Comunicação: os paradigmas da simetria, antissimetria e assimetria

communication: the paradigms of symmetry, antisymmetry and asymmetry

Winfried Nöth *

* Professor da Universidade de Kassel, Alemanha. Professor visitante do programa de Pós-graduação emTecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD) da PUC-SP. http://www. uni-kassel.de/~noeth. E-mail: noeth@uni-kassel.de.

Resumo

O trabalho examina como o processo da comunicação é representado (a) na etimologia da palavra comunicação, (b) nas metáforas cotidianas da comunicação e (c) nas teorias e nos modelos da comunicação do século XX. Estes refletem este paradoxo em três paradigmas da comunicação: os da simetria, antisimetria e assimetria. O beco sem saída da teoria da comunicação conforme o último cenário é confrontado com algumas soluções oferecidas na teoria da comunicação de Charles S. Peirce.

Palavras-chave: Comunicação, metáforas da comunicação, modelos da comunicação, simetria, antissimetria, conjunção, disjunção, ruído, caixa preta, Peirce

Abstract

The paper examines how the process of communication is represented (a) in the ety- mology of the concept of communication, (b) in everyday metaphors of communica- tion, and (c) in 20th century theories and models of communication. These reflect this paradox in three different scenarios: the paradigms of symmetry, antisymmetry and asymmetry. The dead end into which communication theory is led by the proponents of the latter paradigm is contrasted with some solutions offered by Charles S. Peirce’s communication theory.

Keywords: Communication, metaphors of communication, models of communication, symmetry, antisymmetry, conjunction, disjunction, noise, black box, Peirce

Os conceitos da conjunção e da disjunção na raiz da palavra comunicação1

1. O autor agradece a Amaral Gurick pela revisão cuidadosa deste texto e pelas suas sugestões terminológicas pertinentes e a Priscila Borges para o design dos diagramas 7-11.

Já na raiz da palavra comunicação encontram-se paradoxos e contradi-ções. A origem desta palavra nos leva à língua latina, onde encontramosas palavras communis comum’, communio ‘comunidade’ e communicare‘fazer’ ou ‘tornar comum’. No campo lexical das origens da palavra latina communicare também se encontram as palavras mutare ‘mover’, ‘mudar’, ‘trocar’, mutuus, ‘recíproco’, ‘em troca’ e commutare, ‘mudar’, ‘transformar’,‘negociar’, ‘vender’.

Todos estes sentidos são bem compatíveis ou estreitamente relacionadoscom o sentido da palavra comunicação, pois comunicação é um ‘fazer comum’,que implica ‘participação’, ‘convivência’ e ‘convívio’, comunicação tem a havercom intercâmbio social e troca de informação e pode levar a mudanças dopensamento ou do conhecimento.

Porém, communicare, em latim, também tem um outro sentido, que vainuma direção oposta a esses conceitos, pois communicare não só significa ‘fazercomum’ ou até ‘unificar’, mas também algo oposto, que é ‘dividir’ e ‘separar’. Araiz da palavra comunicação nos leva então também ao domínio de duas lógicasopostas. Enquanto o sentido ‘fazer comum’ pertence à lógica da conjunção, osentido de ‘separar’ nos leva ao domínio da lógica da disjunção:

lat. Communicare

‘fazer comum’, ‘unificar’ ‘dividir’, ‘separar’

~ lógica da conjunção ~ lógica da disjunção

Que a ideia de que comunicação tenha a haver com separação é plausível do ponto de vista daquele que comunica, pois quem comunica também dá algo que é dele próprio a alguém – ideias, pensamentos ou sentimentos. Mas a separação do emissor das suas ideias uma vez que elas são comunicadas é só uma separação num sentido restrito. Num outro sentido, o emissor não se separa de maneira nenhuma das suas ideias, pois o conhecimento delas fica com ele. O emissor só se desprende das suas ideias no sentido de que depois da comunicação delas ele não é mais o único que tenha o conhecimento das suas ideias, porque a partir do momento da comunicação delas ele divide este conhecimento com o receptor.

Subjacente às lógicas da conjunção e da disjunção na comunicação não está, portanto, a oposição entre saber e não saber algo, mas entre ter ou não ter em comum este saber, quer dizer, a oposição entre informação privada e informaçãocompartilhada. É interessante, neste contexto, que a palavra privado, na sua origem, também implica um sentido que nos remeta à lógica da disjunção. Na origem do sentido de privado se encontra a ideia da não-participação na comunidade.

É o tipo específico da oposição entre a lógica da conjunção e a lógica da disjunção que constitui a diferença entre a troca de palavras na comunicação e a troca de bens no comércio ou de presentes no dom. Na comunicação, a informa- ção passa de uma mente para outra e o resultado é que as ideias multiplicam-se nas mentes. No comércio, pelo contrário, o vendedor se separa efetivamente do objeto vendido, cuja propriedade passa exclusivamente ao novo proprietário. Enquanto a disjunção comercial é de fato uma disjunção do vendedor da pro- priedade do objeto da troca, que passa do vendedor para o comprador, as ideias comunicadas numa mensagem por um emissor vão sempre permanecer ideias dele, ainda que estejam, após a disjunção comunicativa, também na mente do receptor. Comunicação, portanto, resulta numa multiplicação das mensagens emitidas, que, desta maneira, se tornam propriedade comum.

