Fri, 16 Dec 2022 in GEOUSP
O imaginário utópico brasileiro em práticas festivas europeias
Resumo
Analisando a presença brasileira em práticas festivas em cidades europeias como táticas cotidianas que revelam a capacidade utópica e inventiva dos sujeitos participantes, refletimos sobre a dimensão territorial da cultura brasileira tomando como fundamento práticas culturais festivas. Abordamos especificamente a estruturação de alguns espaços festivos como, por exemplo, o do Samba-Festival (Coburg, Alemanha), o da Lavage de Madeleine (Paris, França) e o do Carnaval de La Grande Motte (La Grande Motte, França). A noção de utopia nos permitiu entender o imaginário cultural brasileiro apresentando um potencial de ação e para a ação, uma condição para produzir novas consciências com um caráter lúdico e transgressor, consciências que nem sempre pertencem à lógica produtivista, mas à da imaginação e à da sensibilidade.
Main Text
Longe de ser considerado um tema de fácil abordagem, as festas se apresentam em toda a sua complexidade, despertando instigantes discussões sobre seus possíveis significados, antes, durante e após as suas realizações, assim como as consequências para as diferentes pessoas que delas partilham, sejam como espectadores, atores ou organizadores.
Podemos considerar que o início dos estudos sobre o fenômeno social festa se deu no próprio momento de constituição das Ciências Humanas, em particular nas obras de Marcel Mauss e Émile Durkheim, sendo que a referência teórica da festa foi sistematizada por Caillois (1950) e Duvignaud (1974), ao se mostrarem preocupados com a questão de uma suposta essencialidade festiva do ser humano como universal e único, inserido em uma história pensada como utopia.
Para Caillois (1950) e Duvignaud (1974), a festa irrompe como um experimento social transitório e sem padrões, e contribui para consolidar a utopia de uma sociedade ideal e renovada, no qual a alegria e a interação total com a essência humana estruturam um modelo de vivência completo e venturoso.
Em publicação anterior (Dozena, 2012), evidenciamos a temática das festas como uma interessante reflexão acerca das práticas de resistência territorial, na medida em que essas práticas trazem à tona uma trama de objetos geográficos inseridos em processos sociais contra-hegemônicos.
Atualizando essas reflexões, constatamos que em algumas cidades europeias reivindica-se o direito a uma democracia festiva e comunitária que aciona a visibilidade e a expressão de elementos da cultura brasileira que, mesmo sendo estereotipados na maior parte das vezes, referem-se a modos de viver de agrupamentos sociais, brasileiros ou não, inseridos em processo de reinvenção cultural e identitária.
O objetivo desse artigo é analisar o imaginário cultural brasileiro nas práticas festivas em algumas cidades europeias, manifestando-se como táticas cotidianas que revelam a capacidade utópica e inventiva de seus sujeitos participantes.
Para atingir esse objetivo, refletimos especificamente sobre as seguintes práticas culturais festivas: o Samba-Festival (Coburg, Alemanha), a Lavage de Madeleine (Paris, França) e o Carnaval de La Grande Motte (La Grande Motte, França).
- A operacionalização da proposta se deu por entrevistas semiestruturadas com os sujeitos envolvidos (produtores culturais, diretores de batucadas e escolas de samba, participantes de batucadas, músicos brasileiros e franceses). Nelas, exploramos algumas questões sem a pretensão de generalizar as asserções para todos os países europeus, mas a de filtrar a realidade escolhida desde o nosso ponto de vista de observador, com uma natureza interpretativa.
- Esses recursos metodológicos de entrevistas e mapeamento foram acompanhados pela observação participante, para que as informações interessantes à pesquisa, opiniões e o próprio cotidiano se revelassem espontaneamente; e para que pudéssemos adentrar na cotidianidade dos indivíduos, grupos e práticas festivas estudadas.
