Chamada de trabalhos - Vol. 18, n. 3 (2022) - Dossiê temático "Discursos discriminatórios e crise social: rupturas, desvios e desafios de uma semiótica implicada"
Editores convidados: Matheus Nogueira Schwartzmann (UNESP) e Luiza Helena Oliveira da Silva (UFT)
[...] a mudança adquire, às vezes, o caráter de uma abertura das perspectivas, quando não o de uma transgressão consensual das coerções epistemológicas. O que era proibido é então questionado e torna-se novamente possível; o que era excluído volta ao domínio das preocupações. (J. Fontanille, Semiótica do discurso, 2007, p. 22)
A pesquisa de um método rigoroso e em certos momentos verificável não implica, [...] segundo a estética de derivação linguística e semiótica, uma recaída naquele cientificismo tanto eufórico quanto ingênuo que caracterizou grande parte da cultura da segunda metade do século XIX (e, para muitas ocasiões, continua a caracterizar a do século XX). Implica, antes de tudo, a assunção consciente de um olhar analítico que [...] põe constantemente em discussão a si mesmo e aos próprios métodos. (G. Marrone, “O dizível e o indizível – através de uma estética semiolinguística”, 2001, p. 2)
O que me parece chocante [...] não é o fato de que os valores humanos e as suas formas de manifestação possam ser descritos ou comparados com outros conteúdos e outras formas que nada devem à tradição greco-latina; é o fato de que estes modelos específicos, sendo demitificados [Cf. Barthes], ou seja, deixando de ser portadores de um humanismo universal, possam ser confrontados com os modelos semióticos e situados sobre o mesmo plano de “bricolage” artesanal, para em seguida serem integrados na teoria geral do saber – condição e projeto de um novo humanismo. (A. J. Greimas, Sobre o sentido, 1975, p. 34)
O bambu que se curva é mais forte que o carvalho que resiste. (Provérbio japonês)
Desafios teóricos
Ao tratar dos desenvolvimentos teóricos da semiótica discursiva, Jacques Fontanille, em entrevista a Jean Cristtus Portela, afirma que “fazer viver uma escola de pensamento” não é repeti-la identicamente, à exaustão, mas “explorar o impensado, levá-la ao seu limite, experimentar caminhos transversais e confrontá-la com o seu próprio silêncio” (PORTELA, 2006, p. 184). A questão da “repetição”, ou mais propriamente, da continuidade, se coloca, aparentemente, em resposta a um certo senso comum que se estabeleceu em torno da disciplina, de que ela estaria presa a um hermetismo datado, pouco afeita a dialogar com outras áreas. Seu silêncio teria assim raízes numa espécie de “recusa à ideologia” que fez a disciplina se interessar, de início e por muito tempo, “por objetos de análise etnoliterários e literários e, frequentemente, desconectados de sua época” (PORTELA, 2019, p. 134), e parecer centrada em problemas estáticos e distantes dos movimentos da sociedade. Isso não é exatamente verdade. As escolhas teóricas e metodológicas, a constituição do córpus, são o exercício de atores sociais (pesquisadores, docentes, teóricos) que fazem, estes sim, certas escolhas. Nos seus gestos é que se encontram as tendências mais abertas ou mais fechadas, mais da ordem da mistura ou mais da ordem da triagem, que podem indicar conjuntos de valores (ideologias, formas de vida) sobre um ideal de pesquisa, um ideal de formação acadêmica, e sobre o próprio papel da semiótica na produção e na circulação do conhecimento.
Quanto a esses procedimentos, Waldir Beividas e Ivã Carlos Lopes, em importante reflexão-balanço sobre a identidade da disciplina, apontam que, a despeito de “iniciativas episódicas” (2012, p. 46), houve sempre fraca disposição dos semioticistas em ir na direção de outros campos. Segundo os autores, seria prudente “manter uma constante atitude de abertura ao diálogo”, o que de modo algum afetaria a “desejável atitude de rigor e vigilância” (2012, p. 44).
O rigor parece ser um núcleo importante do sentido da teoria, cuja vocação científica surge no horizonte como estandarte. Ao narrar a sua “história concisa da semiótica”, Anne Hénault (2006 [1992]) apresenta um percurso marcado por três “sínteses”, que mapeiam a “evolução” de uma semiótica formal, epistemologicamente sólida, que, no entanto, “principalmente nos seus desenvolvimentos mais recentes” (HENAULT, 2006, p. 152) – os da década de 1990 –, caminha na direção de teses ideologicamente sensíveis e frágeis. Hénault ainda se questiona se, para avançar, valeria a pena “pagar o preço” de um “recuo do rigor”. Alinhado a essa lógica de uma genealogia conservadora, no início deste século, Claude Zilberberg chegou a tratar a “virada fenomenológica” como uma “intimação” que poderia levar a semiótica a se afastar “de sua dupla referência, saussuriana e hjelmsleviana” (ZILBERBERG, 2011, p. 12). Quem sai aos seus, não degenera?
