Volume 1
Edição nº 12
2012
Seção:
DOSSIÊ ESPETÁCULO
Artigo 8

Sobre a música em Orfeu Mestiço: uma hip-hópera brasileira

Eugênio Lima


“Mosaico mestiço-afro-indígena-judaico-cristão-árabe, hip-hoperístico”

A música no espetáculo Orfeu Mestiço é, antes de tudo, sobre o encontro entre os diferentes. É, apesar de tudo, sobre uma rede de pesca, uma teia, uma colcha de retalhos, um mosaico de azulejos, uma cortina de renda fina, na qual tudo está em relação, mas ao mesmo tempo, cada parte mantém sua integridade fundamental.

A música dialoga com o espetáculo de diversas maneiras: ora afirmando, ora desconstruindo, ora apontando para uma utopia futura. Seu processo é múltiplo e suas origens, multiformes.

Canções, giras, músicas-temas, raps, grooves, rapsódias, fábulas cantadas, texturas sonoras, paisagens de efeitos eletrônicos, ritmos afro-diaspóricos, timbres ameríndios, beats e citações de temas musicais dos cancioneiros popular e erudito perpassam toda a narrativa.

Cada elemento é fundamental, ancestral, autorrepresentativo, mas diante da cena, se relaciona, se antagoniza, se reorganiza com outros e criam juntos uma opus mestiça na forma e no conteúdo.

Diante do processo optamos pela fricção entre as diferentes matizes sonoras. Criamos conceitos que simbolizam tal afirmativa, como o Coletivo dissonante (ver link Corja), o Terreiro eletrônico com seus músicos ogãs (link pária de abertura - 00:20:26 até 00:27:47) e os atores/atrizes MCs (link celestina canto pelo Brasil 1 - 00:12:10 até 00:15:39)

Cada abordagem sonora tem sua especificidade, que é pautada tanto pela sua função na narrativa, como por sua necessidade musical.

A ideia foi abranger, ampliar; sendo assim, em vez de reduzir uma época à sua sonoridade predominante, optamos por um discurso sincrônico, no qual as diferentes musicalidades de uma mesma época habitavam o mesmo espaço.

Dessa maneira, nos nossos anos (60, 70, 80, 90, 2000) diferentes matizes musicais integravam o nosso arcabouço sonoro: de Pixinguinha a James Brown, de Luiz Gonzaga à Tropicália, passando pela música criada nos ritos de matizes africanas, por Bach, Handel e a música experimental dos anos 70, todos eram perpassados pelos timbres das “canções” indígenas, pelo hip-hop e pela música popular produzida no Brasil e no “mundo”.

A instrumentação estava dividida entre os instrumentos percussivos de matriz afro-brasileira, os instrumentos de origem indígena, a “percuteria” (mistura entre a percussão e a bateria), a caixa marcial, a percussão eletrônica (MPC, Kaos Pad, pedal de efeitos), o DJ e seus toca-discos como aglutinador de sonoridades e texturas, o violão, o contrabaixo elétrico, o violino, a flauta transversal, o coro do coletivo dissonante e as vozes dos atores/atrizes MCs.

A sonorização acentuava a diferença auditiva e sonora, pois variava suas formas de amplificação, passeando entre a voz e a instrumentação amplificada, a voz e a instrumentação sem amplificação, a voz sem amplificação e a instrumentação amplificada, criando dessa forma um desenho de som que é tão híbrido quanto a narrativa.

Quanto ao procedimento de composição, optamos pelo processo de referências que se transformam, pois diante da impossibilidade da reprodução fiel da atmosfera musical de uma época, criamos uma reconstrução que unia pontos diferentes do espectro sonoro a partir dos elementos atuais.

Primeiro, temos o sample/referência como ponto de partida. A partir disso, desconstruímos, para, na relação – com as letras, a narrativa e os temas propostos –, criarmos camadas sonoras próprias para cada cena do espetáculo. Um processo de composição coletiva, que não excluía a composição solitária.

Canções, refrãos, ritmos, paisagens sonoras, temas instrumentais eram direcionados a partir das proposições da direção geral e da direção musical. O teatro hip-hop era o filtro. A partir desse olhar, uníamos as diferentes matizes do espetáculo, camadas de frequências, samples históricos, timbres, vozes, beats, harmonias e melodias se aglutinavam para elucidar uma época e, ao mesmo tempo, atualizar seu significado. (link cena do festival - 00:26:21 até 00:29:57)

Dessa forma, a linguagem do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos se afirmava pela sua hibridez fundamental; o hip-hop existia para além do seu conteúdo formal, mas, sobretudo, pelo seu procedimento, no qual o sample é uma pílula de poesia comprimida, “na qual em oito compassos, você tem compactados, 40, 50 anos de história”. É diante dessa história recriada a partir de cada música que a textura da “renda fina”, das camadas de som vão se afirmando como uma dramaturgia própria, que corre traçando pontos, como uma rendeira e, ao final, a peça de renda se afirma na sua “síntese poética” que, tal qual numa poesia, não reduz, mas adiciona; ou como num ritual de Umbanda, propõe tudo "numa banda".

Nessa “síntese poética”, nesse “universalismo primordial”, o mínimo e o máximo se entrecruzam; o discurso de um lugar primordial, em que os mínimos elementos contam tudo o que está ausente (link celestina canto pelo Brasil 2 - 01:50:32 até 01:56:32), encontra com o máximo dos recursos e dos elementos musicais (link pária de Eurídice - 00:24:15 até 00:25:38) e tal qual no mito de Orfeu, se apaixonam, se fundem, se separam, se reencontram num outro tempo e lugar.

          

Um lugar de encontro que deixa sons e acordes sem resolução imediata no ar… Outro encontro surge cheio de possibilidades, timbres e frequências, uma nova impossibilidade? Talvez… A menos que se perceba neste encontro futuro o “novo re-significado”, que mantém, ao mesmo tempo, a memória do que passou e o olhar em direção a uma utopia futura. Enfim, um som que se propõe ser constante transformação.


Eugênio Lima integra o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos


Data de Recebimento:
26 de março de 2012
Data de Aceite:
31 de maio de 2012
Data de Publicação:
30 de Junho de 2012