisher-Litche, desde os anos de 1960o teatro e a performance art experimentam e enfatizam a materialidade do corpo, conforme fez a vanguarda. No caso dos artistas dos anos 60 há uma abordagem dupla do corpo fenomenológico e do corpo semiótico – “ser um corpo” (being a body) e “ter um corpo” (having a body). O termo embodiment foi então radicalmente redefinido. Essa orientação fenomenológica na criação experimental referida por Fischer-Litche é também associada aos Happenings e ao teatro dos anos 60 por Marvin Carlson, referindo-se a Michael Kirby:

A orientação semiótica tradicional do teatro deu lugar no novo trabalho experimental a uma orientação fenomenológica, especificamente caracterizada como “não-semiótica” por Kirby, que tentou encontrar estruturas que iriam “trabalhar contra enviar uma mensagem sobre alguma coisa[3]”. (CARLSON, 2004, p. 141) (Tradução da autora)

É preciso lembrar, conforme mostra Carlson, que a mudança de orientações – da semiótica para a fenomenológica – e, podemos dizer também, o que Fischer-Litche nomeia como virada performativa (performative turn) - tem como antecedente a visão precursora de Antonin Artaud. Este pensador e artista defendeu a recuperação da essência da arte teatral que é a sua performance, ao invés daquilo que a teria corrompido, ou seja, a fala, as palavras, a lógica e a narrativa. Para isso, o corpo no espaço deveria ser valorizado, bem como a recusa da imitação no teatro (mímesis), ou seja, o modelo da representação clássica. De acordo com Quilici, nos escritos de Artaud infere-se que aquela época estava intoxicada por sistemas, teorias, discursos que se desconectaram das experiências primeiras. A referência de Artaud a um “corpo-sem-órgãos”, que gerou mais tarde reflexões por Deleuze, apresentariam uma necessidade profunda de liberdade, da dissolução do “organismo” e de suas “estratificações”. A cena deveria então deixar a ação mimética, valorizando-se a magia e o “poder de contágio” que o teatro pode ter: “O teatro ritual artaudiano não pretende efetuar apenas uma revolução no campo estético, mas confrontar-se com uma crise que extrapolaria as artes, atingindo o pensamento e a cultura ocidental como um todo” (QUILICI, 2004, p. 44). Para Derrida, a proposição do “Teatro da crueldade” por Artaud anuncia o “fechamento da representação”, já que “O teatro da crueldade não é uma representação. É a própria vida no que ela tem de irrepresentável. A vida é a origem não representável da representação”. (DERRIDA, 1995, p. 152) O fechamento da representação não implica, no entanto, no fim da representação. Defende-se o fechamento da representação clássica e uma busca por uma reconstituição de um “espaço fechado da representação originária, da arquimanifestação da força ou da vida”:

O regresso à representação originária implica portanto não só mas principalmente que o teatro ou a vida deixem de ´representar´uma outra linguagem, deixem de derivar de uma outra arte, por exemplo da literatura, mesmo que ela seja poética. Pois na poesia como na literatura, a representação verbal sutiliza a representação cênica. (DERRIDA, 1995, p. 158-159)

Nas proposições de Artaud, a palavra não seria excluída da cena, mas deixaria de ser o seu guia. Deveria ser recuperada a dimensão de “gesto” da palavra e da escritura, de acordo com Derrida; ou seja, a intenção lógica (DERRIDA, 2006, p. 160). Podemos pensar então na dimensão performativa da palavra: uma palavra-ação. Nesse sentido, podemos pensar o texto como um “catalisador” de ações em oposição à ilustração de um discurso esvaziado.

Para Fischer-Litche, o encenador Jerzy Grotowski contribuiu também bastante para a redefinição do conceito de embodiment. Grotowski redefiniu a relação entre o ator e seu papel, na medida em que para ele o performer não poderia servir ao propósito de portar, ou seja, encarnar, um personagem dramático. Grotowski não parecia separar o fato de “ter um corpo” e “ser um corpo”, ou considerar o corpo como uma ferramenta, como um meio de expressão ou como um material criador de signos. O corpo considerado como mente incorporada (embodied mind) proporciona a emergência de algo que existe somente através dele e que é único. A autora oferece o exemplo da personagem Príncipe Fernando, realizado pelo ator Ryszard Cieslak, como sendo um evento único ligado àquele corpo específico. Nesse sentido, o corpo do ator apresenta seu “estar corporal no mundo” (bodily being-in-the-world), que proporciona a base, a condição para a existência da personagem dramática. Ou seja, as práticas corporais dos atores de Grotowski consideravam o self e o corpo como uno.

