Fri, 16 Oct 2020 in Revista de História (São Paulo)
O LÉXICO DA POBREZA NA ORDEM FRANCISCANA (SÉCULO XIII): CONTRIBUIÇÃOAO ESTUDO DA ECONOMIA CRISTÃ DE BENS SIMBÓLICOS
Resumo
O léxico da pobreza na Ordem Franciscana deve ser considerado em perspectiva como vocabulário presente em outras temporalidades e em situações diversas ao longoda história do cristianismo. A análise da série histórica do uso da terminologiada pobreza é importante por afastar hipóteses ingênuas em torno de um supostoFrancisco mítico e de uma Ordem Franciscana supostamente disruptiva; ao mesmotempo, manifesta-se importante por iluminar aspectos particulares doéthos franciscano, aprofundando a capacidade de compreensãodo historiador. Por essa razão, propomos aqui, a utilização da pobreza comocategoria histórica, tendo como eixo da análise o fenômeno franciscano eestabelecendo, como fundamento metodológico, uma história global em sua relaçãodialética com as temporalidades particulares a partir das fontesdocumentais.
Main Text
1. Introdução: a pobreza como categoria histórica
Tendo em vista o acúmulo de fortuna crítica no debate a respeito da pobreza, sobdiversas perspectivas e nos mais variados campos do conhecimento, podemos traçar, deforma preliminar, somente uma diretriz aproximativa para um ensaio de definição. Atémesmo naquelas ciências que tomam o objeto em termos concretos - no sentido de umaanálise quantitativa ou mesmo qualitativa de um fenômeno material - não se observauma definição consensual e permanente. Ainda nestes casos, tem sido necessáriolançar mão de um aparato conceitual de mediação entre, de um lado, as condiçõesmateriais reais de um dado indivíduo ou grupo em determinado local e momento e, deoutro, o mínimo denominador comum expresso em uma definição universal de pobreza.Via de regra, esse aparato conceitual supõe, primariamente, as modificaçõesprocessadas nas sociedades ao longo da História.
A uma relativa simplicidade na percepção da pobreza, opõe-se acomplexidade inerente à sua definição, de forma que a apreensão doconceito nem sempre se coaduna com a apreensão do real. De um ponto de vista dateoria econômica, é possível compreender três momentos fundamentais na concepção dapobreza, a saber: entre os séculos XIX e XX, até a década de 50, predominaria oenfoque na sobrevivência, a partir de pressupostos médicos que avaliavam acapacidade para a manutenção do rendimento físico dos trabalhadores industriais; nosanos 70 do século XX, juntamente com o princípio da universalização dos serviçossanitários, da saúde e da educação, a pobreza passou a fazer frente a uma noção doatendimento a necessidades básicas; por fim, a partir dos anos 80, assumiu umaconotação relativa, pela qual à privação material vinham somar-se privações emvárias esferas da vida, assumindo-se uma perspectiva da pobreza como privação social(CRESPO e GUROVITZ, 2002, p. 4-5).
A partir deste arrazoado e tendo em vista a construção do conceito ao longo dahistória, uma preliminar definição de pobreza deve ser necessariamente ampla eflexível de forma a acomodar uma série de situações materiais e de concepçõessubjetivas. Sendo assim, definimos pobreza como a condição de ser pobre, a qual podeser identificada como tal a partir da observação concreta ou de juízo de valor, bemcomo a partir da percepção relativa ou absoluta. Nestes termos, é possível,portanto, expandir a concepção da pobreza para além dos limites da teoria econômica,estabelecendo relações sobre o plano da economia de bens simbólicos.