Desafios sociais
Em contraste com esse discurso, o próprio A. J. Greimas (1975, p. 17) já afirmava que “os progressos da semiótica consist[iam] na ampliação de seu campo de manobras, na maior exploração das possibilidades estratégicas da apreensão da significação”, deixando cada vez mais de considerar o sentido “como o encadeamento linear e uniplano das significações nos textos e nos discursos”. Para ele, a semiótica, entendida como uma práxis histórica, teria “que manipular conteúdos axiológicos e ideológicos” e ser capaz de transformar esses conteúdos, “considerando sua transformação como o sentido último do seu fazer” (GREIMAS, 1975, p. 15).
Aparentemente, em uma direção distinta da de Hénault e Zilberberg, em diálogo com A. J. Greimas, no final dos anos 1980, José Luiz Fiorin chamava a atenção para a necessidade de se fazer um “cuidadoso balanço do que a Linguística fez, deixou de fazer ou pod[ia] fazer, pois viv[ia] ela uma crise epistemológica”. Ao eleger a instância do discurso aquela capaz de permitir uma “reflexão ampla sobre a linguagem, que lev[asse] em conta o fato de que ela é uma instituição social, o veículo das ideologias, o instrumento de mediação entre os homens e a natureza, os homens e os outros homens (FIORIN, 1988, p. 6), parecia localizar na semiótica discursiva uma possibilidade de virada que levaria a uma resolução da crise.
Como lembram bem Portela e Lopes (2014, p. 90) “a ideia de rigor formal encontra eco no projeto greimasiano desde Sémantique structurale (GREIMAS, 1966), obra na qual a veleidade matemática da semiótica é patente”. No entanto, com uma análise fina sobre a prática teórica da semiótica, os autores mostram que, por vezes, o próprio Greimas “em meio à edificação do exercício”, acolhia em suas análises “insólitos insights” (PORTELA; LOPES, 2014, p. 104). Ou seja, nem só de rigor vive a semiótica.
Os problemas provocados pelo interesse cada vez maior da teoria pela corporeidade e pelos objetos que ancoram sua experiência no mundo natural, pelas práticas sociais e pelos modos de existência das coletividades, levaram ainda a reflexões como as de Jean-Marie Floch, de Eric Landowski, e do já citado Jacques Fontanille, por exemplo, que romperam barreiras metodológicas erigindo as bases de uma semiótica mais “aberta” (BOUTAUD, 2007) e “extrovertida” (LANDOWSKI, 2004).
No Brasil, essa abertura tem se concretizado graças aos trabalhos pioneiros de Diana Luz Pessoa de Barros e José Luiz Fiorin que, direta ou indiretamente, trataram e ainda tratam dos problemas relativos ao preconceito, à intolerância, ao autoritarismo e à opressão. Barros, especialmente, tem tratado não apenas da dimensão social do discurso, mas buscado discutir os problemas relativos à própria realidade social brasileira, propondo “projetos de pesquisa sociais” que dão conta de discursos e práticas marcados ou que marcam a exclusão, a segregação, o preconceito e a intolerância.
Ainda que se tenha evitado, na tradição greimasiana, o emprego de termos como social, sociedade, cultura ou ideologia, não se pode afirmar que essas dimensões tenham sido negligenciadas. Embora exista uma certa tensão teórico-metodológica, que faz o pesquisador tomar partido desta ou daquela abordagem, “em sua fundação e em sua prática de análise, a semiótica se centra na problemática do valor na sua relação com o sujeito, seja como actante da narrativa seja como ator na enunciação”, interessando-se “pela ideologia sem chamá-la pelo nome” (PORTELA, 2019, p. 138), em uma estratégia que evita a entrada da teoria em um debate “mais que centenário” que pouco tem a acrescentar à sua epistemologia.
Posições (modos, estilos?) como silêncio, recusa, confronto, crise, mudança, resistência, virada e síntese se estabeleceram não apenas no âmbito da semiótica. As mudanças sociais, culturais e antropológicas fazem nascer, no horizonte das teorias da linguagem, ou mais amplamente, no horizonte das Ciências Humanas e Sociais, novos desafios que exigem ou “convocam” (FONTANILLE, 2016, p. 3) novas abordagens e novas formas de avaliação qualitativa.
