Eça de Queirós: sobrevida do ‘Nosso cônsul em Havana’

Autores

DOI:

https://doi.org/10.11606/issn.2175-3180.v17i33p13-43

Palavras-chave:

Personagem, Figuração, Eça de Queirós, Cônsul, Série de TV

Resumo

Problematizando o conceito de sobrevida, enquanto dispositivo narrativo ficcional, propõe-se neste artigo uma análise à série televisiva O nosso Cônsul em Havana, emitida pela RTP em 2019, particularmente ao processo de refiguração de Eça de Queirós, cônsul em Havana de dezembro de 1872 a maio de 1874. Aceitando a definição de sobrevida proposta por Carlos Reis, o objeto desta análise carreia dois problemas: i) a legitimação do estatuto de personagem de uma figura histórica como a de Eça; ii) o cotejo entre os elementos de refiguração presentes na série televisiva e as propriedades de figuração legadas, não apenas pelo próprio (sobretudo na sua epistolografia), mas também por biógrafos, historiadores da literatura e outros escritores e que têm contribuído para a construção da memória identitária de escritores canónicos como Eça de Queirós. Recorrendo à proposta teórica e analítica de J. Eder (2016), conclui-se que, quer do ponto de vista da sua materialidade semiótica, quer do ponto de vista da representação, o protagonista da série é composto com um conjunto de marcas facilmente reconhecíveis pelo espectador (elementos de veridicção). A singularidade deste processo de refiguração decorre das particularidades do meio audiovisual de constituição da narrativa, nomeadamente do facto de a figura ser animada pela representação de um ator, que lhe dá voz e corpo. No que diz respeito à dimensão simbólica da figura, a série remete para um dos tópicos mais marcantes do consulado de Eça – a defesa da causa dos migrantes chineses – recuperando, pois, todo um legado ideológico que havia sido trabalhado pelas biografias anteriores. Esta refiguração deve-se, em parte, às circunstâncias de produção e recepção da narrativa. Tratando-se de um produto audiovisual que celebra uma efeméride, o centenário das relações Portugal – Cuba, compreende-se a valorização da ação do protagonista. A opção por enfatizar a dimensão humana da figura, atribuindo um importante espaço narrativo às duas aventuras amorosas, explica-se pelo facto de esta ser uma narrativa televisiva seriada, que segue protocolos comunicacionais específicos. Confirma-se, pois, que a representação de Eça de Queirós, cônsul em Havana, na série de Francisco Manso, consubstancia um processo de sobrevida, resultante do trabalho de refiguração operado a partir de uma figura que a memória cultural e a história literária se encarregaram de construir.

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Biografia do Autor

  • Ana Teresa Peixinho, Universidade de Coimbra. Faculdade de Letras
    Doutora em Ciências da Comunicação. Professora Catedrática no da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Investigadora Integrada do CEIS20 (Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade de Coimbra).

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Publicado

2025-09-01

Como Citar

Peixinho, A. T. (2025). Eça de Queirós: sobrevida do ‘Nosso cônsul em Havana’. Revista Desassossego, 17(33), 13-43. https://doi.org/10.11606/issn.2175-3180.v17i33p13-43