Podemos encarar o expediente da pobreza como aspecto fundamental de uma “culturacristã”, entendida esta como um conjunto de características predominantes na relaçãoda igreja e da fé cristã com as sociedades ao longo do tempo. Ao relacionar-se com ohabitat, a cultura implica em relações fundamentais dos homenscom o espaço físico, a saber, na dialética entre as sociedades e o meio. Do ponto devista da relação do cristianismo com seu meio, podemos identificar algunspressupostos - materiais e simbólicos - da implementação social da fé. Ora, apobreza - assim como o pecado e a morte - constituiu-se em fundamento para aelaboração da nova doutrina e de sua espiritualidade (BROWN, 1989, p. 266). Tanto doponto de vista material quanto do ponto de vista simbólico, a pobreza radicava noser cristão como manifestação histórica e antropológica. Defendemos, aqui, aaplicação da pobreza enquanto categoria, como instrumento deaplicação universal empregado para iluminar uma (ou múltiplas) determinada(s)série(s) histórica(s).
Enquanto aspecto existencial da antropologia cristã, a pobreza assumecontornos globais na medida em que é aplicável ao conjunto dascomunidades e sociedades cristãs em qualquer tempo e lugar. O ideal dauniversalidade, inerente às origens da fé cristã, seria responsável pela difusão doéthos da pobreza, ao mesmo tempo que se concretizava oproselitismo da Palavra. A pobreza - material ou simbólica - era uma implicaçãoradical do cristianismo - na medida em que consistia em elemento indissociável desuas origens.
Por outro lado, mas também como decorrência do que foi exposto, a pobreza viabiliza acompreensão de dimensões particulares do fenômeno do cristianismo,segundo suas múltiplas e variadas manifestações ao longo do tempo histórico. Sendovariável comum a todos os tempos e espaços cristãos, a pobreza opera como uma réguaou termômetro para a compreensão dos grupos humanos, suas dinâmicas sociais e suasinterfaces com outros grupos. Por essa razão, a pobreza é capaz de evidenciar asdiferenças e, portanto, auxiliar na identificação das especificidades, sempreinerentes ao fazer historiográfico.
No entanto, a pobreza comporta em si uma variedade de dimensões. As possibilidadesvão desde sua manifestação mais concreta, a pobreza material, até a noção da pobrezaespiritual, passando por uma série de gradações. Seu emprego é ainda maisheterogêneo: nas sociedades cristãs, o conceito da pobreza é empregado em textosjurídicos e diplomáticos, assim como em testamentos e registros comerciais, semexcluir, por suposto, sua ampla utilização nos escritos religiosos. E, nestesúltimos, a pobreza comparece de forma particularmente diversificada: de fundamentoexegético do texto bíblico à mendicância indigente das vitae deFrancisco, passando pela função jurídico-normativa, pelo emprego simbólico associadoaos comportamentos positivos e, por fim, pelo ideal de forma de vida adotados pelascomunidades religiosas.
2. O léxico e o campo semântico da pobreza
O adjetivo substantivado φτωχός(pobre) aparece trinta e quatro vezes no Novo Testamento. Noversículo de Mateus (5:3), em que se nomeiam “bem-aventurados os pobres”, a traduçãorecomendada e corrente é, com efeito, por pobres. Há umsignificativo aspecto moral do termo φτωχός nosevangelhos, ao mesmo tempo que este deve ser traduzido por pobre enão necessariamente por pobre em espírito. O texto de Sofonias(2:3) caracteriza o anawin (do hebraico,pobre/humilde) como aquele que se submete à vontade divina. Como tempo a terminologia passaria a definir os destinatários da mensagem redentora.Consta, em Isaías (61:1), que a eles seria enviado o Messias. Ora, em concordânciacom o texto veterotestamentário, a tradução gregaφτωχός designaria aquele que se submete à vontadedivina. Implícito no texto evangélico encontra-se o pressuposto de que Cristo tinhaos excluídos como destinatários de sua mensagem, sendo que a pobreza se apresentavasob um conteúdo moral.
