A fim de que se inicie um debate sobre a configuração e o percurso do herói na animação Rio, de Carlos Saldanha e Earl R. Jones, dirigida pelo primeiro, é importante que se delimite o ponto de vista da construção da narrativa e o que se entende por herói.
Com referência à própria delimitação do termo herói que aqui será utilizado:
Entendido dessa maneira e configurado nessa postura de superioridade perante as outras personagens da narrativa, é que se pretende começar a discutir o significado dessa suposta supremacia e desvendar as diversas possibilidades de entender esse herói-narrador.
Observa-se que a voz do narrador fala ao seu interlocutor de um centro hegemônico produtor de entretenimento direcionado a dois destinatários: o próprio espaço em que se produz o entretenimento, bem como outros espaços periféricos e também consumidores (muitas vezes alheiros a um olhar mais crítico) dessa forma de dominação em massa que é o cinema produzido pelos Estados Unidos da América do Norte.
A fim de que se verifique o percurso desse herói, é importante a observação de dois espaços percorridos por Blue, herói dessa narrativa. Tome-se como importante ponto de conflito os dois espaços em que a narrativa se desenrola, resumidos no quadro.
O jogo de oposições descrito no quadro já se percebe na abertura do filme, cujas cenas exibem um estereótipo do Brasil: o cenário do Rio de Janeiro visto do morro.
Nessa cena, o espaço urbano se apaga perante a exuberância da natureza. Esse fato se comprova mais adiante na narrativa, na cena em que personagem principal retorna ao país e seus condutores utilizam-se de um jeep para enfrentar a selva/cidade.
Importante ainda é perceber que esse cenário de abertura do filme não retrata a cidade do Rio de Janeiro propriamente dita, mas a selva, o interior do Brasil. Então, o filme não fala apenas da cidade do Rio de Janeiro, mas do Brasil e, em última análise, da Amazônia e de todas as reservas naturais do país. Desse modo, a cidade do Rio de Janeiro é focalizada do ponto de vista do interior brasileiro, de cima da Serra, de dentro da selva e com os olhos do estrangeiro imperialista.
Nessa exuberância em que o herói nasce, há um fator importante para ser analisado: o determinismo. Na caracterização da liberdade, figurativizada pelo samba, até no momento do nascimento (sair do ovo) se faz dançando e cantando o samba, sem trabalho e sem que se mostrem individualidades, subjetividades, pois todos são iguais e vivem para o divertimento, com características inatas para o lazer em meio a uma natureza que se mostra convidativa e fabulosa, perfeita para o ócio.
Tomam-se os atores desse espaço tropical como frutos de uma natureza exótica e esses se mostram tão exuberantes quanto ela ou mesmo como parte integrante de um espaço mitológico, sem diferenciação com a rica vegetação que se descortina. Assim, seria a repetição da “visão do paraíso”, relatada pelos colonizadores na época de sua chegada ao território brasileiro.
Quando o espaço é o território dos Estados Unidos da América do Norte, mudança essa ocasionada pela própria imposição de deslocamento do herói (roubo), há uma placa indicando a fronteira do estado de Minessota, placa essa em que se nota com a figura de um alce. Mas é no veículo que conduz um animal da fauna brasileira que está escrito “animais exóticos”. Então, o exotismo é visto apenas de um ponto de vista, ponto esse do narrador preconceituoso e avesso às diferenças.
O herói passa, então, por um processo de aculturação, “civilizado” pela sua doadora de competência, sua proprietária estadunidense. Fato esse que se percebe por meio de cenas como: escovar os dentes, usar torradeira, andar de skate e saber pilotar um carro de polícia Sua adequação ao espaço primeiramente estrangeiro se comprova quando ele diz, textualmente:
“- Isso que é vida!”, saboreando cookies e bebidas típicas da cultura fast food estadunidense, ainda protegido num espaço fechado.
Há, então, uma delimitação do novo espaço para o herói após seu deslocamento do Brasil para os Estados Unidos: a interioridade de uma sociedade institucionalizada em um universo estritamente marcado pela cultura. Nesse ponto da narrativa, aves negras jogam futebol na rua e têm uma maneira de se comunicar típica de uma parcela da sociedade excluída daquele país.
É o primeiro momento em que o mundo exterior passa a significar ameaça ao herói, instante em que surge uma personagem atrapalhada, usando um cachecol verde e amarelo. Tão inadequado àquela cultura como o herói Blue no início de seu processo de aculturação. Neste ponto da narrativa, Blue não reconhece sua nacionalidade, pois rejeita a personagem que diz da necessidade de levá-lo para o Rio e, para cumprir outra ação de herói, salvar a sua espécie.