A presença do Brasil em práticas festivas europeias
A alegoria do contentamento da população brasileira pode ser verificada em seu cancioneiro, a exemplo de “Alegria” de Durval Maia e Assis Valente (gravada em 1937), fato que contrasta com o momento em que esse texto foi escrito, quando uma parcela da população brasileira se encontrava imersa em uma psicoesfera depressiva resultante da suposta bancarrota do modelo de governo progressista federal no país, posto em cheque pelas sucessivas denúncias e escândalos de corrupção.
Esse fato veio acompanhado de certa desilusão de milhões de brasileiros quanto à convicção concernente aos valores éticos na política, apregoados há décadas pelo Partido dos Trabalhadores (PT); o que também colocou em xeque uma das grandes utopias ainda vigentes relacionada às posturas progressistas da esquerda no país.
Diante das imprevisibilidades do cenário político e econômico atual, um questionamento torna-se premente: seria ainda válida a afirmação utopista de Stephan Zweig de que o Brasil é o país do futuro, e igualmente o seu argumento de que o país “tinha e tem os olhos voltados para o futuro”? (Zweig, 1971, p. 182).
Nesse “carnaval de desilusões”, pautado por discursos em torno da crise sistêmica movida pelo desmanche econômico e político, notou-se durante o período carnavalesco de 2016 o argumento sobre a alienação dos foliões brasileiros, que perseveravam na alegria, mesmo diante da crise econômica.1
A partir de nossa inserção e visualização do contentamento das pessoas que participam das festas carnavalescas, uma ideia nos invade: a de que ainda existe uma psicoesfera motivadora pautada em imaginários utópicos festivos, que paira acima de toda a negatividade prevalecente. E nesse sentido, sem dúvida alguma, o período carnavalesco se torna um dos principais momentos em que essa alegria se torna evidente, demarcando a espontaneidade diante da seriedade das realidades tristes e enfadadas.
Em se tratando de práticas festivas carnavalescas, acreditamos que há nelas uma constante procura por certa utopia festiva, que é ao mesmo tempo uma concepção de mundo e uma busca desmedida pelo prazer capaz de atuar como um vigoroso álibi. Assim, as festas carnavalescas manifestam não só um desvio da razão, mas a busca por um modelo de civilização não civilizado, e uma felicidade ancestral ainda concebível.
O Brasil foi denominado por Blaise Cendrars como a Utopialand, como observam Freitas e Leroy (1998), fomentando o ideal declarado de conquista de suas terras pelos portugueses, sustentado pela representação fictícia do país expressa nas cartas de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel de Portugal.
Segundo Émery (2007), a alusão às viagens de Américo Vespúcio na obra de Thomas Morus (1985) aponta “sem a menor dúvida para a localização mental, a única relevante, da ilha da Utopia em superposição com o continente brasileiro” (Émery, 2007, p. 74).
As panaméricas de áfricas utópicas terras brasileiras - em referência à música “Sampa”, de Caetano Veloso, ainda hoje contribuem para a criação de uma imagem de país que propaga uma alegria contagiante permeada pelo ritmo do samba, a ponto de o diretor francês Marcel Camus utilizá-lo no filme Orfeu Negro de 1959 (Oscar de filme estrangeiro e Palma de Ouro), como o estilo musical reforçador da visão exótica do Brasil como paraíso tropical.
A partir da experiência de residir por um ano na França, deparei-me com brasileiros que atuam na organização de festas em centros culturais, escolas, universidades, espaços públicos ou privados, da mesma forma encontrando um significativo interesse pela cultura brasileira além de certa internacionalização de seus elementos, sobretudo os relacionados às práticas festivas.
