Dossiê temático 39/1: Discurso digital: desafios e problemáticas contemporâneas
Nas últimas décadas, a ampliação dos ecossistemas digitais – especialmente com o advento da Web 2.0, das redes sociais e das plataformas de comunicação digital – impôs novos desafios ao campo das pesquisas em linguagens, exigindo abordagens que integrem a dimensão tecnológica intrínseca às produções linguageiras. Esse contexto configura um cenário de tecnodiscursividade, conceito que enfatiza a constituição híbrida dos discursos digitais como resultado da articulação entre linguagem e tecnologia. Dessa forma, a análise do discurso digital considera, consoante Marie-Anne Paveau (2021), a co-presença da matéria linguística e técnica, reconhecendo que elementos como hiperlinks, URLs, hashtags e outras tecnopartículas formam uma nova ecologia discursiva que transcende as categorias tradicionais da linguística.
Neste cenário, destaca-se o papel da hipertextualidade e da deslinearização (Paveau, 2021), fenômenos estruturantes do discurso digital nativo que rompem com a linearidade textual tradicional. A hipertextualidade, marcada pela conectividade e pela multiplicidade de percursos possíveis na leitura e escrita, redefine o ato comunicativo, transformando o leitor em escrileitor – sujeito ativo e co-produtor do sentido em um processo dinâmico de leitura e escrita simultâneas. A deslinearização, por sua vez, manifesta-se tanto visualmente, por meio de cores e sublinhados, quanto sintagmática, semiótica e enunciativamente, modificando profundamente as formas tradicionais de produção e recepção discursiva (Paveau, 2021).
Somando a isso, no âmbito das tecnologias digitais, a emergência de discussões a respeito das inteligências artificiais (IA) de Large Language Model - Modelo de Linguagem de Grande Escala (LLM) - tem potencializado novas pesquisas. Trata-se de um momento marcado pela proliferação de sistemas computacionais sofisticados, característicos da chamada Quarta Revolução Industrial, Indústria 4.0 (Mavrepisa et al., 2024) ou “Revolução Artificial” (Bartoletti, 2020). Estes sistemas automatizados têm sido empregados na geração de diversos conteúdos, trazendo resultados impressionantes e articulando diferentes discursos políticos, ideológicos, entre outros. Tais circunstâncias trazem à tona desafios éticos, sociais e comunicacionais, evidenciando a necessidade de análises críticas que considerem os impactos da automação discursiva na desinformação e/ou no ativismo digital.
Por outro lado, as comunicações mediadas por computador (Herring, 2004) e os estudos de plataforma (D’Andrea, 2020; Burgess, 2021) – isto é, a organização de práticas discursivas em ambientes regulados por plataformas digitais – configuram novas formas de interação e de circulação de sentidos. Nesse âmbito, produtores se encontram na tensão entre coerção e agência – em termos de estratégias e de táticas (Manovich, 2009) – para a construção e negociação de sentido. A reflexão sobre esses processos é essencial para compreender a dinâmica atual do discurso digital, suas problemáticas e possibilidades.
Tendo em vista esses aspectos, o presente número tem por objetivo reunir pesquisas que problematizam as múltiplas dimensões do discurso digital contemporâneo, com foco nas transformações tecnolinguísticas e discursivas que emergem a partir das tecnologias digitais. A partir de uma perspectiva interdisciplinar, pretende-se reunir contribuições da Linguística Textual (LT), da Análise do Discurso Digital (ADD), da Comunicação Mediada por Computador (CMC), dos Estudos de Plataforma, entre outros. Este dossiê temático convida os autores a enviarem contribuições que explorem, entre outras questões, os seguintes eixos:
- Tecnodiscursividade, evocando categorias da ADD como fenômenos para a compreensão da escrileitura e do discurso digital nativo.
- Características da comunicação mediada por computador e os desafios impostos pelas plataformas digitais à produção e circulação dos sentidos.
