Volume 1
Edição nº 12
2012
Seção:
EM PAUTA
Artigo 2

Ação Cultural, ação Artística. Se há duas palavras... Há duas coisas!

Jean-Gabriel Carasso[1]

Tradutora: Maria Lúcia de Souza Barros Pupo


Há alguns anos no Togo, encontramos estagiários africanos em um centro de formação em torno da direção de projetos culturais. Durante duas horas discutimos sobre cultura, política cultural, ação cultural... convencidos de estarmos nos compreendendo perfeitamente, quando, no final dessas trocas, um deles, que até então tinha ficado em silêncio, finalmente tomou a palavra para dizer: “A discussão dos senhores é muito interessante, mas na minha língua, em Madagascar, a palavra cultura não existe. Ela é, portanto, intraduzível”. Naquele instante, tudo o que tínhamos dito com grande convicção, desmoronou. Se a palavra não existe, será que a coisa pode existir? Mistério !

Na França, mas também em outros países fala-se frequentemente em cultura, política cultural, ação cultural... A implantação de instituições (teatros, bibliotecas, museus...), a organização de eventos (festivais, manifestações...), o apoio a artistas, companhias, criações... tudo isso participa da ação dita cultural. Nosso ministério é o das questões culturais ou da cultura, de acordo com a época a qual nos referirmos. No domínio da educação, mais precisamente no que se refere à presença da arte e dos artistas em processos educativos, fala-se de educação artística e cultural (EAC), sem nunca precisar exatamente o que distingue a dimensão artística da dimensão cultural, como se esses dois termos fossem idênticos, ou mesmo permutáveis entre si. Mas no entanto...

Durante muitos anos evitei a pretensão de definir essas duas palavras, por serem tão polissêmicas. Milhares de páginas foram escritas ao longo dos tempos por filósofos, etnológos, especialistas em linguística ou estética no mundo inteiro, para tentar trazer uma definição de arte ou de cultura.. Determinados sociólogos franceses encontraram 117 definições do termo cultura. Tanto por modéstia quanto por prudência, coloquei-me então atrás de todos aqueles – inúmeros - que se contentam em deixar essas noções em uma confortável vaguidão  artística e cultural. Mas vejam só ! Na prática, nas ações concretas que propomos a crianças e jovens (e mesmo aos menos jovens), permanecer no campo dessas incertezas acaba embaralhando tanto os projetos quanto  a reflexão. O que nós temos feito exatamente: uma ação cultural ou uma ação artística? Onde está a diferença? Onde estão as complementaridades? De que estamos falando exatamente?

Qual arte? Qual cultura?

O que é a arte? A arte, diz-se aqui, é o que seria artístico! Obviedade ! A arte, afirma-se por outro lado, seria o conjunto das obras da humanidade! Ou ainda, a arte seria simplesmente o resultado da história da arte! A arte seria ainda, para outros, uma maneira de fazer as coisas com excelência: arte da cozinha, da cirurgia ou do futebol ! Tudo é arte, somos todos artistas. A própria política, bem conduzida, seria uma arte de excelência ! Mas então, se tudo é arte... nada é arte! O raciocínio morde a própria cauda ! Como definir uma ação coerente nesse pântano?

E a cultura? É uma maneira de viver, pensar, comer, vestir-se, acreditar? Abordagem etnológica bem conhecida: cada grupo humano, ou até cada indívíduo teria “sua cultura”, elemento essencial de sua identidade, individual e coletiva. Cultura jovem, cultura urbana, cultura regional, cultura de empresa, cultura religiosa, cultura sindical, cultura popular... E assim por diante ! Tratar-se-ia de uma mala a ser enchida, de uma massa de conhecimentos a serem adquiridos, de uma bagagem a ser constituída? Uma pessoa que conhece todos os autores do mundo, os músicos e pintores de séculos passados, os criadores mais contemporâneos, seria muito culta. E aquela outra, que cultura, comprovada pelas citações que utiliza a cada frase. E há essa outra que é tão desprovida de cultura que se quer a todo custo lhe "dar acesso” ao museu, ao concerto, ao teatro e à biblioteca, a ponto de organizar para ela jornadas de portas abertas nas instituições, festivais de teatro, entradas gratuitas, cheques-cultura para suas crianças...? E o fato de atribuir eficácia à ação tomando como único critério a contabilidade do número de pessoas atingidas? Atingidas, portanto cultivadas?

Nada disso é completamente falso, mas nenhuma dessas concepções considerada isoladamente é útil para a elaboração e para a realização de uma nova política. Na realidade, estamos falando de outras coisas.