Depois de um conflito, sua dona resolve levá-lo, deixando implícita a imagem ideológica norte-americana de promover a democracia, liberdade e preservação da vida em culturas menos favorecidas.
Trazidos para o Brasil, todos se assustam quando são imersos no carnaval do Rio de Janeiro. É o herói, já híbrido, voltando e não se reconhecendo mais como pertencente àquele grupo social, já que aparecem dois outros pássaros, mostrando a malandragem: tampa de lata de cerveja na cabeça.
Na reserva, Blue conhece aquela que será o seu objeto-valor, uma arara fêmea, essa também bastante estereotipada como figura de apelo sexual, esperta, matreira e com personalidade dominadora, com o objetivo de afastá-lo da sua cultura absolutamente ingênua. Quando é roubado na própria reserva por outro antagonista, a cena mostra que o vigia, com aparência viril, era na realidade um “gay”. Outro estereótipo, mais um preconceito veiculado num filme destinado às crianças. Mas quem executa o roubo é um menino típico do Brasil, um afro-descendente.
A personagem diz que era mais seguro no seu outro lar, pois ele não tem competência para viver no submundo, não consegue interagir com a marginalidade dos atores do novo espaço, com uma ética diversa daquela aprendida.
Nova fuga e retorno ao habitat natural, mas o herói não o reconhece. É recepcionado por mais preconceitos, agora preconceito contra mulher e contra a família brasileira, pois a personagem “tucana” mostra-se muito sensual, maquilada. Há ainda mais estereótipos: uma quadrilha de saguis. Mais um deslocamento do herói, mais preconceitos. O menino que o havia roubado aponta a existência de diversos códigos de ética no Brasil, pois mostra as leis de trânsito “paralelas” que podem ser utilizadas (cena da moto rodando pela favela).
Em todo o desenrolar da narrativa, a personagem precisa conviver com o universo da marginalidade para se destacar. Fato que fica evidente na boate, onde se fala sobre higiene, enquanto a letra da música é: “Eu quero festa, eu quero samba!” Blue é uma arara que não sabe voar, não tem competência para esse deslocamento e diz que seu lugar não é o Brasil, que odeia samba, bem como rejeita outras manifestações culturais.
No final, na luta decisiva com seus antagonistas, Blue ganha pela sua inteligência, habilidades de engenharia e, acima de tudo, bondade e ingenuidade, essas características bem marcadas nos heróis “americanos”. Ele aprende a voar para salvar o amor de sua vida.
Assim, pode-se citar novamente o dicionário de narratologia, já mencionado anteriormente, pois:
Esse desenlace, ou a sansão positiva que se dá ao herói-narrador tem como cena a subida pelo voo das duas personagens, a salvação que ele faz de um animal tipicamente brasileiro. Veio aqui para isso e, volta-se à dualidade primeira de espaços quando se percebe a música da última cena: “Rio é prazer, beleza e samba/ O sonho está vivo no Rio”.
Esse é o final da aventura de um herói que, iniciando o percurso narrativo por um motivo alheio à sua vontade, sofre um processo de aculturação que o faz sentir superior aos seus iguais, pela supremacia da sociedade na qual é imerso. Volta para cumprir o seu papel, um papel espelhado pelas duas personagens humanas que travam a mesma batalha cultural num segundo plano da narrativa.
Assim, segundo Campbell (2007):Momento de retomar a questão do narrador, pois, em muito o narrador e o herói se confundem nessa narrativa de animação. Sendo o filme concebido por um brasileiro, por que tamanho senso comum na identificação do território nacional e de seu povo? Diz-se senso comum porque as imagens que são construídas no filme são paráfrases de outras imagens já produzidas em território estadunidense e que foram capazes de mostrar ao mundo imagens tão estereotipadas como as de Carmem Miranda e Zé Carioca.
Esse herói saído de uma terra civilizada e disposto a se aventurar numa selva prodigiosa com o propósito de salvar seus semelhantes seria a narrativa da trajetória do próprio narrador? Pois, se trata de um imigrante brasileiro disposto a vencer desafios pessoais e profissionais na terra de prodígios: a os Estados Unidos da América com sua gigante indústria cinematográfica e seu poderio tecnológico? O salvamento dos semelhantes seria a inserção de uma personagem estereotipada do brasileiro que sai do país e volta para salvar o seu povo da corrupção? As respostas a essas questões, ainda que colocadas de maneira breve, são de fundamental importância para o início de um debate mais amplo na área de literatura para crianças e jovens, pois apontam algumas marcas da dominação ideológica veiculada em textos com o inocente rótulo de entretenimento.