No caso das encenações de Grotowski, na primeira fase de seu trabalho referente às montagens do Teatro Laboratório, na Polônia, há uma constante valorização da memória individual do performer. A montagem da peça O Príncipe Constante, com o texto de Calderón de La Barca, partiu de dois processos paralelos: a condução por Grotowski de um trabalho com o ator Ryszard Cieslak e, de outro lado, com o restante do elenco. O trabalho com Cieslak girava em torno da composição de ações físicas a partir da memória da primeira grande experiência amorosa deste ator. O trabalho com o restante do elenco teve outros pontos de partida. Num segundo momento, Grotowski juntou as matrizes de ações físicas de Cieslak e do elenco. A respeito da condução deste trabalho com Cieslak, Grotowski afirma:

Aquela experiência de base era luminosa, de um modo indescritível. E com aquela coisa luminosa, posta em montagem com o texto, com o figurino que faz referência a Cristo ou com as composições iconográficas ao redor que também aludiam a Cristo, ali apareceu a história de um mártir, mas nós nunca trabalhamos com Ryszard começando pelo mártir, pelo contrário[4]. (Grotowski. In: RICHARDS, 1995, p. 16) (Tradução da autora)

Nesse processo, Grotowski utilizou-se do “princípio da montagem”, desenvolvido no cinema por Eisenstein e usado anteriormente no teatro por Meyerhold, professor de Eisenstein. O “princípio da montagem” cinematográfica, explicado de forma simplificada, une imagens de significações independentes, uma após a outra, gerando um sentido associativo. Em exemplos bastante utilizados, encontramos aquele da imagem de uma porta seguida da imagem de uma orelha, inferindo-se que alguém escuta algo de forma escondida ou que foi proibido. No teatro, a aplicação desse princípio por Grotowski, torna-se evidente no exemplo da montagem O Príncipe Constante. Juntando as ações físicas compostas a partir da memória de Cieslak com as ações físicas do restante do elenco e, além disso, acrescentando-se o texto de Calderón de La Barca, realizou-se uma edição desses materiais em função do sentido pretendido pelo encenador. O “princípio da montagem” foi usado por Grotowski em outras encenações, propondo várias formas de relação entre o performer e o espectador através de usos variados do espaço explorado em seu valor de composição dramatúrgica. Jerzy Grotowski evoluiu em seu trabalho por diversas vias que são dividas em fases. As montagens de espetáculos correspondem a um primeiro momento que foram seguidas por experimentações diversas em torno das potencialidades do performer. Há claramente ao longo de todo o trabalho de Grotowski, independentemente da fase, uma grande investigação sobre o ser humano, o indivíduo.  O corpo do performer, nessa primeira fase, traduz uma nova noção de embodiment e de atuação.

Michael Kirby, por sua vez, associa a palavra atuação à representação e a simulação. No artigo On acting and not-acting[5], Kirby alerta que ações cênicas nem sempre pressupõem representação, como no caso dos Happenings. O autor defende que geralmente é fácil identificar quando há atuação ou não numa performance (espetáculo), mas que mesmo assim, há uma escala ou uma linha contínua (continuum) de comportamentos que varia da não-atuação até a atuação. Kirby traça então o continuum anunciando que há inúmeras ações cênicas que não usam representação como, por exemplo, algumas peças de dança. No teatro kabuki há a presença no palco de ajudantes que movem peças do cenário e auxiliam os atores na troca de figurinos em cena. As roupas desses ajudantes os distinguem dos atores, mas eles não possuem um papel dentro da estrutura narrativa. Pelo fato de estarem em cena, esses ajudantes são também performers, mesmo sem representar. Em outros casos, uma roupa pode caracterizar um tipo ou um personagem transformando a pessoa que a veste, mesmo que de forma não associada diretamente a uma representação. Neste ponto da escala, Kirby fornece esses exemplos para se referir a performers que não fazem nada para reforçar informações ou identificações. Assim, esses performers não enfatizam matrizes de representação de uma personagem, situação, lugar e tempo, podendo ser considerados como sem matrizes – nonmatrixed. No caso do performer que também não enfatiza uma matriz de representação, mas que veste um figurino que representa algo ou alguém teríamos um estado nomeado como matriz simbólica – symbolized matrix. Na matriz simbólica os elementos referenciais são aplicados a um performer e não atuados por ele, conforme o caso de alguns figurinos. Reproduzo abaixo a linha contínua de Kirby:


O estudo de Kirby continua trazendo mais informações para a linha. Assim, se vemos uma pessoa vestida de cowboy, por exemplo, as roupas agem sobre ela configurando uma matriz simbólica. Mas se ela não realiza nada para reforçar outras matrizes de representação, temos então referências fracas de representação e a vemos como uma pessoa e não como um ator. Se as referências recebidas aumentam, torna-se mais difícil definir se a pessoa está ou não atuando. No último caso tem-se então uma “atuação recebida” pelo performer (designada para o performer) – received acting. Quando as matrizes são fortes, persistentes e reforçam umas as outras, vemos um ator. Diante da dificuldade em definir atuação, Kirby questiona: “Quais são as características mais simples que definem atuação?[6](Tradução da autora) (In: ZARRILI, 2002, p. 43) Na reflexão, apresenta uma variação do continuum:

Kirby mostra que atuar envolve um componente básico físico e emocional. Mas o que para este autor parece crucial ao definir atuação é a relação entre o performer e o que ele está criando: a atitude do performer é que determina se está atuando ou não. Nesse sentido, a realização de um movimento simples pode ser visto ou não como uma atuação dependendo da atitude, da intenção do performer .

Ao longo da linha contínua de Kirby, da não-atuação para a atuação, aumenta a representação e a personificação. Mesmo no item atuação esses fatores variam em quantidade. Kirby, no entanto, avalia o próprio uso que faz da palavra quantidade como não sendo ideal, principalmente no contexto norte-americano, por gerar a ideia de que uma maior quantidade seria melhor. O autor prefere referir-se, por isso, à atuação simples e complexa (simple acting, complex acting), indicando que uma atuação simples pode, por vezes, ser melhor que uma complexa, ou o contrário. A atuação complexa (complex acting) é a condição final da linha contínua. A atuação simples (simple acting) é aquela em que apenas um elemento ou dimensão da atuação é usada. A atuação se torna mais e mais complexa na medida em que mais elementos são incorporados na representação como, por exemplo, características físicas de uma personagem, um lugar, a relação com outro ator, o acréscimo de texto.

É importante destacar que a simplicidade ou complexidade da atuação não está relacionada a estilo, linguagem ou estética da atuação. Kirby afirma que nos últimos anos[7]vêm ocorrendo uma mudança para a extremidade da não atuação na escala. Isso significa, segundo Kirby, que não só se reconhecem mais atuações sem matrizes (nonmatrixed performing), mas também que a atuação tem se tornado menos complexa (dentro do sentido por ele proposto). Esse fato é atribuído pelo autor à influência dos Happenings sobre a criação teatral além de outros modos de criação como as improvisações propostas por Viola Spolin e a ênfase na via negativa, apresentada por Grotowski. Mesmo com tantos fatores, para Kirby os Happenings contribuíram para a criação de um estado mental que valoriza o concreto, em oposição ao simulado e que não requer enredo ou histórias. Enfatiza-se que a escala não-atuação/atuação não intenciona estabelecer ou sugerir valores: “Os vários graus de representação e personificação são ´cores´, então digamos, no espectro da performance humana; artistas podem usar quais cores eles preferirem[8]”. (Kirby. In: ZARRILI, 2002, p. 52) (Tradução da autora)

O modelo de análise proposto por Kirby oferece parâmetros objetivos para refletir sobre interpretação, representação e atuação na cena contemporânea. Assim, relacionando essas informações sobre atuação a aspectos de uma estética do performativo (aesthetics of performative[9]) para análise da cena contemporânea, percebo que um jogo de aproximações e afastamentos entre as duas extremidades da linha contínua condiz com a atuação hoje em dia. Muitos espetáculos expõem em cena esse jogo apresentando como parte de sua composição a não atuação e a atuação. Considerando as proposições até aqui expostas, proponho que a escala de Kirby seja entendida pelo modelo de retroalimentação proposto por Fischer-Lichte para discutir a relação entre o espectador e o ator, nomeado como autopoietic feedback loop. Fischer-Litche se apropriou do termo “autopoiesis[10]”, baseando-se em um conceito proposto pelos cientistas chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela. Em sua análise e proposta conceitual nomeada autopoietic feedback loop, Fischer-Litche mostra que a relação geralmente considerada tradicional do espectador como sujeito e do ator como objeto sofreu uma transformação e passou a exigir uma negociação. Esta teórica conclui que a recepção dos espectadores de um fenômeno estético, seja ele artístico ou não artístico, é sempre através de uma experiência física, de afecção. Entender a escala não-atuação/atuação também por um modelo de retroalimentação e autopoiético permite perceber que um extremo da linha alimenta continuamente o outro:

Dessa forma, ao invés de procurar pelas variações entre não-atuação e atuação numa linha contínua, percebo uma ampliação da noção de atuação. Num modelo autopoiético, níveis de atuação variam dentro de um mesmo espetáculo. Os performers combinam conscientemente esses níveis de modo que a não atuação e a atuação se retroalimentam, contribuindo inclusive para a dramaturgia do espetáculo. A redefinição do termo embodiment, conforme argumento de Fischer-Lichte, contribui bastante para o entendimento dos níveis de atuação. O corpo do ator por hora porta um personagem e logo em seguida, apresenta aspectos de seu próprio ser, de sua individualidade enquanto sujeito no mundo.