As duas lógicas opostas subjacentes aos processos comunicativos tam- bém se revelam na origem das palavras participar e compartilhar, que são quase sinônimos do verbo comunicar. Enquanto o prefixo com- da palavra compartilhar implica a lógica da conjunção, o radical, -partilhar, com a sua referência à ideia de partir implicando ‘separação’, pertence à lógica da se- paração. Participar igualmente implica a noção de que comunicação é um fazer-parte-de. No inglês americano contemporâneo, a palavra to share em expressões como I am happy to share these ideas with you exprime essa ideia da comunicação como separação de um sujeito de um saber. Em português, as palavras participar e compartilhar contém este sentido, que sugere que tornar comum também implica a ideia de separar-se ou desprender-se de algo. Os elementos que compõe a palavra compartilhar significam ‘com’ + ‘fazer partir/ separar’. Em alemão, um quase-sinônimo de comunicação (Kommunikation)é Mitteilung. Na sua etimologia, esta palavra contém uma contradição em si,pois ela significa literalmente ‘com-separação’.

Ainda mais contradições aparecem na raiz da palavra comunicaçãose a considerarmos em seu campo lexical. O radical da palavra comum seencontra também nos substantivos latinos munus (com as variantes fonéticasde monus e moenus) e moenum. Enquanto moenus significa ‘muro muni-cipal de defesa’, a derivação do mesmo radical munus significa ‘serviço’,‘tributo’ e também ‘presente’ (cf. port. remuneração). Federico Casalegnocomenta o seguinte sobre esta duplicidade de sentidos associados à palavracomunicação:

Considerando a etimologia da palavra ‘comunicação’ confrontamo-nos com a ambivalência da palavra latina cum-moenia, que significa ‘com um muro’ e cum-monus, que significa ‘com um presente’. Assim ‘comunicação’ pode tanto instau- rar barreiras quanto dar preferência ao estabelecimento de relações (Casalegno, 2005: 21).

O seguinte diagrama resume e representa as lógicas opostas neste campo lexical:

Moenia munus / moenus

‘muros municipais de defesa’ ‘presente’, ‘serviço’, ‘dever’, ‘tributo’ (cf. port. remuneração)

cum-moenia ‘com um muro’ cum-munus ‘com um presente’

~ barreiras ~ relações sociais

~ lógica da disjunção ~ lógica da conjunção

Em termos de simetria, as lógicas da conjunção e da disjunção participam tanto do modelo da simetria, quanto do modelo da antissimetria. A ideia da conjunção pertence principalmente ao modelo da simetria. O invariante, quer dizer, aquilo que é comum ao emissor e ao receptor da mensagem, é uma característica da simetria. Porém, qualquer imagem de uma figura simétrica bilateral também representa um elemento de disjunção na medida em que as duas partes da imagem são separadas pelo eixo da simetria que distingue a parte direita da parte esquerda da forma simétrica.

metáforas cotidianas da comunicação: erros e insights

Nas metáforas da língua cotidiana, nas quais a interação comunicativa na vida cotidiana é descrita, se encontram erros, mas também insights interessantes sobre a natureza da comunicação. As imagens que estas metáforas dão dos processos comunicativos refletem a ambivalência da dupla lógica já presentes nas origens dos verbos comunicar e compartilhar.

O estudo das metáforas é um dos temas centrais da atual linguística cognitiva. Entre os trabalhos especificamente dedicados às metáforas da co- municação estão Reddy (1979), Lakoff & Johnson (1980), Krippendorff (1993,1994) e Grady (1988).

A metáfora mais antiga da comunicação é provavelmente a do transpor-te de uma mensagem por um mensageiro (Krippendorff, 1994). Um exemplodesta metáfora se encontra na seguinte frase num blog brasileiro da internet: “Recomendo o site […], que só traz boas notícias.”

Embora esta maneira de falar sobre a comunicação entre os autores do blog e os seus leitores não mencione um mensageiro explicitamente, tal inter- mediário é pressuposto pelo verbo usado na expressão trazer notícias. Trazer, como se sabe, significa literalmente transportar um objeto de um lugar para outro e entregá-lo a alguém. Ora, na verdade, este blog só publica boas notícias na internet; literalmente ele não traz nada. A metáfora do verbo trazer sugere, portanto, que as notícias são objetos e o blog é o mensageiro, que transporta notícias para os leitores.

As metáforas do transporte de mensagens evidentemente se diversifi- caram e modernizaram com o progresso da tecnologia dos meios de trans- porte e da comunicação. Hoje, em vez de mensageiro pedestre, temos veí- culos motorizados que trazem mensagens em autoestradas e, desde a era da telecomunicação, as mensagens migram por fios e ondas eletromagnéticas. Todos estes meios de transporte e de comunicação apresentam novas imagens metafóricas para falar sobre a comunicação cotidiana. Assim, as metáforas cotidianas da comunicação continuam a servir-se também de imagens de transporte material.

O cenário do transporte implica ao menos três subcenários:

(1) Mensagens são objetos,

(2) Objetos são transportados em contêineres, e,

(3) Há um caminho, canal, ou conduto de transporte.

A linguística cognitiva contemporânea tem estudado o primeiro e o se- gundo destes subcenários sob o nome de metáforas do contêiner e o terceiro como as metáforas dos condutos.

Conforme essas metáforas, mensagens são transportadas em contêineres, que têm um objeto como conteúdo. Emissores despacham, transmitem, enviam ou encaminham esses objetos por meio de veículos em condutos tal como ca- minhos, tubos, canais ou fios elétricos para receptores.

Alguns exemplos de metáforas que representam a maneira como comu- nicamos assim são:

(i) Processos são encaminhados.

A metáfora (i) sugere que processos são remessas despachadas, por um meio de um transporte não mencionado, pelo conduto de um caminho.

(ii) Filósofos seguem as trilhas de Nietzsche.

Na metáfora (ii), os condutos pelos quais as ideias do filósofo Nietzsche chegam para os pensadores de hoje são trilhas.

(iii) Essas palavras carregam peso.

(iv) Me enchi daquilo que ele está dizendo.

As metáforas (iii) e (iv) representam a mensagem como objetos pesados. Em (iii), o contêiner são as palavras mesmo e em (iv), é uma espécie de saco.

(v) As ideias fluem.

(vi) Emissoras de rádio são canais.