É sabido que o início da disseminação da cultura brasileira para o exterior ocorreu a partir do fenômeno musical Carmem Miranda na década de 1940, quando alguns aspectos da identidade brasileira foram lançados e associados às características nacionais (Ortiz, 2006). O aspecto carnavalizante do Brasil tornou-se disseminado em canções como “Brasil Pandeiro”, de Assis Valente, e filmes como Esse mundo é um pandeiro, de Watson Macedo, revelando um nacionalismo exaltador sintetizado por um de nossos entrevistados:
A mundialização vai gradativamente englobando muitas coisas e o samba entra bem nesse processo. O samba é promovido desde os anos 1940 com o Zé Carioca. Tudo aquilo era o começo de uma mundialização, a música Tico-Tico no Fubá cantada por Carmem Miranda em um período de americanização, tudo relacionado à uma maior expansão da noção de universal. A utilização da imagem brasileira utópica começa mais ou menos aí, com uma positivação e certa mundialização. No que se refere aos aspectos musicais, há uma complexificação em seu nível de qualidade, embora continue guardando os elementos básicos relacionados ao samba. Em muitos países europeus a temática brasileira passou a trazer uma resposta aos elementos mais negativos, e isso é o que levou e ainda leva algumas pessoas a investirem na música e terem interesse pela cultura brasileira. (Dudu, diretor da Escola de Samba Aquarela, entrevista realizada por Alessandro Dozena em 6 out. 2015 em Paris, França)
A abordagem da alegria e do prazer na música popular e com a atenção mais destacada às imagens de Brasil solicita a definição da utopia que vai referendá-la imageticamente. Essa pré-sensibilização acerca do viés positivo do país envolve elementos relacionados ao carnaval, ao futebol, à música, à capoeira, entre outros. Nota-se dentro e fora do Brasil uma crença no ideário de que a identidade cultural brasileira é atravessada pelas práticas festivas e, como são representações caricaturais vigorosas, expandem-se abrangendo populações de outros países, que procuram interiorizar certos aspectos da cultura brasileira.
Desse modo, a produção de um sentimento de afinidade ou de amor pelo Brasil é comumente encontrada em algumas festas em território europeu, junto a símbolos e representações específicas que evidenciam algo constituído como um produto destinado à promoção de certa representação de país, que constrói e reforça uma identidade brasileira internacionalizada.
Na Foto 1, chamam a atenção o estandarte - a bandeira nacional brasileira - e um dos elementos usuais nos desfiles carnavalescos de rua no Brasil: o mestre-sala e a porta-bandeira2 em seus trajes característicos, que nesse caso diferem do que se verifica nos desfiles brasileiros. Além da dimensão da vestimenta também as dimensões da gestualidade, dos efeitos sonoros e dos carros alegóricos, por exemplo, demonstram as renovações constantes que atingem as festas carnavalescas em território europeu, a exemplo do que constatamos na cidade litorânea francesa de La Grande Motte.
Não apenas nesse evento, mas em outras festas carnavalescas europeias, a representação da cultura brasileira se efetiva pela divulgação de aspectos culturais fantasiosos, a partir da propagação de uma ideologia intercultural dividida entre o Brasil e os demais países.3 Algumas dessas alusões são alimentadas por representações e metáforas adaptadas ao novo contexto espacial do país forâneo, e projetam nos indivíduos a possibilidade de uma escolha identitária que se torna múltipla. Nesse tema em específico, e com o enfoque pautado na influência musical, pondera Crozat:
Em abordagens contemporâneas, as identidades são necessariamente múltiplas e isto faz com que nos confrontemos com o primeiro hiato. Na verdade, a música se revela como um dos principais vetores dessas fórmulas essencialistas; relacionamos tipos de música aos territórios, nos quais imaginamos impossível que seus habitantes tenham gostos diferentes: no discurso comum, um tenor congolês é inimaginável, bem como um punk brasileiro. Por outro lado, um samba interpretado por japoneses ou um rock mongol nos fazem sorrir [...] As abordagens contemporâneas enfatizam uma identidade múltipla e considera essa multiplicidade como um processo de coerência de uma capacidade de projeção do indivíduo em uma identidade que ele escolheu para si; é então preferível e mais preciso falar de identidade flexível [...] Essa identidade concerne tanto a indivíduos, quanto a grupos e a lugares (Crozat, 2016, p. 50, tradução nossa).4
Sabe-se que no Brasil as suas regiões reproduzem uma multiplicidade de manifestações culturais que se reverberam em identificações heterogêneas com os lugares e os agrupamentos sociais, e que essa diversidade é uma importante característica indenitária que, embora seja por vezes desconsiderada e desconhecida no próprio país, atrai o interesse e alimenta o imaginário utópico forâneo.