Se o século XX trouxe desafios importantes, sobretudo da ordem das tecnologias e das práticas de circulação do sentido, o século XXI tem nos apresentado uma rápida e inédita mudança nos comportamentos sociais e nos modos de organização da sociedade. As novas condições de trabalho, as mudanças no conceito de família e de afetividade, o problema da seguridade social e da defesa da vida, o desafio alimentar, o envelhecimento populacional, a segurança pública, a ética das relações digitais, as práticas educacionais e de produção de cultura devem nos fazer repensar que papel as ciências do sentido podem hoje desempenhar.
Esse cenário tem evidenciado o modo como se estabelecem os princípios de hierarquização das identidades em meio aos diversos “sistemas sociais”, como os sistemas econômicos (o capitalismo), a sociedade de classes (a burguesia), a indústria, o comércio, a literatura, entre outros, produzindo uma maior tensão na fronteira entre o “si mesmo” e o “outro”. O sentimento de pertencimento e de comunidade leva assim a processos de sanção patemizados (BARROS, 2011) que vão assumir frequentemente a forma da intolerância e do ódio em relação às identidades divergentes, por exemplo, discursos discriminatórios que se desdobram em práticas de violência que afetam a própria existência dos sujeitos e das coletividades.
É no interstício entre essas duas crises – epistemológica e social – que nos questionamos: como garantir o futuro da semiótica como projeto científico coeso? Quais as condições de pesquisa e de existência da disciplina nas próximas décadas? Como teoria e pesquisadores devem se posicionar diante da crise social que nos afeta a todas e todos? Seriam possíveis uma prática analítico-política e o estabelecimento de uma semiótica implicada?
Para tentar responder a essas e outras questões relativas aos desafios impostos pela análise dos discursos discriminatórios, a partir do escopo que aqui buscamos desenhar, o Dossiê pretende reunir trabalhos de pesquisadores interessados pela semiótica e pelas teorias do discurso que avancem na direção dos seguintes eixos de trabalho:
- O estudo das identidades intolerantes e das identidades minorizadas, com especial destaque às abordagens interseccionais (raça, classe, gênero, sexualidade);
- Os desafios das abordagens inter- ou transdisciplinares, no estudo dos discursos discriminatórios;
- O problema do método na abordagem dos fatos sociais.
Referências bibliográficas
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FONTANILLE, Jacques. A semiótica hoje: avanços e perspectivas. Trad. Matheus Nogueira Schwartzmann. Estudos Semióticos. Volume 12, Número 2, São Paulo, Dezembro de 2016, p. 1-9.
FONTANILLE, Jacques. Pratiques sémiotiques. Paris: PUF, 2008.
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MARRONE, Gianfranco. O dizível e o indizível - através de uma estética semiolinguística. In: Documentos de Estudo do Centro de Pesquisas Sociossemióticas. Tradução de Claudionor Aparecido Ritondale. São Paulo: Centro de Pesquisas Sociossemióticas, 2001, p. 01-36.
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RASTIER, François. Sémiotique des sites racistes. Mots. Les langages du politique. 80/2006, p. 73-85.
SCHWARTZMANN, Matheus Nogueira; PORTELA, Jean Cristtus. Reflexões para uma semiótica das culturas: o caso da identidade trans. In: BUENO, Alexandre Marcelo; MANZANO, Luciana Carmona; ABRIATA, Vera Lucia Rodella (Orgs). As crises na/da contemporaneidade. Franca/SP: Editora Unifran, 2017, 193p.
SILVA, Ignacio Assis. Figurativização e metamorfose: o mito de Narciso. São Paulo: Editora UNESP, 1995.
ZILBERBERG, Claude. Elementos de Semiótica Tensiva. São Paulo: Ateliê Editorial, 2011.
Informações práticas
Datas importantes:
- Submissão das propostas (uma página) até no máximo 15 de novembro de 2021. Enviar para semiotica.implicada@gmail.com .
- Resposta sobre as propostas recebidas: 20 de dezembro de 2021.
- Submissão dos artigos cujas propostas foram aprovadas: de 1º de fevereiro a 31 de maio de 2022 (*PRORROGADO até 15/06/2022). Envio em: https://www.revistas.usp.br/esse/about/submissions
- Publicação prevista: dezembro de 2022.
Detalhes sobre a redação e a formatação dos artigos:
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