Na tradução latina, fixou-se a forma pauper (e seu pluralpauperes) como correspondente à pobreza metafórica preconizadapelo texto bíblico. De maneira relativamente coesa, a exegese dos textos hebraico,grego e latino convergiram para a doutrina da pobreza associada à moral. Em que pesea força da imagem da pobreza em sua materialidade, a fides cristãidentificaria a pobreza a um éthos - e, neste sentido, profundamente relacionado àRetórica dos padres da Igreja. A narrativa cristã identificaria na pobreza, nãosomente uma condição material de existência - em relação à qualimpunha-se uma ação - mas também uma representação- acessível a todos, em concordância com o propósito universalista a partir do qualsua ecclesia se constituíra.
A pobreza era, portanto, condição, na qual se encontravam alguns,independentemente de seus atos: tratava-se dos pobres em sentido literal, a saber,os partícipes da pobreza concreta. Embora o texto bíblico pudesse induzir a umacondição de vantagem, esses pobres em bens materiais podiam, conforme a doutrinacristã, ser igualados pelos demais. Além disso, a pobreza material não carregava,por si só, nenhuma virtude especial. O éthos cristão prescrevia odom , dirigido aos pobres e mediado pela autoridade episcopal:independentemente da condição do doador, a posição do pobre, nointerior desse mecanismo de intercâmbios, permanecia sendo aquela exclusivamente ado sujeito de uma ação. A economia do dom, aspecto nuclear do éthoscristão, implicava em uma perspectiva salvífica para aqueles que doavam: o pobre,associado ao pecador - mas também ao estrangeiro, ao marginal e ao ingênuo (ou acriança) - era um mecanismo para a efetivação do éthos cristão e, portanto, para oequilíbrio entre o mundo material e o plano salvífico.
A pobreza encontrava-se, também, acessível àqueles que não partilhavam dacondição, embora se apropriassem do seu éthos.Essa pobreza, essencialmente metaforizada, era aquela que predominava na exegesebíblica, e passaria a ser entendida, no conjunto da doutrina cristã, como aspectofundamentalmente moral. A pobreza bíblica relacionava-se à aceitação da condiçãodada pelo desígnio divino - trata-se do léxico do texto de Sofonias, mas também dasemântica do texto de Jó - que não continha o vocábulo anawin, masmantinha-se estritamente fiel ao seu significado. Jó era a representação do pecador- assim como os pobres da linguagem veterotestamentária, os quais, sobretudo nosSalmos, eram identificados como aqueles que necessitavam do perdão. O pecado vem, nalinguagem sálmica, associado à aceitação e conformação à vontade divina. A carne -matéria física e perecível, constituída a partir do pó e, por isso mesmo, símbolo ealegoria da humanidade - dirige-se a Deus “por causa de seus pecados”, uma vez que“nossas faltas são mais fortes que nós, mas tu no-las perdoa. ” (Sl 65:4). Nessesentido, Jó, assim como os pobres, seriam representações da própriahumanidade - em sua condição de pecadora a partir da queda e,portanto, da perda da semelhança com o Criador. Jó encarnava a necessidade daaceitação de tudo que se originava em Deus e apresentava eco na figura cristã deMaria diante do anjo Gabriel, à qual a narrativa neotestamentária atribuía aresposta: “Eu sou a serva do senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra! ” (Lc 1:37).
Enquanto aspecto da doutrina cristã, portanto, a pobreza deve ser entendida em suacomplexidade de sentidos, para além de sua manifestação literal - embora os sentidosda pobreza mantenham uma relação indissociável com sua manifestação concreta. Aexegese do texto bíblico acabaria por consolidar uma interpretação alegórica dapobreza, preferencialmente à literal. No caso do cristianismo em particular, uma dasrazões para a opção pela exegese alegórica - que não se apresentava como óbvia em umprimeiro momento - acabaria por relacionar-se à rápida diversificação dos quadrossociais que caracterizaria a adesão das populações do Império Romano entre osséculos II e III. (BROWN, 1989, p. 260ss) O conjunto articulado de suascaracterísticas nos permite associar essa pobreza de conteúdo moralà noção de humildade. Esta implicava em aceitação e em submissão, e relacionava-sede maneira direta e preferencial ao desígnio divino. Esse conjunto articulado nosleva a associar a paupertas bíblica à humilitas -a pobreza seria uma alegoria da humildade.