Isso é o que ocorre no Samba-Festival na cidade de Coburg (Foto 2), onde se reúnem as batucadas provenientes de diversos países europeus, e acontecem apresentações de capoeira, dança e música brasileira. Percebe-se que as dimensões identitárias são capazes de servir como instrumentos de legitimação ou afirmação de territórios políticos, ao mesmo tempo em que se integram a um imaginário geográfico transnacional que tem, nesse caso, a cultura brasileira como impulsionadora. Essas práticas contribuem para difundir imaginários e símbolos territoriais, acionando e projetando uma realidade que é reforçada por imagens e imaginários, em representações pré-concebidas (Samba-Festival, 2016).
O Samba-Festival é a maior festa de samba na Europa e acontece todos os anos no mês de julho, como explica nosso entrevistado:
Essa festa reúne uma boa parcela dos sambistas europeus, quando foi criada reunia praticamente todas as escolas de samba e batucadas que existiam na Europa, mas há atualmente uma triagem em decorrência da enorme quantidade de grupos europeus interessados. O evento reúne batucadas e escolas de samba que se inspiram nas escolas de samba cariocas e nos ritmos brasileiros. É algo formidável, a organização alemã consegue reunir aproximadamente duas mil pessoas e a cidade fica toda encampada pelo samba, conformando uma verdadeira Cidade do Samba. É a maior festa de samba no mundo, fora do Brasil é claro.
(Dudu, diretor da Escola de Samba Aquarela, entrevista realizada por Alessandro Dozena em 6 out. 2015 em Paris, França)
Verifica-se a tendência atual de organização de festivais europeus em contextos urbanos, capazes de gerar o fortalecimento da identidade das cidades e converter tais eventos públicos e/ou privados em um atrativo turístico. A própria política de cátedras instituída pela Unesco atua nessa direção, reconhecendo expressões culturais em países distintos e valorizando o patrimônio material e imaterial. Desse modo, a estratégia de promoção e divulgação do festival de Coburg atua nos mesmos parâmetros abordados por Capel:
Muitas cidades têm se dedicado com grande força a reconstruir a imagem da cidade, tratando de converter uma imagem negativa em outra positiva, através da propaganda, do desenho e da promoção. Um aspecto essencial dessa estratégia é o de acentuar a ideia dos centros terciários, com equipamentos culturais e lúdicos de diversos tipos: centros de congressos, capitais culturais, festivais de arte, competições desportivas de alto nível, museus de ciência e tecnologia, parques e jardins. Através de tudo isso se busca não apenas oferecer melhores serviços aos seus residentes, como também, principalmente, atrair viajantes estrangeiros que introduzam dinheiro na cidade (Capel, 1996, p. 33, tradução nossa).5
No Samba-Festival, o encontro das batucadas oriundas de vários países europeus certamente provoca uma influência recíproca a partir da confluência entre matrizes culturais distintas. As batucadas são grupos de percussionistas formados entre 10 e 50 pessoas em média, que ocupam e percorrem as ruas das cidades durante os eventos festivos europeus. Esse fenômeno musical “acompanha a difusão da prática de percussões brasileiras pelo mundo” (Vaillant, 2009, p. 179) e no caso francês, foi semeado por uma brasileira:
Com relação à origem das batucadas na França, uma pessoa foi fundamental: Nícia Ribas D’Ávila. Ela defendeu sua tese de doutorado na Sourbonne em 1987, sobre semiótica da música. Ela havia feito a tese no Brasil sobre a escola de samba Padre Miguel, especificamente sobre a paradinha do mestre André. A tese dela era a de que todo mundo podia aprender a tocar samba em uma batucada. Ela fez muitos workshops de samba, no tempo em que esteve aqui na França ela criou a sua própria escola de samba, tanto para ganhar a vida quanto para ilustrar a tese dela, defendendo o fato de que qualquer gringo pode tocar samba, a partir da subdivisão do ritmo do samba em células básicas e em seus diferentes instrumentos. Nesses workshops ela foi plantando sementes por toda a França, pela Alemanha, pela Finlândia, pela Inglaterra, pela Itália, pela Espanha, entre outros países. Ela era uma mulher carismática e contagiante, tornando-se uma guru do samba na Europa, algo impressionante. Eu a conheci em um workshop de batucada na Casa do Brasil, ela me deu um agogô para tocar, eu gostei, nunca tinha pensando em tocar em uma batucada. Na sequência eu entrei na escola de samba dela
(Dudu, diretor da Escola de Samba Aquarela, entrevista realizada por Alessandro Dozena em 6 out. 2015 em Paris, na França).
