Culinária da floresta - técnicas indígenas na produção alimentar amazônica
DOI:
https://doi.org/10.1590/s0103-4014.202438112.005Palavras-chave:
Transformações vegetais, Cosmotécnica, Coleta, Povos indígenas, AmazôniaResumo
Há uma grande diversidade de modos de processar e consumir as espécies vegetais pelos povos tradicionais da Amazônia, o que se desdobra em distintos modos de conhecer, produzir e promover a biodiversidade da floresta. A riqueza de técnicas, construída ao longo do tempo e conectada às formulações cosmológicas, foi e é empregada nas transformações de plantas de modo amplo, cultivadas ou não, domesticadas ou silvestres, da agricultura ou da coleta, nativas ou exóticas, da roça, da floresta ou da capoeira. Neste trabalho, apresentamos um recorte sobre três espécies vegetais - o açaí (Euterpe sp.), a batata mairá (Casimirella sp.) e o umari (Poraqueiba sp.) -, observando os modos de transformação técnica que permitem a obtenção de ingredientes fundamentais (a goma e a massa) ou a alteração dos estados da matéria vegetal (defumação, fermentação). A elaboração conceitual e prática dos povos indígenas sobre os frutos está expressa não apenas nos modos materiais de transformação, mas também nas cosmologias e nos ritos, como procuramos evidenciar na análise sobre o umari entre os povos tukano. Esse fruto cultivado e não cultivado, presente nas capoeiras e na floresta, e suas diversas formas de processamento nos ajudam a pensar como a técnica se apresenta como uma profícua ferramenta de dissolução de antinomias adotadas historicamente para falar da imbricada relação dos povos indígenas com a floresta amazônica. Assim compreendidos, como uma cosmotécnica, os modos de transformar os vegetais são um exemplo cabal de práticas antiantropocênicas, uma vez que sua orientação se assenta numa episteme indígena equiestatutária entre as espécies e outros sujeitos habitantes da Terra.
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