(vii) O rio de palavras deságua num mar de trivialidades.

(viii) Vazamento de documentos confidenciais sobre a Guerra no Afeganistão. Nas metáforas em (v) até (viii), as mensagens são líquidos, e os condutos do transporte são rios, canais e tubos.

(ix) Perdi (ou: reatei) o fio da conversa.

(x) A internet é uma rede de comunicação, etc.

No exemplo (ix), as palavras da conversa cotidiana formam um fio, que aparen- temente ainda não pode ser o fio elétrico da comunicação telefônica, visto que um fio elétrico não pode ser meramente atado, e a metáfora da rede da internet. (x) também é emprestada da imagem de redes mais primitivas tal como aquela utilizadas por pescadores.

Em resumo, as metáforas do transporte da mensagem por meio de condu- tos pressupõem a metáfora da mensagem como um objeto em um contêiner, que podem ser pacotes ou veículos. Diz-se, por exemplo, que a língua é um veículo de ideias. Fala-se de pacotes de ideias. Os contêineres mais comuns das mensagens são as palavras, os conteúdos destes contêineres são os significados que eles contêm, as ideias do emissor.

A metáfora do conduto pressupõe, portanto, uma segunda metáfora da comunicação referente à mensagem transmitida, chamada de metáfora do contêiner.

Quando falamos, por exemplo, que um artigo contém muita informação, usamos esta metáfora, pois ela representa o artigo como um contêiner, no qual se encontra informação. Críticos da ideia de que palavras sejam os contêineres de significados chamam esta imagem da natureza do significado deprecativamente de teoria semântica de balde (“bucket theory of meaning”; cf. Krippendorff, 1993). Seja como for, essa metáfora é muito viva, sendo usada tanto quando falamos de discursos cheios de ideias quanto de frases ocas. A própria palavra conteúdo é uma metáfora que pressupõe um contêiner no qual se encontra este conteúdo.

Mas voltemos à metáfora do conduto: depois de colocar a sua remessa num contêiner, o emissor a envia pelo caminho de um conduto para o destinatário. Este conduto representa o meio ou a mídia técnica de comunicação. Ao final do transporte das palavras desta maneira despachadas, o destinatário recebe a remessa, retira o conteúdo do contêiner e lê a mensagem.

O meio de comunicação que funciona o mais literalmente desta maneira é o meio do correio pneumático usado nas metrópoles do século 19 e ainda hoje em bancos, hospitais e outras empresas para correspondência interna (Quadro 1):

Quadro 1. Correio pneumático

O conduto neste meio de comunicação é o sistema de tubos pneumáticos. Para mandar uma carta, o emissor a coloca numa cápsula (Quadro 2), que é literalmente o contêiner neste cenário. A cápsula é fechada e inserida no sis- tema tubular. O emissor aciona a pres- são pneumática, e assim o contêiner é transportado para o seu destinatário. O receptor retira a cápsula do tubo, abre-a, retira a carta do contêiner e lê o conteúdo.

Quadro 2. Cápsula do correio pneumático (http://www.bessa- laguardia.com.br/ best_charger.htm).

Outras metáforas da comunicaçãoorientam-se segundo tecnologias nas quais as entidadestransmitidas e os caminhos do transporte são outros, taiscomo:

• as metáforas hidráulicas, onde a mensagem é um líquido, que flui num rio ou canal;

• as metáforas telefônicas, nas quais o caminho da mensagem é o fio condutor;

• as metáforas da comunicação por ondas de rádio, conforme as quais in- formações estão no ar, ou em caso de problemas de comunicação, ficamos fora do ar.

Apesar das diferenças nas imagens destas metáforas da comunicação, elas têm alguns elementos em comum, que revelam erros e verdades sobre os pro- cessos da comunicação.Entre as verdades está o insight trivial de que

• comunicação ocorre entre ao menos dois comunicadores por meio de signos externos transmitidos do primeiro para o segundo.

Entre os erros destas metáforas se destacam as imagens de que

• comunicação é transferência de objetos provindo de um emissor, que se separa deles conforme a lógica da disjunção e que

• os objetos de transferência são preservados na sua essência ao percorrerem o caminho que os leva das suas origens até os seus destinos.

As três formas da simetria oferecem modelos adequados para caracterizar os diferentes cenários metafóricos da comunicação.

• O cenário da simetria (Quadro 3) caracteriza metáforas que retratam o receptor como um agente que faz exatamente a mesma coisa que o emis- sor – só na ordem inversa. Ele retira o mesmo o conteúdo do contêiner da mensagem que o emissor lá colocou, e assim ele entende a mensagem conforme a intenção do emissor:

Quadro 3. Cenário da simetria

• O cenário da antissimetria (Quadro 4) no processo da comunicação é uma variante do cenário da simetria. Igual ao cenário da simetria, ele postula que o conteúdo entendido pelo receptor é o mesmo que aquele enviado pelo emissor, mas este cenário enfatiza a diferença entre os papéis dos participantes do processo comunicativo. A diferença mais frequentemente enfatizada é que emissor é um agente ativo que determina o processo enquanto o receptor inf luenciado pelo emissor, é reduzido no seu papel à passividade:

Quadro 4. Cenário da antissimetria

• O cenário da assimetria (Quadro 5) diz o oposto: Comunicação é uma in- teração antagônica, um intercâmbio entre defensores de interesses opostos:

Quadro 5. Cenário da assimetria

Uma caricatura alemã do modelo da antissimetria comunicativa (Quadro6) é o funil de Nuremberg, que representa a comunicação entre professores ealunos como a transmissão do saber para as cabeças dos alunos por meio deum funil

:

Quadro 6. O funil de Nuremberg.

O funil de Nuremberg exemplifica também uma outra metáfora da comu- nicação do paradigma antissimétrico chamada de

• metáfora da comunicação como controle.