A estudiosa mencionada pelo entrevistado, Nícia Ribas D’Ávila, recebeu o título de doutora em Ciências da Linguagem - Semiótica pela Universidade Sorbonne Nouvelle, com a tese de doutorado Abordagem semiótica do fato musical brasileiro batucada (1987). Segundo os relatos dos entrevistados, ela foi pioneira na inserção do samba tocado pelas batucadas, utilizando-se dos mesmos instrumentos musicais das baterias de escolas de samba do Brasil, com o propósito de motivar o desenvolvimento da coordenação motora nos participantes das batucadas (Nícia Ribas D’Ávila, [s.d]).
Outro evento no qual as imagens de Brasil são vigorosamente difundidas é a festa que acontece em Paris e recebe o nome de Lavage de Madeleine (Foto 3). Trata-se claramente de uma festa que teve como fonte inspiradora as lavagens das igrejas do Nosso Senhor do Bonfim6 e de Santo Amaro da Purificação no estado da Bahia. Segundo a Fundação Cultural Palmares o ritual da lavagem das escadarias da igreja do Bonfim7 advém do período em que os escravos eram obrigados a lavar o templo para a festa celebrada no segundo domingo após o Dia de Reis (6 de janeiro).
A Lavage de Madeleine ocorre nos arredores da igreja de Madeleine, tendo se transformado em uma festa da cultura brasileira em Paris e sido inserida, em 2011, no programa “A rota do escravo” da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco, [s.d]). A divulgação da cultura brasileira é realizada principalmente a partir das apresentações musicais, cursos e estandes de divulgação da culinária brasileira. Teve início em 2001, por iniciativa do artista baiano Roberto Chaves, recebendo atualmente o apoio da Prefeitura de Paris, da Secretaria de Turismo do estado da Bahia e da Fundação Nacional de Artes (Funarte), uma entidade vinculada ao Ministério da Cultura (MinC). É o seu próprio criador e organizador que nos explica:
Essa festa aconteceu como algo que ninguém acreditava, primeiro por se tratar de um evento brasileiro que envolve não só a cultura como também a religião católica e o candomblé. A festa hoje se chama Festival Cultural Lavage de Madeleine, tendo no ritual religioso da lavagem das escadarias da igreja de Madeleine o seu ponto alto. É uma festa da cultura do Brasil, nós temos a missa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, uma missa afro-religiosa cantada por brasileiros que moram aqui. Nós temos três dias de Mercado Cultural com um palco armado com 16 estandes que atraem empresas de turismo para vender viagens, tem a parte gastronômica e no palco acontecem shows de música brasileira. A festa existe há 18 anos, como ela acontece no mês de volta às aulas em pleno verão, setembro, todos estão por aqui e conseguimos reunir por volta de 40 mil pessoas. A festa está inclusive inserida no calendário cultural oficial francês
(Roberto, criador da festa Lavage de Madeleine, entrevista realizada por Alessandro Dozena em 6 out. 2015 em Paris).