A humilitas reunia a aceitação e a submissão reputadas a Jó e aMaria, sem que, contudo, esses dois personagens necessitassem estar relacionados porsua condição social - ela era diversa nos dois casos,e tivera peso e influênciadiferentes na escolha divina pelos dois personagens. Para além disso, ahumilitas vinculava-se ao ato original da Criação - a forja doHomem a partir do barro - o humus. Sua raiz também se encontrariana palavra humano, humanidade, o que implica, também, nahumilitas enquanto elemento de mediação da relação entre ohomem e seu criador. Demiurgo supremo, Deus criara o Homem a partir da matéria dobarro, elemento igualmente alegórico da Criação - a Palavra era o veículo daefetivação da vontade de Deus, o qual dispunha sua poiesis - ou atode fazer, de criar - nos termos de uma ordenação verbal, segundo a fórmula“Faça-se”. O ato da criação deu-se pela Palavra, sendo a matéria concreta a suaalegoria.
A relação entre o humilis - aquele que tem sua origem do barro - eseu Criador passava, portanto, pela mediação da Palavra. A Palavra era centro dessaeconomia desigual entre o ser perfeito e os seres imperfeitos. A Palavra - overbum, ou lógos divino - do princípiopredominava na história da humanidade e articulava toda a criação com seu Criador.Trata-se da natureza fundamentalmente racional e ordenada que presidia a ação divinano mundo. A superposição de alegorias nos dá a medida dessa racionalização e apontapara a composição do discurso cristão na Patrística: a pobreza, elevada à sua maiorracionalização, prescindia de sua materialidade, adquirindo seu significado a partirde um conteúdo moral.
A dialética que caracterizou a interação entre a fé e a razão na Patrística cristãtambém seria operante, portanto, na articulação de outros conceitos entre si. Quandose avalia, por exemplo, a pobreza propriamente dita, concluímos pela existência deuma polissemia, de tal forma que é possível identificar não só umcorpus léxico como também um conjunto semântico. Por essarazão, a pobreza se encontra relacionada não somente a uma série de sentidos(derivados de um campo semântico ampliado) como também, a uma série de vocábulos(oriundos de um léxico específico).
Sendo assim, podemos identificar dois grandes conjuntos: o corpussemântico da pobreza (conjunto de aspectos relacionados à produção de sentido) e ocorpus lexical da pobreza (conjunto de palavras intercambiáveiscom a pobreza). Para ambos os casos, estamos nos referindo à terminologiapaupertas, bem como às suas formas intercambiáveis.
Podemos afirmar que, na narrativa cristã em geral, o emprego do termopaupertas se encontra relacionado a sentidos que não se referemà pobreza material ou concreta. A condição material da pobreza, portanto, nãocostuma ser um significado contemplado pela terminologia paupertas.A partir da análise textual das fontes cristãs, podemos identificar uma série deaspectos semânticos preferenciais do emprego da paupertas.
Em primeiro lugar, a paupertas configura-se como aspecto moralfundamental da doutrina cristã. Em vários momentos, o texto bíblico representa opobre enquanto pecador, alegoria extensiva a toda a humanidade, aspecto da linguagemdos salmos; o pobre enquanto destinatário preferencial dos desígnios divinos,predominante no texto de Jó; o pobre identificado à viúva, ao estrangeiro, ao órfãoe, portanto, àqueles que partilham de uma condição de fragilidade ouvulnerabilidade, objeto da regulamentação de códigos de conduta tais como o Levíticoe o Deuteronômio.