Este cenário pertence ao paradigma da comunicação antissimétrico. Ocenário é simétrico na medida em que ele pressupõe que o mesmo conteúdopasse das mentes do emissor às mentes dos receptores. Ele é antissimétrico namedida em que os papeis do emissor e do receptor são desiguais. Esta metáforaapresenta a imagem de uma desigualdade gritante entre os participantes deuma situação comunicativa. O poderoso emissor influencia ou até controla osseus receptores usando as mídias como instrumentos de manipulação. Esta é aimagem que os críticos ideológicos atribuem ao papel da publicidade nas mídiasdas massas: as comunicações dos comunicadores poderosos da publicidademanipulam os consumidores, e o resultado é que os consumidores seguem asdiretivas dos publicitários sem refletir. Se fosse tão simples, bastaria aumentara publicidade para aumentar o lucro.

O cenário da assimetria fundamental da comunicação caracteriza a

• metáfora da comunicação como guerra.

Esta metáfora é bastante comum em cenários de argumentação, onde os locutores atacam os seus adversários, e até se encontram no ambiente univer- sitário. A expressão defesa da tese (de mestrandos ou doutorandos) apresenta a imagem de que a comunicação acadêmica seja uma atividade militar (cf. Lakoff& Johnson, 1980, cap. 1-3, para mais metáforas desta categoria).

A metáfora da comunicação como guerra segue evidentemente a lógicacomunicativa da disjunção. Afinal, quem está em guerra não está unido.

A metáfora do conduto implica um processo, ou uma trajetória narrativa no sentido da semiótica narrativa de Greimas, que começa num estado inicial de disjunção entre o saber do emissor e do receptor e termina num estado de conjunção. O cenário da simetria comunicativa segue evidentemente a lógica da conjunção, mas aquela da antissimetria também. O modelo da comunicação como controle apresenta um cenário de uma conjunção forçada.

Os cenários, insights e erros que se encontram nas metáforas cotidia- nas da comunicação reencontram-se também nas teorias da comunicação, que são tão diversas quanto as metáforas cotidianas da comunicação. Basta mencionar como exemplos destas correspondências entre o cotidiano e o teórico os dois antípodas da sociologia da comunicação: Jürgen Habermas e Pierre Bourdieu.

Se “para o filósofo alemão a comunicação é considerada sinônimo da busca de entendimento, [e] para Bourdieu ela é sinônimo de disputa”, como resume Sampaio (2001: § 4), as ideias dos dois teóricos têm certamente correspondências nas metáforas que representam comunicação como um acontecimento simétrico de um lado e as metáforas da comunicação como guerra do outro.

O modelo clássico da teoria da comunicação: o paradigma da antissimetria

O mais famoso, mas ao mesmo tempo mais notório modelo da comunicação é o modelo de Claude Shannon (1916-2001) e Warren Weaver (1894-1978), que representa comunicação conforme o cenário da telecomunicação (Quadro 7).

Quadro 7. O modelo da comunicação conforme Shannon e Weaver (1949)

Neste modelo, as instâncias dos interlocutores são divididas em duas, res- pectivamente. O locutor é a fonte da mensagem; ele comunica por meio de um transmissor. O ouvinte é o destinatário; ele se serve de um receptor. O locutor produz ondas acústicas, que o transmissor transforma em sinais elétricos, que passam em forma de energia elétrica por meio de um fio metálico, chamado canal. Neste canal a qualidade dos sinais pode ser prejudicada por interferências, que o modelo representa como ruído. O receptor do destinatário transforma os sinais transmitidos em sinais acústicos para o ouvinte.Numa versão popularizada e um pouco expandida deste modelo na wiki- pédia, o cenário é representado assim (Quadro 8):

Quadro 8. O modelo da comunicação de Shannon e Weaver conforme http://en.wikipedia.org/wiki/Communication#cite_ref-6.

Nesta versão do modelo, a fonte e o destinatário são representados como duas pessoas. A mensagem é a folha impressa no centro. Ondas eletromagné- ticas, representadas por linhas em curvas, servem como canal. O transmissor e o receptor são os instrumentos entre as duas pessoas e a mensagem está no centro. O ruído é o raio caindo em cima da mensagem.

As duas pessoas, com a exceção do cabelo, parecem agentes simétricos. A boca aberta sugere que tanto o primeiro quanto o segundo estão falando. O canal de transmissão é o mesmo para os dois. Nem por isso, os elementos de simetria são meramente superficiais. No cenário original de Shannon e Weaver (Quadro 7) predomina a antissimetria. Em verdade, o receptor da mensagem fica mudo e restringe-se ao papel passivo de receber a mensagem tal como ela foi emitida pelo emissor. A comunicação é unidirecional como sublinham as flechas da esquerda para a direita. O emissor é o agente ativo, enquanto o receptor permanece passivo. Esta relação entre os agentes tem a característica de uma antissimetria.

É quanto a este respeito que o modelo de Shannon e Weaver foi criticado pelos pesquisadores da comunicação, e é por isso que o modelo de Shannon e Weaver é muitas vezes citado como um antimodelo da comunicação. Conforme a crítica de S. J. Schmidt, por exemplo, “emissor e receptor aparecem nesse modelo apenas como dados formais, como caixas pretas, como máquinas de Input-Output ou então como computadores que trocam informação entre si” (1996: 52) e Sampaio acrescenta: “A própria relação entre os agentes comuni- cacionais, na complexidade e pluralidade de seus interesses e concepções, é desconsiderada, assim também como é negligenciada a discussão acerca do contexto em que se verifica a comunicação” (2001: §2). Comunicação não é unidirecional e não corresponde ao cenário antissimétrico da comunica- ção controlada porque o locutor, na verdade, é influenciado pela presença do ouvinte, e o ouvinte, desta maneira, se torna uma espécie de coautor da mensagem do locutor.