Na Lavage de Madeleine, em todos os anos, há a presença da Batucada Batalá. Vale destacar que existem vários tipos de batucadas, que se diversificam conforme os ritmos tocados e o grau de apropriação dos elementos da cultura brasileira. No caso da Batalá revela-se uma especialização no ritmo samba-reggae da Bahia (Batala Paris, [s.d]), já que ela foi instituida pelo músico brasileiro e baiano José Gilberto Gonçalves (Giba), originalmente na cidade de Paris.
As motivações para a formação de batucadas ocorrem espontaneamente em vários países europeus, bem como a tentativa da reprodução rítmica semelhante ao que ocorre no Brasil, como menciona Vaillant:
Não se trata somente de tocar: os participantes trabalham coletivamente para reproduzir as músicas ao idêntico, o mais fielmente possível até mesmo no canto em português, nas fantasias, nas dançarinas, até mesmo na organização social das escolas de samba. Esta reprodução não exclui a composição, o canto em francês, e todas as inovações que conservam os códigos musicais “tradicionais”, embora a criação musical permaneça como um fenômeno secundário. Os grupos se especializam então em uma família musical (samba, samba-reggae ou maracatu) após escolherem um ou mais grupos brasileiros como modelos da prática musical. Esta forma de apropriação ortodoxa, ou brasilianista, é minoritária na França, mas mais difundida em outros países como Inglaterra, Finlândia ou Japão (Vaillant, 2009, p. 190, tradução nossa).8
Partindo-se do caso da Batucada Batalá, vemos na Figura 1 a sua significativa expansão em países europeus (França, Alemanha, Países Baixos, Espanha, Inglaterra, Grécia, Áustria) além de Angola, África do Sul, EUA, México, Guadalupe, Argentina e obviamente, o Brasil.
Essa significativa difusão das batucadas no exterior pode ser compreendida no âmbito do processo de expansão dos ritmos brasileiros. Essa difusão possibilitou que, tendo como fundamento a base rítmica do samba, fossem multiplicados os grupos percussivos em diversos países, como elucida o criador da Batucada D’Arte Cabloca em Montpellier:
O Brasil é um país que vende, é um país de festa, de samba, de futebol, de pessoas amáveis, sorridentes. Existem povos discriminados na Europa, mas brasileiro normalmente é bem visto, sofre pouca discriminação. De modo geral a batucada consiste em você pegar os instrumentos das escolas de samba: surdo, agogô, tamborim, pandeiro e tocá-los como instrumentos percussivos. Utilizando-se dos mesmos instrumentos tocam-se ritmos de escolas de samba do Rio de Janeiro por exemplo. Esses instrumentos também podem ser utilizados para se tocar outros ritmos brasileiros, como o samba-reggae, o afoxé e o maracatu. Batucada é isso, o uso de instrumentos de percussão brasileira para tocar ritmos brasileiros. Na minha opinião, a batucada indica a apropriação evolutiva dos ritmos tradicionais brasileiros (César, criador da Batucada D’Arte Cabloca - Montpellier, entrevista realizada por Alessandro Dozena em 6 out. 2015 em Montpellier, França).
Na Foto 4, podemos constatar a apropriação de elementos da cultura brasileira e a sua legitimação sustentada pela utilização da camiseta esportiva das seleções nacionais. Percebemos claramente nas batucadas certa apropriação antropofágica de aspectos culturais brasileiros, o que também tem alterado as práticas carnavalescas europeias, na medida em que é muito comum o comparecimento das batucadas nas manifestações momescas:
Ao mesmo tempo, a batucada faz e não faz parte da cultura brasileira, eu prefiro pensar que o batuque é um patrimônio da humanidade. Eu acho que essa alegria, essa potência que a batucada gera é algo sensacional, e que todo mundo deveria praticá-la. Os franceses admiram a capacidade de reinvenção dos brasileiros e a sua adaptabilidade. Por isso, eles buscam aprender e se apropriar da maneira deles.