Digamos, para simplificar, que a arte é “a coisa” e que a cultura é “a relação com a coisa”. Explico-me.

A arte é uma atividade humana vertical

A arte é antes de mais nada uma atividade: uma ação do homem, um gesto, um som produzido, um movimento executado, uma forma realizada, uma palavra enunciada, uma frase redigida... Seja individual ou coletiva, esta ação é indispensável à constituição mesma da arte. Desde os primeiros traços manuais nas paredes das grutas de Lascaux até as produções virtuais mais sofisticadas, dos cantos guturais das mulheres inuítes aos filmes em 3D, em todas as sociedades os indivíduos se mobilizam para agir, cantar, traçar, escrever, dizer... Ou seja, formular, dar forma a uma palavra, a uma emoção, a um discurso, a um sentido com a ajuda de uma linguagem simbólica particular. Eles efetuam assim uma atividade artística. Fora dessa atividade concreta pode haver sonho, fantasma, imaginário, transe ou loucura. Mas não arte !

A arte, uma atividade humana: os homens, mais precisamente a humanidade, é a única que produz expressão artística. Se a estética ou a beleza podem ser encontradas na natureza (tal paisagem, tal luz, tal voo de pássaro), apenas os humanos agem conscientemente para produzir determinado efeito estético sobre o modo da representação. Os pássaros frequentemente cantam muito bem, mas eles sabem disso? Eles são capazes de intenção, inovação, criação em sua maneira de cantar? É possível imaginar um festival de criação contemporânea de cantos de pássaros? Augusto Boal, grande diretor teatral brasileiro afirmava que a arte – o teatro especialmente – é o que funda a própria humanidade: " O que distingue o humano do animal é ser capaz de olhar para si mesmo, portanto de representar um personagem, de fazer teatro”. Arte e humanidade estão estreitamente ligados, o que implica inúmeras consequências pedagógicas e políticas.

A arte é, enfim, uma atividade vertical, que não cessamos de erigir e de aprofundar. De aprofundar para erigir. Não há atividade artística sem aprofundamento permanente da pesquisa e da formação, sem assumir riscos, sem imaginação, sem tateamentos e tentativas repetidas, sem um trabalho subterrâneo o mais das vezes invisível, nutrido por formações e técnicas adquiridas ou inventadas. Essa dimensão da atividade artística é frequentemente ignorada. Se atribuirmos aos artistas tempo para pesquisa e formação, a arte irá melhor. A arte também é, evidentemente, realização de obras diversas, inesperadas, às vezes opacas, expressões múltiplas e singulares que podem ao mesmo tempo nos satisfazer e nos inquietar, responder aos nossos questionamentos mais profundos ou, ao contrário, avivar nossas angústias individuais ou coletivas. Não há arte sem obras , a não serem quando confundidas com os produtos estandardizados que a indústria dita cultural nos propõe com tanta frequência. Não há arte sem crescimento permanente da criação.

Esta visão da atividade artística, concebida como dialética permanente entre a pesquisa e a criação, a formação e a realização, o invisível e o visível fundamenta a própria essência de uma ação artística. Uma ação artística oferece a grande quantidade de pessoas a possibilidade de uma atividade artística pessoal autêntica: às crianças das escolas, às pessoas envolvidas com práticas de amador, e, naturalmente, aos artistas profissionais. Precisamos oferecer a todos condições as mais adaptadas à experiência artística que eles pretendem realizar, sem demagogia e sem confusão.

A cultura é uma relação com o mundo

Ação cultural, educação cultural, acesso à cultura, democratização cultural, política cultural: o termo cultura parece, também, ao mesmo tempo evidente e indefinível. Evidente porque indefinível! A incerteza que pesa sobre sua definição permite todas as confusões, tanto quanto autoriza todas as concessões. Maneira de pensar, de viver, de comer, de falar, de se vestir, de estar no mundo: é nossa cultura no sentido etimológico do termo ! Massa dos saberes, dos conhecimentos teóricos ou livrescos ingurgitados, “o que resta quando se esqueceu de tudo”: é a cultura, no sentido intelectual da palavra ! Podemos nos satisfazer com essas duas concepções dominantes: de um lado, o simples reconhecimento das diversidades de modos de vida ou de pensamento; de outro lado, apenas a busca sempre inacabada de saberes novos, principalmente no domínio do patrimônio ou da criação artística contemporânea? Concepção “bancária”, dizia o pedagogo brasileiro Paulo Freire. Nenhuma dessas perspectivas pode nos convir.