Uma das primeiras tentativas de melhorar o modelo de Shannon e Weaver com a finalidade de representar um elemento de simetria no processo da comu- nicação foi a de introduzir o elemento da retroalimentação. Retroalimentação é um termo técnico das tecnologias telecomunicativas, que descreve proce- dimentos em que os sinais emitidos por um emissor são retransferidos para este mesmo emissor com o objetivo de controlar a qualidade da transmissão. O modelo do Quadro 8 representa este elemento na forma da flecha curvada, que conecta o locutor com o ouvinte da mensagem. Assim representada, a retroalimentação não é, portanto, um mecanismo da tecnologia do emissor, mas ela representa uma influência do ouvinte sobre o locutor, que dá sinais sobre a maneira como ele entende ou não entende o primeiro. Retroalimentação na comunicação neste sentido é, na verdade, uma metáfora que representa o ouvinte como um agente participando ativamente na comunicação. Porém, retroalimentação no sentido literal é em verdade também um cenário do controle. No sentido da tecnologia radiofônica não é o receptor que aciona retroalimentação, mas o próprio emissor. Por trás do cenário metafórico da retroalimentação não se encontra, portanto, um agente receptor ativo, mas o próprio emissor como um agente controlador da eficiência da própria influência sobre o destinatário.

O modelo semiótico dos dois códigos: o paradigma da disjunção parcial

Resta examinar dois outros elementos fundamentais do modelo clássico da comunicação, o ruído e o código. Ambos evidenciam igualmente a ambiva- lência da comunicação na sua bipolaridade entre as lógicas da conjunção e da disjunção.

No sentido técnico, ruído é um defeito da qualidade da transmissão ra- diofônica. Trata-se de uma interferência indesejada entrando no caminho do canal. No sentido semiótico, a metáfora do ruído introduz um terceiro agente no processo comunicativo cuja finalidade é a de impedir o entendimento entre o locutor e o ouvinte. O ruído é o vilão no cenário da semiótica narrativa.Para quem entende comunicação conforme o paradigma da simetria como uma interação comunicativa com a finalidade de compartilhar informação ou de chegar a um entendimento mútuo, o ruído só tem conotações negativas. A lógica do ruído é a lógica da disjunção e corresponde ao modelo da assimetria.

A metáfora do código tem sua origem na criptografia militar. Por razões de segurança, o emissor codifica a mensagem conforme as regras de um có- digo conhecido só por ele e pelos destinatários previamente informados. O destinatário decodifica a mensagem recebida na ordem inversa e a traduz conforme as regras do mesmo código em um texto não codificado. Assim, o cenário do código exibe tanto as características da lógica da disjunção quanto da conjunção, a primeira na medida em que ele exclui o destinatário indese- jado, a segunda na medida em que ele faz a comunicação entre os informados mais segura.

O cenário criptográfico do código começou a ser usado como metáfora para os processos da produção e da recepção de mensagens não cifradas por Shannon e Weaver (1949: 36). Os autores concebem as transformações das on- das acústicas em sinais transmitidos na forma de impulsos eletromagnéticos metaforicamente como um processo de codificação e a atividade inversa do destinatário como uma decodificação da mensagem. O pressuposto deste ce- nário é uma simetria fundamental entre as mensagens emitidas pelo locutor e recebidas pelo destinatário, que só o ruído pode prejudicar. Na base do modelo original do código se encontram duas lógicas opostas, a lógica da conjunção, que caracteriza o entendimento simétrico desejado entre os aliados, e a lógica da disjunção, que caracteriza a exclusão desejada dos inimigos. Enquanto a inclusão do receptor corresponde ao modelo da simetria comunicativa, a sua exclusão corresponde ao modelo da assimetria.

O modelo do código era predominante na semiótica estruturalista das décadas de 60 até 80 do século passado. Entre os autores inspirados por este elemento do modelo da comunicação estão Eric Buyssens, Max Bense, Luis Prieto, Roman Jakobson, Jurij Lotman e Umberto Eco (cf. Nöth 1990, 1996, Santaella e Nöth, 2004). Diferentemente da lógica da criptografia, que exigia que o emissor e o receptor usassem exatamente o mesmo código, os semioti- cistas da tradição linguística aplicam o conceito de código como metáfora da competência linguística e cultural do emissor e receptor da mensagem. Neste sentido, os códigos dos locutores e ouvintes evidentemente se distinguem sempre. Uma vez que o conceito de código virou metáfora para o repertório de todos os signos na competência do emissor e do receptor, o modelo tinha que levar em consideração diferenças fundamentais entre os códigos dos emissores e dos receptores.

 

Quadro 9. Os códigos do emissor e do receptor: conjunção parcial (preto) e disjunção predominante (branco).

O Quadro 9 mostra um modelo que representa os códigos do emissor e do receptor como dois círculos entre os quais há uma zona de intersecção, em preto. As zonas em branco representam o repertório daqueles signos que não podem ser usados para comunicar por serem incompreensíveis ao ouvinte. Só o conhecimento comum dos signos da zona da intersecção em preto torna possível a comunicação entre o locutor e o ouvinte. O pequeno tamanho da intersecção neste modelo até sugere que se trata de dois comunicadores bem desiguais. Porém, o modelo tenta ser politicamente correto: nem um dos dois comunicadores é caracterizado por um repertório sígnico menor. Neste ponto o modelo é claramente influenciado pela ideologia da sociolinguística dos anos 1960 (Bernstein, por ex.), que defendia a tese de que códigos linguísticos da geração dos jovens e daquela dos pais e professores eram meramente dife- rentes. Segundo o fundador da sociolinguística Basil Bernstein, o aluno, por ex., não tem um vocabulário significativamente menor, um código restrito, mas meramente outro código, diferente do código elaborado do professor. A falta de um receptor em entender o emissor, nesta tradição, não é devido a um repertório restrito de signos, mas só ao fato de que os dois repertórios são diferentes.