(Roberto, músico, entrevista realizada por Alessandro Dozena em 6 out. 2015 em Montpellier, França)
Os entrecruzamentos culturais fazem parte da história do Brasil e do continente europeu, sendo marcados por incorporações, uniões, confluências, contraposições e desacertos. Se ao longo dessa história houve absorções por parte do Brasil, isso também afetou muitos países europeus que receberam esses influxos, a ponto de inseri-los em práticas sociais contra-hegemônicas em seus próprios países:
Boa parte dos músicos encaram os investimentos em música brasileira como algo que vai contra os valores mais retrógrados, reacionários, racistas, mais conservadores. Eles veem isso como uma abertura positiva e politicamente engajada. Normalmente, as batucadas estão presentes em manifestações contrarreacionárias como a Gay Pride e o 1º de Maio, tudo o que envolve movimentos progressistas e por direitos sociais. É comum as batucadas serem convidadas, mas mesmo sem chamar, nós vamos risos... Essas manifestações musicais aparecem como uma força contrária aos valores retrógrados de direita.
(Dudu, diretor da Escola de Samba Aquarela, entrevista realizada por Alessandro Dozena em 6 out. 2015 em Paris).
Esse aspecto da subversão somado ao da atração que as batucadas despertam em muitos europeus, a partir da execução de ritmos que provocam sentimentos de alegria e entusiasmo, reforça o interesse de muitos participantes pela apropriação dos ritmos brasileiros. Particularmente no caso francês, Guillot considera que as batucadas são um fenômeno de difusão e apropriação musical baseado ou em empréstimos mais livres, ou em transmissões mais ortodoxas:
Na França, duas tendências marcaram a evolução dos grupos de música brasileira carnavalesca. Aquela que foi majoritária durante muito tempo e consistiu no empréstimo de alguns elementos característicos (como o instrumental) associado a uma grande liberdade na adaptação do repertório musical. E a outra, minoritária (embora com forte crescimento nos últimos anos), que é fruto de um comportamento mais ortodoxo e se refere ao conjunto de recursos disponíveis sobre a cultura carnavalesca brasileira, transmititidos e ensinados por associações estruturadas (Guillot, 2009, p. 2002).9
A experiência dos membros das batucadas em visitar o Brasil para conhecer de perto e estudar os ritmos das escolas de samba do Rio de Janeiro, o samba-reggae de grupos como o Olodum em Salvador, ou mesmo o maracatu de grupos como Nação Estrela Brilhante em Recife; é algo que cada vez mais ganha impulso pela perspectiva advinda do rico manancial cultural brasileiro:
O Brasil, com as suas músicas percussivas, tornou-se para um grande número de grupos de batucadas um reservatório de músicas, um modelo de sociabilidade, de festa e de tradições viventes. Essa representação de uma cultura brasileira idealizada nutre nos participantes uma crítica latente das práticas culturais no território francês ou europeu, os quais guardam uma lacuna de tradições musicais e festivas (Vaillant, 2009, p. 192, tradução nossa).
Face à multiplicação das batucadas e à concorrência local, os grupos tendem a acionar jogos de distinção (com relação aos planos musicais ou extramusicais) e a pesquisar marcas de legitimidade. Um dos recursos de legitimidade mais eficientes é a viagem em direção ao manancial feita por um número crescente de batucadas no período do carnaval brasileiro. Vários parâmetros determinam a escolha da destinação do grupo, entre outros: os antecedentes dos formadores, os encontros com músicos brasileiros na França e, o mais frequente, a pesquisa de um repertório particular. De fato, a paisagem sonora da batucada é composta por três grandes famílias musicais que correspondem a regiões precisas: o samba, o samba-reggae e o maracatu, respectivamente associados ao Rio de Janeiro, a Salvador e a Recife (Vaillant, 2009, p. 181, tradução nossa).10
Essas viagens ao Brasil se convertem em importantes momentos de encontro com a cultura e com os músicos brasileiros, além de se constituirem em viagens formativas. Sem desconsiderar as fecundas e seculares tradições musicais e festivas existentes no território europeu, as marcas de legitimidade adquiridas em práticas festivas nas cidades mencionadas (destacadamente Rio de Janeiro, Salvador e Recife) atuam como um elemento motivador da capacidade utópica e inventiva dos membros participantes das batucadas europeias.
