Leonardo, a flauta: uns sentimentos selvagens
DOI:
https://doi.org/10.1590/S0034-77012006000200002Palavras-chave:
flautas sagradas, Alto Xingu, índios kamayurá, cosmologia, audição do mundoResumo
Este artigo pretende contribuir para a etnologia das "flautas sagradas" nas Terras Baixas da América do Sul, retomando a análise de um episódio ocorrido entre 1947 e 1953, envolvendo Leonardo Villas Boas e os índios kamayurá, xinguanos tupi-guarani. Nesse momento, Leonardo manteve, continuada e publicamente, relações amorosas com Pele de Reclusa, esposa do grande xamã e chefe Kutamapù. O affair provocou comoção entre os índios, que colocaram um trio de flautas na casa do herói. Assim, quando Pele de Reclusa a freqüentava, via as flautas. Violada a regra que proíbe às mulheres ver as flautas, Pele de Reclusa sofreu estupro coletivo, o que originou seu ostracismo e o afastamento dos Villas Boas dos Kamayurá. Para estes, "ver" contrasta com "ouvir". A primeira noção aponta para uma forma analítica de conhecimento ("explicação"), a segunda, sintética ("compreensão"). A exacerbação da capacidade de "ver" é, para eles, sinal de associalidade - no caso dos feiticeiros - e de suprema socialidade - no caso dos pajés. O exagero da aptidão de "ouvir", ao contrário, é considerado condição de virtuosidade na música e nas artes verbais. Se entre esses índios, às mulheres é vedado ver as flautas, ouvi-las é delas esperado. As pistas para a compreensão indígena do episódio provêm de sua maneira de construção dos sentidos, dos gêneros e do poder - no todo, de sua forma de constituição do mundo: quando Pele de Reclusa violou o inviolável, Leonardo transformou-se em "flauta", sua casa na "casa das flautas", e os homens numa coletividade delas, tudo passando a ocorrer sob sua ética feroz.Downloads
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