Se a arte é uma atividade humana vertical, a cultura me parece ser, antes de tudo, uma atitude, uma aptidão, uma relação com o mundo, com o pensamento e especialmente com as obras artísticas, que permite a cada um se situar no mundo das ideias e dos símbolos. Ela se inscreve em uma dimensão horizontal quedemanda, de um lado, a sensibilização, a educação; de outro lado, a frequentação regular e diversificada das obras, o trabalho do espectador, do leitor ou do ouvinte. Nesse sentido, a cultura é sempre um trabalho tanto quanto um lazer, um esforço distante dos prazeres fáceis do consumo cultural, uma atitude de curiosidade e de abertura, de tolerância tanto quanto de espírito crítico, enfim, uma construção lenta e perseverante do indivíduo por ele mesmo quando se encontra confrontado com as obras mais complexas do espírito. “ O que distingue um homem culto de um homem não culto não é somente a posse de um bem: é um caminho que não foi percorrido, um trabalho que não foi feito” escreve Danièle Sallenave (Le Don des morts. Gallimard, 1991).

Se as definições aqui propostas forem aceitas, a distinção entre arte e cultura, ação artística e ação cultural torna-se mais clara.

Ação artística ou cultural

A ação artística passa essencialmente por uma prática, por uma atividade pessoal e/ ou coletiva que permita a cada um se confrontar com as restrições da formalização de uma ideia, de uma emoção, de um sentido simbólico. Não se pode imaginar uma ação ou uma educação para a arte (ou pela arte) que não abra espaço para a atividade real dos participantes. É preciso se movimentar, pintar, desenhar, dançar... Enfim, agir para que a arte possa acontecer. Há milhares de maneiras possíveis para se conseguir isso, desde o desenho infantil até o desempenho mais sofisticado de um grande artista profissional, passando por todas as aventuras intermediárias: cada um ao seu modo, todos fazem arte, mesmo que a realização seja, evidentemente, muito diferente. A ação artística é, portanto, a organização concreta dessas possibilidades de agir, de experimentar a atividade artística.

A ação cultural é de outra natureza; seu objetivo principal é desenvolver a cultura dos indivíduos, ou seja, sua relação com as ideias, as formas, os símbolos, as obras. Esse trabalho passa inicialmente, no que diz respeito à cultura artística, pela relação com as obras de arte: é preciso assistir a espetáculos, ler livros, ouvir música, visitar museus... enfim, confrontar-se o mais intimamente e o mais regularmente possível com obras de artistas de ontem e de hoje. Para isso, inúmeras possibilidades são oferecidas e é preciso inventar outras sem cessar, em função do território, dos públicos em questão. É preciso oferecer todas as oportunidades de alargar o campo cultural, de um lado pela educação e sensibilização, desde a mais tenra idade, especialmente em meio escolar. É o que chamamos às vezes de “escola do espectador”. Mas é preciso também trabalhar na difusão das obras, na mediação, tanto quanto em torno de elementos muito concretos: o preço, o transporte, o espaço, o tempo... Sem proximidade com obras de arte é muito difícil forjar para si mesmo uma cultura artística, mesmo que a internet e as novas tecnologias da comunicação ofereçam agora novos meios para isso.

De acordo com as concepções expostas, um projeto ideal é evidentemente um projeto que leve em consideração as duas dimensões ao mesmo tempo: a artística e a cultural. Pouco importa a maneira de entrar no projeto, pela prática ou pela relação com as obras, o importante é apenas poder associar essas duas dimensões ao longo da abordagem, para que elas se alimentem mutuamente, completem-se, enriqueçam-se.


Jean-Gabriel Carasso é Diretor de l’Oizeau Rare.


Notas
  1. Jean-Gabriel Carasso é um homem de teatro francês, pesquisador, escritor, diretor teatral e ocasionalmente ator, que desde os anos oitenta vem sendo responsável por diferentes funções no campo teatral, através das quais vem atuando em prol das relações entre o teatro e a educação no campo da escolarização e da ação artística. Seu papel de liderança nessa área fez com que tenha estado durante muitos anos na presidência da ANRAT, Association Nationale de Recherche en Activités Théâtrales, por ele fundada. É autor de uma série de livros e artigos em revistas especializadas e mais recentemente vem mantendo um site, "L'oiseau rare" que presta relevantes serviços à causa sa pedagogia do teatro.^


Data de Recebimento:
26 de março de 2012
Data de Aceite:
31 de maio de 2012
Data de Publicação:
30 de Junho de 2012