Comunicação, nestas circunstâncias, só pode resultar num entendimento parcial. A impossibilidade de uma congruência entre a mensagem emitida e a mensagem recebida é meramente devida a uma diferença entre os horizontes dos dois comunicadores.

Quadro 10. A interseção entre os códigos do emissor e do receptor: o lugar que possibilita a comunicação.

O Quadro 10, por sua vez, representa um modelo mais detalhado da di- ferença entre os repertórios de um emissor e um receptor e visualiza porque um entendimento mútuo perfeito não seja inteiramente possível. O modelo mostra que os signos E, F e G do emissor (esquerda) não vão ser entendidos pelo receptor, porque estes signos faltam no repertório de signos dele. O repertório do receptor não é menor, mas tem o mesmo número de signos. Enquanto nele faltam os signos E, F e G, ele contém os signos h, i, e j, que faltam no repertório do emissor. Este modelo da comunicação baseado em diferenças de código apresenta um outro aspecto do insight de que a comunicação segue tanto a lógica da conjunção quanto aquela da disjunção. A zona da conjunção é a intersecção entre os dois círculos; a disjunção no entendimento entre os dois comunicadores é representada pelas seções restantes à direita e à esquerda, que simbolizam a medida em que comunicação não é possível.

A simetria entre o emissor e o receptor conforme este cenário é, portanto, só uma simetria parcial. Na medida em que os dois círculos contêm um repertório de signos diferentes, eles são assimétricos.

Os cenários pós- estruturalistas da comunicação: o paradigma da disjunção fundamental

Os dois modelos da comunicação que consideramos até agora são caracterís- ticos de dois paradigmas dominantes da teoria da comunicação do século XX (cf. Santaella & Nöth, 2004).

O primeiro é o modelo da teoria da informação dos anos 1950 e 1960. O segundo pertence ao paradigma da semiótica dos códigos dos anos 1960 e1970. O primeiro se baseia no ideal de uma comunicação conforme a lógica da conjunção e da simetria entre o emissor e o receptor da mensagem. O segundo introduz elementos da lógica da disjunção e da antissimetria entre o emissor e o receptor na medida em que o código do emissor difere do código do receptor.

A partir dos anos 1980 apareceram novos paradigmas nos horizontes das teorias da comunicação e da interpretação, que radicalizaram o modelo da disjunção parcial entre o emissor e o receptor até a um ponto em que se pode dizer que este paradigma postula uma assimetria fundamental (Quadro 5) na comunicação.

O paradigma pós-moderno caracteriza as mais variadas vertentes das teo- rias da comunicação e da representação baseadas em pressupostos muito diver- sos. Entre eles se destacam o desconstrutivismo fundado com a gramatologia de Derrida, a semanálise de Kristeva, o pós-estruturalismo de Roland Barthes, a teoria construtivista da comunicação, a teoria dos sistemas de Luhmann e o construtivismo radical (cf. Sampaio, 2001). Derrida, por exemplo, postula a impossibilidade da comunicação (Chang, 1996: 171-220). Não é possível de se chegar a qualquer acordo sobre o significado de um texto, visto que os seus significados são insolúveis e permanentemente deferidos no processo da inter- pretação, escapando, assim, de qualquer determinação, de maneira que um acordo mútuo entre os emissores e receptores do texto é impensável.

Igualmente radical é Niklas Luhmann nas suas posições sobre a assimetria fundamental da comunicação. Se baseando em axiomas do construtivismo e da teoria dos sistemas, Luhmann até postula a impossibilidade ou ao me- nos a improbabilidade da comunicação e que comunicação seja um processo essencialmente autorrefencial, visto que qualquer mente só pode construir o próprio pensamento sem ter conhecimento daquilo que o outro pensa (cf. Nöth, 2001). Conforme Luhmann (2005: 30), comunicação é impossível porque mentes são sistemas cognitivos fechados. A mente do emissor tanto como a mente do receptor são caixas pretas, que não permitem ter informação recí- proca sobre o pensamento do outro. O receptor não pode enxergar aquilo que acontece dentro da cabeça do emissor e vice versa; se um tivesse acesso aos pensamentos do outro, a comunicação seria desnecessária e não aconteceria (Luhmann, 1984: 156). O paradoxo é que o emissor também não pode ver o que acontece dentro da sua própria caixa preta. O paradoxo foi formulado por Wittgenstein, nas seguintes palavras: “Mas quando se diz ‘Como posso saber o que ele quer dizer, sendo que eu só vejo os seus signos’, eu digo: ‘Como é que ele pode saber o que ele quer dizer, sendo que ele também só tem os seus signos’” (Wittgenstein, 1953: 504).

Não é possível, neste ponto, entrar em mais pormenores das diversas posi- ções do paradigma da comunicação baseadas na lógica da disjunção, paradigma que tanto se opõe aos cenários subjacentes à maioria das metáforas cotidianas da comunicação quanto aos modelos da comunicação do paradigma clássico da conjunção. Basta restringir-nos a um sumário de Cary Nelson das críticasdos pós-estruturalistas Roland Barthes e Michel Foucault à teoria clássica da comunicação, a qual eles tentam desconstruir como um mito (Foucault) ou uma mera criação verbal que não reflete nenhuma realidade (Barthes). Este sumário da desconstrução pós-estruturalista da ideia clássica da comunicação baseada na lógica da conjunção segue reflexões em que o autor contrapõe o papel intrusivo do ruído na comunicação conforme Shannon e Weaver ao modelo pós-estruturalista da comunicação como disjunção:

No pós-estruturalismo […], o ruído é a mensagem. O ruído é o emissor; o ruído é o receptor. O ruído nem está fora da mensagem nem é um suplemento à verdade da mensagem. O ruído é o processo semiótico que constitui mensagens; é a subs- tância delas: é irreduzível. Essa é a extensão radical do argumento de Saussure: só há diferenças; não há termos positivos (Nelson, 1985: 9).