- Estudos críticos sobre plataformas digitais, incluindo o papel dos algoritmos e das políticas dos ecossistemas digitais nas práticas comunicativas contemporâneas.
- Papel de espaços digitais nos fenômenos desinformativos, argumentativos e multimodais em distintas práticas discursivas.
- Tecnologias digitais e argumentação, os diferentes tipos de produção e multissemioses.
- Implicações das inteligências artificiais na geração de conteúdos, como textos de desinformação ou de diferentes modalidades argumentativas.
Em termos gerais, este número se apresenta como um espaço aberto para pesquisadores dos estudos da linguagem que investiguem as transformações textuais e discursivas provocadas pela convergência entre linguagens e tecnologias digitais. Esperamos que as contribuições aqui reunidas ampliem o debate teórico e empírico sobre as problemáticas contemporâneas do discurso digital e promovam reflexões fundamentais para os desafios sociocomunicacionais do nosso tempo.
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A Linha D’Água aceita trabalhos em português, inglês, francês ou espanhol. As submissões devem estar de acordo com as normas, disponíveis em https://www.revistas.usp.br/linhadagua/about/submissions
A revista está indexada em: Web of Science - Clarivate (ESCI), MLA, MIAR, Latindex, Linguistic Bibliography, DOAJ, dentre outros.
Prazo de submissão ENCERRADO: 31 de outubro de 2025.
Previsão de publicação: abril de 2026.
Editores convidados:
Eduardo Glück
eduardogluck@gmail.com
Centro de Linguística da Universidade NOVA de Lisboa (CLUNL, Portugal)
Universidade do Vale do Taquari (Univates, Brasil)
Evandro de Melo Catelan
evandrocatelao@utfpr.edu.br
Departamento de Linguagem e Comunicação/Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagens, Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR, Brasil)
Gabriel Isola-Lanzoni
isola.lanzoni@gmail.com
Universidade de São Paulo (USP, Brasil)
Grupo de Investigadores em Ciências da Linguagem da Universidade do Porto (GICIL/CLUP/U.PORTO, Portugal)
Referências citadas:
BARTOLETTI, Ivana. An artificial revolution: on power, politics and AI. Londres: The Indigo Press, 2020.
BURGESS, J. Platform Studies. In: CUNNINGHAM, S.; CRAIG, D. (org.). Creator Culture. [S. l.]: New York University Press, 2021. p. 21–38. Disponível em: https://doi.org/10.18574/nyu/9781479890118.003.0005.
D'ANDRÉA, Carlos. Pesquisando plataformas online: conceitos e métodos. Salvador: EDUFBA, 2020
HERRING, S. C. Computer-Mediated Discourse Analysis: An Approach to Researching Online Behavior. In: BARAB, S.; KLING, R.; GRAY, J. H. (org.). Designing for Virtual Communities in the Service of Learning. 1. ed. [S. l.]: Cambridge University Press, 2004. p. 338–376. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/product/identifier/CBO9780511805080A027/type/book_part. Acesso em: 4 jun. 2025.
MANOVICH, L. The Practice of Everyday (Media) Life: From Mass Consumption to Mass Cultural Production?. Critical Inquiry, v. 35, n. 2, p. 319–331, 2009. DOI: http://doi.org/10.1086/596645.
MAVREPISA, Philip; MAKRIDIS, Georgios; FATOUROS, Georgios; KOUKOS, Vasileios; SEPARDANI, Maria Margarita; KYRIAZIS, Dimosthenis. XAI for All: Can Large Language Models Simplify Explainable AI? arXiv:2401.13110v1 [cs.AI], 23 jan. 2024. DOI: https://doi.org/10.48550/arXiv.2401.13110
PAVEAU, Marie-Anne. Análise do discurso digital: dicionário das formas e das práticas. COSTA, José Luiz; BARONAS, Roberto Leiser (Org.). 1 ed. Campinas: Pontes, 2021.