Considerações finais
A noção de utopia nos permitiu entender o imaginário cultural brasileiro apresentando um potencial de ação e para a ação, uma condição para produzir novas consciências com um caráter lúdico e transgressor, consciências que nem sempre pertencem à lógica produtivista, mas à da imaginação e à da sensibilidade.
A cultura popular evidencia maneiras de operar simbolicamente com a vida e não representa apenas algo que já existiu, pautada por um cotidiano esquemático e repetitivo (Lefebvre, 1991), embora seja usualmente cooptada por ações comerciais, a exemplo das que caracterizamos acima e que tencionam divulgar uma representação reinventada de cultura brasileira na Europa. Tendo como fundamento a repetição do imaginário utópico brasileiro em práticas festivas europeias, reforça-se o nosso convencimento de que o “cotidiano é muito mais que o inconsciente fluir de dias sempre iguais; é no cotidiano que o cidadão se encontra diante de coações e vigilância, mas na repetição também pode surgir a essência do imaginário (Carlos, 2007, p. 58).
Considerando a vitalidade desse imaginário, constatamos a configuração de contra-espaços nas organizações sociais majoritárias, tanto na escala das relações cotidianas quanto nas mais amplas e, ao mesmo tempo, registramos um “jogo de contraposições que pode ser divisado e incentivado por um novo arranjo espacial, capitaneado por uma base democrática que permite o confronto de identidades, com o florescimento permanente de uma diversidade libertadora” (Haesbaert, 2006, p. 15).
Nessa dinâmica de contraposições e confrontos identitários, as festas, como práticas sociais e discursivas, podem surgir como uma contrafinalidade, evidência da efetividade de “outras formas de racionalidade, racionalidades paralelas, divergentes e convergentes ao mesmo tempo” (Santos, 2002, p. 309).
Por isso, acreditamos que algumas práticas festivas são férteis para criações artísticas inovadoras como, por exemplo, o Samba-Festival, em Coburg, a Lavage de Madeleine, em Paris, e o Carnaval de La Grande Motte. Embora devamos considerar que nem sempre as práticas e os discursos sociais se mantenham irredutíveis à racionalidade econômica (sobretudo se considerarmos, por exemplo, a dinâmica dos espetáculos de música brasileira na Europa e os desfiles carnavalescos dominados pelo interesse lucrativo de produtores culturais), estamos convencidos de que as práticas e os discursos sociais que acionam o imaginário cultural brasileiro apontam novos caminhos ao pensamento e à ação dos europeus a partir de certa paisagem festiva brasileira instrumentalizada por uma dimensão performativa e discursiva, possibilitadora de novos encontros e trocas culturais no continente.
As batucadas aqui referidas podem consistir em locais de sociabilidade onde se expressam experiências não remuneradas, fundamentadas numa experiência comum a todos, sendo ao mesmo tempo uma possibilidade de aprendizagem musical e desenvolvimento de sociabilidades. As batucadas são algo concebido particularmente fora do Brasil (no formato que existe na Europa), arregimentando pessoas interessadas em tocar instrumentos de percussão, sem necessariamente terem formação profissional ou mesmo experiências musicais anteriores.
Como vimos, as batucadas acontecem em festas populares e buscam operar seus intercâmbios sociais de modo a subverter a modelização da subjetividade dominante, produzindo espaços e práticas festivas espontâneas. Um dos componentes dessa espontaneidade está nos ritmos brasileiros tocados: samba-reggae, maracatu e ritmos de escolas de samba cariocas.
Por fim, ainda que seja um fenômeno novo e complexo, a influência do imaginário utópico brasileiro em práticas festivas europeias tem gerado modelos alternativos de festas, distinguidas por práticas culturais reterritorializadas que são operadas por utopias democráticas que toleram o jogo identitário e motivadas pela expansão duradoura e irreversível de uma diversidade cultural transnacional.
Resumo
Main Text
A presença do Brasil em práticas festivas europeias
Considerações finais