Concluo, reforçando o argumento de que os binômios representar e interpretar podem estar contidos num mesmo termo, atuação. A consideração da individualidade do performer, de sua corporeidade ou estar corporal no mundo, revelando em cena aspectos do seu ser, redefiniu a noção de embodiment. Sendo assim, um corpo que antes deveria produzir signos a serem decodificados pelo espectador e que representasse as ideias de um texto dramático, passou a ser explorado em sua materialidade, em sua capacidade inerente de afetar o outro pela presença. A atuação, por sua vez, pode incluir também aspectos da não atuação, levadas à cena conjuntamente em alguns espetáculos.  A não atuação e a atuação se retroalimentam trazendo e levando elementos de uma para outra. Os contextos e discussões aqui apresentados, partindo das experimentações de um grupo teatral brasileiro, passando pelas considerações de teóricos e praticantes estrangeiros, podem contribuir para um entendimento de uma noção ampliada de atuação.


Elisa Beléml Atriz, Doutoranda do Programa Artes da Cena do Instituto de Artes da UNICAMP; pesquisadora bolsista da FAPESP. Neste programa é orientada pela Dra. Suzi Frankl Sperber. Mestre em Teatro (Estudos da Performance) pela Royal Holloway, University of London; título reconhecido e validado no Brasil pela ECA/USP. Foi bolsista do Programa ALBAN entre 2004 e 2005.


Notas
  1. V Congresso da ABRACE – Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas, 2008, título da comunicação “Atuar”, GT Territórios e Fronteiras.^

  2. The traditional semiotic orientation of theatre gave way in the new experimental work to a phenomenological orientation, specifically characterized as “non-semiotic” by Kirby, who attempted to find structures that would “work against sending a message about something”. (CARLSON, 2004, p. 141) (Original em inglês)^
  3. The traditional semiotic orientation of theatre gave way in the new experimental work to a phenomenological orientation, specifically characterized as “non-semiotic” by Kirby, who attempted to find structures that would “work against sending a message about something”. (CARLSON, 2004, p. 141) (Original em inglês)^
  4. That base experience was luminous in an indescribable way. And with that luminous thing, put in montage with the text, with the costume which makes reference to Christ or with the surrounding iconographic compositions which also allude to Christ, there appeared the story of a martyr, but we never worked with Ryszard starting from a martyr, all to the contrary. (Grotowski. In: RICHARDS, 1995, p. 16) (Original em inglês)^
  5. KIRBY, Michael. On Acting and Not-Acting. In: ZARRILI, Phillip. Acting (Re) Considered – a theoretical and practical guide. Londres e Nova York: Routledge, 2002. ^
  6. “What are the simplest characteristics that define acting?” (In: ZARRILI, 2002, p. 43) (Original em inglês)^
  7. A esse respeito, Michael Kirby afirma: “Even ´abstract´movements may be personified and made into a character of sorts through the performer´s attitude. If the actor seems to indicate ´I am this thing´rather than merely ´I am doing these movements´, we accept him or her as the ´thing´: the performer is acting.” (Kirby. In: ZARRILI, 2002, p. 44)^
  8. “The various degrees of representation and personification are ´colors´, so to speak, in the spectrum of human performance; artists may use whichever colors they prefer.” (In: ZARRILI, 2002, p. 52) (Original em inglês)^
  9. O livro reúne textos escritos em diferentes datas, mas a publicação é de 2002. ^
  10. Para maiores informações a respeito, consultar: FISCHER-LICHTE, Érika. The transformative power of performance – a new aesthetics. Londres e Nova York: Routledge, 2008. ^
  11. Para Maturana, o ser vivo é um sistema autopoiético molecular. O termo autopoiético se refere à autonomia do ser vivo e a sua organização circular de transformações e de produções moleculares através de uma constante conservação desta organização. Varela destaca que os estudos se referem a uma rede de processos que geram e mantém o vivo, além disso, afirma que a autopoiese está, mais uma vez, baseada em uma concepção circular e auto-referencial dos processos.^

Referências Bibliográficas

Outros links úteis

LUME

Etienne Decroux

Michel Kirby

The transformative power of performance: a new aesthetics, de Erika Fischer-Lichte


Data de Recebimento:
15 de outubro de 2011
Data de Aceite:
30 de novembro de 2011
Data de Publicação:
25 de dezembro de 2011