Em segundo lugar, a paupertas consiste em fundamento jurídico paraclassificar uma ou mais condições. Sob essa perspectiva, o pobre é identificado comoaquele a quem se aplica uma instabilidade de direitos, via de regra, relacionados aseus bens ou posses. Ao analisar o estabelecimento de preços máximos para grãos ecereais no Capitular de Frankfurt, Marcelo Cândido da Silva defende que esseexpediente integra um princípio de ordenação do reino de Carlos Magno segundo um“princípio de justiça aplicável a qualquer matéria” (CÂNDIDO DA SILVA, 2013, p. 54).De acordo com esse estudioso, os pobres representavam uma categoria passível de terperdido ou de vir a perder direitos, e a “economia moral” carolíngia, por meio doestabelecimento de preços justos, representava um dos pressupostos para a manutençãodo equilíbrio social (CÂNDIDO DA SILVA, 2013, p. 54).
Por fim a paupertas pode ser empregada como categoria relacionalpara efeito de comparação entre duas grandezas - neste caso, equiparável à categoriada riqueza.
Do ponto de vista da terminologia, por seu turno, identificamos formas preferenciaisà paupertas, as quais possuem amplo emprego com o sentido depobreza material: trata-se de humilitas, necessitas, egestas - umcorpus lexical adequado à pobreza social tal qual acompreendemos hoje. Deste corpus, o termopaupertas encontra-se, para a quase totalidade dos casos,ausente. A pobreza, em seu sentido literal, não seria, portanto,nomeada como paupertas; da mesma forma, a terminologiapauperes viria empregada com base em uma concepção figurativaou alegórica, e muito dificilmente conforme uma acepção literal.
3. A pobreza beneditina: economia de bens materiais e simbólicos
A paupertas seria, portanto, retomada nos ambientes cristãos sob umasérie de aspectos, por vezes a partir de seu conteúdo doutrinário ressignificado,por vezes com uma acepção de todo independente da doutrina. Observa-se umaincidência sintomática no ambiente monástico: trata-se do emprego da terminologiapaupertas não só de forma divorciada de seu conteúdodoutrinário, mas, ainda, com significado diverso de sua acepção corrente.
Estamos nos referindo a fontes que trazem informações relacionadas a dados daeconomia material sem, contudo, terem sido produzidas como documentos econômicos (aexemplo de registros de transações ou balanços de despensa). Trata-se da linguagemempregada em uma documentação normativa, a saber, aquela das Regras e documentosjurídicos de ordens monásticas. Selecionamos dois exemplos igualmente sintomáticosde um uso particular - a Regula de São Bento (c.525) e aSumma Carta caritatis (c.1152). Em ambos os casos, aterminologia da paupertas aparece como unidade medidora e éempregada como razão entre duas grandezas. Neste sentido, a pobrezaé instrumentalizada de tal forma que se configura como categoriaeconômica.
Portanto, no conjunto das fontes normativas do ambiente monástico -corpus documental especialmente sensível à noção da pobreza -,a categoria da paupertas é empregada de forma relacional. Elaidentifica a maior ou menor precariedade de um determinado lugar, pessoa ou situaçãoem relação a uma medianiz variável conforme o caso. Nesse sentido,pobreza poderia ser substituída por riqueza.Em que pese ser a pobreza um dos votos fundamentais que definem omodo de vida monástico, a terminologia da paupertas não parececonfigurar-se, no texto normativo, como a mais apropriada para significar aprecariedade do modo de vida. Essa é referida, antes, pelovocábulo necessitas, presente no texto da Regulamonachorum (c. 525) de São Bento com o sentido de restrição material. Osintomático capítulo XLVIII, que estabelece uma proporção entre os ofícios e otrabalho manual diário ao longo do ano litúrgico, prescreve o seguinte: “E se,porém, as necessidadesdo lugar ou sua pobrezaexigirem, que façam eles próprios o trabalho da ceifa, que não se sintamdescontentes com isso. ” (c. XLVIII, fl. 33-34).