O modelo pós-estruturalista da comunicação seria, portanto, uma mo- dificação do modelo de Shannon e Weaver (Quadro 7) no qual, na viagem da fonte ao destinatário, a mensagem se perderia inteiramente, sendo substituída por ruído. O ruído, conforme este modelo, não seria uma interferência externa interferindo no canal da transmissão, mas uma transformação autônoma da mensagem sem influência externa. A reformulação do Quadro 7 conforme estas premissas seria o Quadro 11, embora seja preciso dizer que os pós-estru- turalistas se opuseram programaticamente a qualquer modelo diagramático da comunicação.

Quadro 11. O modelo hipotético da comunicação do paradigma da comunicação conforme a lógica pós-moderna da disjunção.

Comunicação significa então a transformação de uma mensagem em ruído – ou para dizê-lo de uma maneira que soe menos radical – a mensagem do emissor, conforme o paradigma da assimetria, é, por definição, interpretada de uma maneira inteiramente diferente pelos emissores de um lado e pelos receptores do outro. Ora, se isto é assim, o conceito da comunicação não só difere inteiramente das ideias históricas e cotidianas sobre a maneira como comunicamos, mas ele também resulta no seguinte paradoxo insolúvel: os teóricos também comunicam, mas se eles comunicam uma mensagem para os seus leitores e estes a transformam em ruído, como é que os teóricos podem esperar disseminar as suas ideias? E se eles não podem ter nenhuma esperança de disseminar as suas ideias, eles não podem escapar do dilema da seguinte questão: por que será que os teóricos, nem por isso, continuam a comunicar as suas ideias?

Teoria da comunicação oferecida por peirce

Mostrar os caminhos que possam resolver os dilemas e paradoxos da teoria da comunicação do século XX sem repetir os defeitos dos modelos mecanicis- tas, isto seria a tarefa para um outro texto tão longo quanto este. A teoria da comunicação de Charles S. Peirce (1839-194)2 oferece algumas soluções para os problemas e dilemas discutidos acima (Nöth 2009, 2011, Nöth & Santaella, 2009), mas neste capítulo final, só um esboço breve pode ser apresentado. Entre os problemas que a semiótica de Peirce antecipou ou talvez até conseguiu resolver se destacam os três seguintes: (1) o problema das caixas pretas; (2) o problema da simetria, antissimetria ou assimetria entre o emissor e o receptor da mensagem e, (3) o problema do ruído.

2. A obra de Peirce será citada através da seguinte convenção: CP identifica os Collected Papers na forma “CP x.y”; os números identificam o volume seguido dos parágrafos; a mesma convenção vale para os EP (Essential Peirce) e MS (manuscritos editados por R.Robin) na forma “x:y” os números identificam o volume seguido das páginas.

(1) O problema das caixas pretas. Peirce também reconhece que a mente do locutor é de certa maneira uma caixa preta para o ouvinte e vice-versa, mas di- ferentemente dos construtivistas, ele não conclui que os dois sujeitos em diálogo são inteiramente autônomos nas suas construções do sentido da mensagem.

De fato, nenhum ouvinte tem acesso à mente do locutor. Num diálogo, o que o ouvinte entende são de fato meros “fragmentos da vida do outro” (MS 318: 194, 1907). Para entender o locutor, diz Peirce, o ouvinte compara os fragmentos da vida do outro com o universo do próprio horizonte cognitivo. Assim ele consegue descobrir onde estes fragmentos podem ser “inseridos ou recopiados” no próprio “panorama de vida universal” (ibid.). Entender o outro não é, portanto, impossível e não precisa ser concebido como a nova construção daquilo que é inacessível. Na medida em que o ouvinte reconhece os signos do outro no próprio horizonte semiótico, o acesso à mente do outro se torna possível. Portanto, o receptor não constrói o sentido de uma mensagem de novo, mas ele o reconstrói a partir da suposição da semelhança e não da diferença fundamental dos dois horizontes cognitivos.

Outra razão porque as mentes comunicantes não podem ser consideradas sistemas mutuamente fechados conforme a teoria da cognição de Peirce é o princípio da unidade do pensamento e da expressão (CP 1.349, 1903) . Não é verdade que os pensamentos ficam para sempre escondidos na caixa preta do cérebro. Eles são signos que vivem e se manifestam nas expressões daqueles que têm estes pensamentos. O intérprete da mensagem não interpreta só as palavras, mas uma pluralidade de signos verbais e não-verbais que lhe dãomais informações sobre os pensamentos do locutor do que as meras palavras.

(2) A questão da simetria. A teoria da comunicação de Peirce reconhece tanto conjunção quanto disjunção entre os participantes de um diálogo. A disjunção é uma realidade cotidiana que resulta da incompletude dos signos. Todos os signos são vagos e gerais, sobretudo os signos verbais (cf. Nöth & Santaella, 2009). Portanto, um locutor, na comunicação verbal, nunca pode esperar poder representar aquilo que ele quer exprimir com perfeição ou ade- quação absoluta. Quanto mais complexo o assunto for mais vago as palavras têm que ser (cf. CP 5.447, 1905). Mas esta vagueza fundamental dos signos não é deplorável; ela abre um espaço criativo para a interpretação, que permite queos signos cresçam nas interpretações.

Nem por isso o resultado da comunicação será aquele jogo livre das inter-pretações, que os desconstrutivistas pregam. Apesar da impossibilidade de umasimetria perfeita entre o emissor e o receptor da mensagem, o ideal da simetrianão está ausente do diálogo entre o locutor e o ouvinte. Este ideal está presentecomo um princípio regulativo da comunicação. Peirce chama este ideal de “co--mente” [commind ou commen] (EP 2: 478, 1906). O ideal da simetria é, portanto,um ideal normativo, que exerce uma influência real na comunicação, mas sendoum ideal, a sua finalidade nunca pode ser alcançada na prática cotidiana. Nestesentido, a comunicação permanece sempre fragmentária.

