Chamada - Seção Especial - Cadernos de Campo 28.1 - Tempo, Memória e Apagamentos
No início da noite do dia 02 de setembro de 2018, no cume da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, começou a ruir um dos mais importantes monumentos do patrimônio histórico e científico brasileiro. As ressonâncias que marcaram o evento podem ser vistas desde muitos lugares: as labaredas que durante seis horas transformaram em cinza e borra um acervo biológico, etnomusicológico, etnográfico e histórico de todos os continentes do mundo; a água e os recursos que não chegavam para evitar a tragédia, compondo uma política de descaso visível em infiltrações, rachaduras e salas de exposição fechadas; a persistência dos corpos de professores, pesquisadores e brigadistas na tentativa de salvar o que fosse possível. No fim daquela noite e nos dias que se seguiram, através dos noticiários, os informes reiteradamente transmitiam a perda de artefatos arqueológicos e etnológicos, de documentos da história brasileira e mundial, de coleções com espécimes de fauna e flora, todos cultivados por múltiplos braços ao longo dos dois séculos de existência do Museu Nacional.
A biblioteca, laboratórios, salas de exposição e de aulas, as dependências administrativas incineradas permaneceram ali como monumento de uma eficiente política de sufocamento, de apagamento e de assimetria entre o valor da história e da diferença para a construção de um projeto de país e de sociedade mais virtuoso, e o reduzido investimento e reconhecimento por parte de autoridades públicas nas sucessivas esferas da federação. Aliado a dor dos esforços e anos de trabalho ali reunidos e depositados como contribuição para um esforço coletivo, por parte de certas coletividades até recentemente alocadas mais no lugar de objetos de exibição do que de produtores do conhecimento partilhado em espaços de exibição havia uma sensação de alívio e solidariedade. Alívio porque o incêndio, em certa medida, libertava as histórias, pessoas e os contextos de violência, amizade, medo e descoberta na qual alguns daqueles objetos foram traduzidos em artefatos. Solidariedade porque se haveria um modo de construir um novo museu, tal processo passaria irremediavelmente pelo exercício colaborativo de aprendizado junto a essas coletividades.
Meses após o ocorrido, os movimentos de resistência e ocupação do espaço físico e de memória, que o Museu instituiu na política científica e museal brasileira, persistem. Persiste na imagem de pesquisadores dias após o incêndio sendo acompanhados por bombeiros para identificar e resgatar peças do acervo que tenham sobrevivido. Resiste na preciosa atitude de todos aqueles e aquelas que ali trabalhavam em continuar ali, na Quinta da Boa Vista e no Museu, mesmo apesar das condições restritas de trabalho no Horto Florestal, e se transforma na descoberta de cada peça que sobreviveu às chamas, à água, aos escombros e às cinzas, ao descaso. O crânio de Lucy, o meteorito Bendegó,as pessoas.
Inspirada pela situação de ambivalência e conflito que o incêndio no Museu Nacional implica para a constituição de uma política científica e museográfica no contexto brasileiro, a seção Especial do primeiro semestre de 2019 (vol.28, n.1) de Cadernos de Campo propõe-se a reunir trabalhos que discutam as relações entre o trabalho do tempo, as políticas da memória e os projetos de apagamento. Organizado na forma de dossiê temático, a seção Especial busca refletir sobre situações descritivas e analíticas oriundas de trabalhos etnográficos, históricos ou antropológicos que se dediquem a um amplo universo de temas e espaços abarcados pela proposta. Interessa particularmente refletir em conjunto sobre os movimentos narrativos de constituição de alteridade e da divergência, as políticas de aproximação e distanciamento entre Museologia, História e Antropologia, as formas de gestão do patrimônio cultural em diferentes loci regionais e nacionais, os espaços de produção de legitimidade para vozes e memórias subalternizadas, as dinâmicas de colonização da criatividade e da imaginação, os processos de transferência, silenciamento e apagamento na articulação corporificada entre sofrimento social, dor, cura e resistências.
As propostas apresentadas para o Especial devem ser encaminhadas através do sistema de editoração eletrônica da revista, seguindo as normas de formatação e referências adotadas e que podem ser acessadas na guia Diretrizes aos Autores e Autoras. O prazo para submissão dos textos para composição do Especial é 31 de janeiro de 2019, tendo em vista a publicação do volume no primeiro semestre de 2019, em junho.