No conjunto da Regula monachorum, a necessidade(necessitas) encontra-se, por sua vez, em estreita relação como trabalho (labor). O labor manuum éproporcionalmente maior e mais extenuante quanto mais se fizer sentir, também, anecessitas. Esta, que poderia parecer uma conclusão automática,apresenta uma complexidade ulterior, uma vez que se verifica um descompasso entre alectio divina - a oração - e o labor manuum -o trabalho. De acordo com a Regra, a lectio prescrita apresenta -ou ao menos, deveria apresentar - somente pequenas variações, em função deexpedientes restritos - que dizem respeito a questões de forma e de organizaçãotemporal. Por sua vez, o labor manuum comporta variaçõesqualitativas - o pequeno trecho do capítulo XLVIII nos permite verificar apossibilidade do emprego dos monges em trabalhos manuais conforme ograu de paupertas (pobreza ou riqueza).
Naturalmente, a maior ou menor precariedade material do lugar apresentava, portanto,implicações para o maior emprego de monges na ceifa ou nosscriptoria. A própria realidade dos scriptoria- e o volume e importância de sua produção - pode ser relacionada à renda total domosteiro. Essa pode ser deduzida dos recursos obtidos de seus patronos, da produçãoque se realiza em seu dominium e do conjunto de doações e outrosexpedientes ligados à existência social do mosteiro. Em regiões particularmente maisabastadas, era comum encontrarem-se mosteiros mais permeáveis à afluência deindivíduos também abastados e educados segundo o currículo aristocrático. Uma talconfiguração predispunha a uma maior presença de trabalhadores destinados aotrabalho da terra, o que liberaria os monges de grande parte do trabalho manual.Esse labor manuum, por sua vez, era preferencialmente identificadoà atividade junto à terra: aspecto que viria a ser, também entre os franciscanos, umpressuposto da simplicidade - fundamento da humildade. Conforme a Regra Beneditina,“porque então são verdadeiros monges, se vivem do trabalho de suas mãos, assim como[fizeram] nossos Padres e os Apóstolos. ” (c. XLVIII, fl. 33-34).
Nos círculos educacionais aristocráticos, o trânsito de laicos e clérigos prescindiade categorias sociais, de forma que havia uma unidade disciplinar e de conteúdos queprecedia a própria designação do educando, seja para o alto clero, seja para funçõespúblicas seculares. As escolas monásticas se tornariam, ao longo da Alta IdadeMédia, um locus privilegiado para a formação aristocrática, de talforma que os mosteiros jamais cumpririam um papel inteiramentemonástico. O ideal do isolamento subjacente aomonos nos primeiros séculos do cristianismo - manifestaçãooriginal da experiência religiosa nas terras ermas do Oriente Próximo - permaneceriaum aspecto da vida de um grupo de monges, mas contrariava, para todos os efeitos, aperspectiva política que desde cedo predominou nos ambientes monásticos. Ostitulares das terras que abrigavam um mosteiro pertenciam, via de regra, aos mesmoscírculos de seu abade e de boa parte dos monges. Por essa razão, não seria deestranhar que, paralelamente à prescrição do labor manuum,predominasse, sobretudo nas áreas mais abastadas, uma cisão no trabalho: os mongespredominariam nos scriptoria, razão para a elevada produçãobibliográfica no interior do mosteiro; paralelamente, o trabalho da terra se dariapor intermédio da ação de trabalhadores, permanentes ou precários.