(2) O problema do ruído. Na medida em que o ruído interfere no diálogoentre o locutor e o ouvinte, ele é um terceiro agente entre o emissor e o receptorno processo da comunicação. Mas o seu papel é ambíguo nas interpretações dateoria da comunicação do século XX. Enquanto os defensores dos paradigmasda simetria comunicativa consideram o ruído como intrusivo e os seus efei-tos sempre como destrutivos em relação à mensagem, os pós-estruturalistas,nos seus paradigmas da assimetria fundamental da comunicação veem nele oresultado natural de uma transformação natural da mensagem durante o seucaminho do autor (ou locutor) para o leitor (ou ouvinte).

Na semiótica de Peirce também entra um terceiro agente na comunicaçãoentre um locutor e um ouvinte, mas este agente não é algo como o ruído, maso signo. As palavras, os assuntos e os significados da mensagem, quer dizeros signos, participam do, e determinam o diálogo entre o emissor e o recep-tor da mensagem como agentes ativos; eles não são meros instrumentos dedois agentes comunicantes autônomos (cf. Nöth, 2009). Aquilo que os signosrepresentam não é uma mera construção dos seus usuários. Como todos ossignos, a mensagem do locutor é também determinada pelos objetos que elarepresenta. Aquilo que as palavras significam, a gramática que determina seo discurso é correto ou incorreto e a lógica, que determina se a mensagem é verdadeira ou falsa, são características dos signos não determináveis pelos agentes comunicantes. A realidade, representada pela mensagem, participa na comunicação através dos signos e os seus objetos. Estes são uns dos fatores pelos quais a mensagem tem que ser considerada como um terceiro agente no processo comunicativo. Diferentemente dos modelos tradicionais da co- municação, que mostram uma única simetria bilateral, o modelo resultante desta visão da comunicação (Quadro 12) é três vezes bilateralmente simétrico, o que reflete a sua natureza triádica. O modelo pode também ser lido como uma figura de simetria radial tripla. A rotação da figura por 120° e 240° em relação a qualquer eixo, passando pelo centro geométrico da figura, resulta na mesma configuração geométrica.

Mensagem (ou signo)

Locutor

Ouvinte

Quadro 12. Os três agentes autônomos no processo comunicativo, conforme Peirce.

Conforme a interpretação que Ransdell dá à teoria da semiose de Peirce, o signo não seria só um dos três agentes no diálogo entre um locutor e um ouvinte; ele seria, inclusive, o agente principal:

Aquilo que cria o interpretante não é uma mente, que está interpretando a re- presentação, mas a representação ela mesma. Semiose, na definição de Peirce, é a ação da representação (do signo), gerando o seu próprio interpretante. Semiose não é um ato mental de interpretação (Ransdell, 1989: 9).

Neste contexto, Ransdell não fala especificamente de comunicação, mas tudo que vale para qualquer processo de semiose vale a fortiori também para a comunicação: Aquilo que cria o interpretante e também a representação são evidentemente as mensagens comunicadas, e o interpretante, que, por sua vez, não pode ser confundido com o intérprete, seria a interpretação da mensagem ou simplesmente a mensagem recebida no modelo clássico da comunicação. A tese de Ransdell, que só o signo, quer dizer, a mensagem (e não o locutor!) gera a própria interpretação é certamente radical e talvez seja radical demais na medida em que ela sugere a exclusão da agência dos locutores e dos ouvintesno processo da comunicação. Embora eles não sejam agentes autônomos eles também têm uma autonomia própria. Como o próprio homem é um signo, como o Peirce afirma (CP 5.314, 1868), eles participam no diálogo comunica- tivo com a autonomia semiótica, que é a característica de qualquer signo (cf. Nöth, 2009).

Outro aspecto do axioma peirciano de que os signos são agentes autônomos na comunicação entre os emissores e os receptores de mensagens tem sido frisado por Vincent Colapietro, num contexto em que examina a estrutura triádica das conversas. Sem dar a mesma autonomia ao signo nos processos comunicativos como Ransdell, o autor sublinha:

Mesmo que haja só dois participantes, a conversa não é um assunto diádico, mas ela é irredutivelmente triádica. De fato, o assunto da conversa é um dos participantes do intercâmbio. Se o tópico for fruto de acordo pelas outras partes envolvidas, a atenção ou o respeito que ele merece é ordinariamente tão importante como seria se os locutores concedessem-se reciprocamente a atenção e respeito que cada um merece. Os assuntos têm a tendência de afirmar-se pela agência dos seus representantes ou testemunhas. Mas dizer que os assuntos afirmam a si mesmos, implica que eles, de uma ou outra maneira e numa ou outra medida, exercem uma agência própria. Tal como os objetos se opõem (ao menos, têm a capacidade de se opor às nossas asserções sobre eles), os assuntos têm meios de se opor a distorções ou a interpretações erradas (Colapietro, 2010).

A conclusão reata com os insights sobre o caráter fragmentário da comu- nicação discutido acima. Se a comunicação tem de certa maneira sempre um caráter fragmentário, este defeito deve também caracterizar a comunicação do presente trabalho. O panorama das teorias da comunicação apresentado aqui tinha que ficar necessariamente geral e, portanto, incompleto, mas se este texto conseguiu seguir os princípios semióticos expostos nele, pode-se ao menos esperar que ela tenha oferecido um fio condutor que superasse parcialmente a incompletude inevitável das suas palavras.

Referências

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Endereços eletrônicos

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Artigo recebido em 25 de setembro de 2010 e aprovado em 22 de agosto de 2011.