A prevalência de uma economia fundamentalmente territorial acabava por gerar essetipo de distorção na relação entre o trabalho manual e a efetiva prática dascomunidades monásticas. Em que pese a nobreza atribuída à atividade dos mongesintelectuais e copistas, essa não era considerada labor, mas,antes, studium - termo que deve ser traduzido poresforço e que não tem seu emprego restrito aos círculosestudiosos ou letrados. Em razão da nomenclatura, verifica-se que,apesar de elevada, a atividade intelectual não se equiparava aolabor e não se identificava, portanto, com a prescriçãofundamental da Regra. O fato de que não se realizassem esforços para a adaptação doléxico do trabalho às atividades efetivamente desenvolvidas pelos monges é umindício de uma espécie de continuidade de uma “moral da distância social”característica dos ambientes senatoriais romanos - tanto quanto a organizaçãoeconômica e social que presidira o surgimento das casas monásticas.
O éthos que presidiu a criação das novas ordens, a partir do século X, sob o impulsoideológico da Reforma, buscaria resgatar o discurso do trabalho manual ao mesmotempo que procuraria dissociar os mosteiros da influência laica. Os Cisterciensesconduziriam uma narrativa tipicamente reformista, ao preconizar o retorno às origenscomo pressuposto para o advento do homem novo. O discurso em tornodo rigor é bem conhecido nas narrativas sobre a fundação da casamater. Ele procuraria reintroduzir o princípio original davia monástica, a começar pela experiênciaapartada da vida secular que caracterizara o monos. Em que pese suatônica reformista, o discurso cisterciense também não chegaria a superar a dicotomiaentre o trabalho manual e os studia dos monges dosscriptoria.
Ainda assim, o modelo monástico cisterciense seguiria representando a si mesmo como ogrande baluarte da reforma nos meios religiosos. Para além da questão do trabalhomanual - que permaneceria em aberto -, a narrativa de Cister privilegiaria odivórcio entre a Igreja e a vida religiosa, por um lado, e o laicato, por outro.Essa temática seria equacionada na Summa Carta caritatis, de cercade 1152: “Quod nullam cum saecularibus societatem in pecoribus nutriendis,terris excolendis dando vel accipiendo medietatem vel simila. ”. Acriação da categoria dos conversos - grupos vinculados ao território do mosteiro -vinha a solucionar, em termos práticos, o problema da falta de mão-de-obra. Aoestabelecer um subgrupo de indivíduos que se encontravam no limiar entre o laicato eo monacato - mas habitavam as terras do mosteiro -, a legislação cistercienseafastava o problema das relações com a sociedade secular.Igualmente, o fato de que o mesmo documento interditasse a aceitação de indivíduosconversos na condição de monges em outros mosteiros, representava a garantia dapermanência da mão-de-obra. Com isso, criava-se uma ordem de indivíduos dedicados aolabor manuum no interior do mosteiro e que, embora não sendomonges, se encontravam apartados da vida secular. Sua condição deconversos implicava na criação de uma nova categoria jurídica,ligada fundamentalmente às necessidades econômicas do mosteiro e às exigênciasideológicas da Reforma. Por sua vez, o fato de não poderem ascender a monges criavauma reserva de mão-de-obra. Embora relacionada fundamentalmente ao trabalho, apobreza, sob o éthos cisterciense, distanciou-se progressivamentedo labor para vincular-se à noção do rigor,altamente valorizada pelos teóricos reformistas dos séculos XI e XII.
4. A Ordem Franciscana: concórdia entre pobreza e trabalho
Na narrativa da Ordem Franciscana, por outro lado, se verificaria uma relaçãoindissociável entre a pobreza e o trabalho. O labor viria associadoà atividade simples e, via de regra, extenuante, sendo esta a acepção original damendicância franciscana. As narrativas seriam unânimes em estabelecer o trabalhocomo fundamentalmente pobre.
No conjunto dos textos, de procedências diversas, o conceito damendicitas identifica-se ao trabalho simples. Trata-se domodelo dos construtores e operários que proliferou a partir da consolidação dotraçado dos caminhos de peregrinação, caso da devoção a Santiago de Compostela. Arede assistencialista que se formaria no trajeto - incluindo hospedarias, hospitaise tavernas -, bem como a construção de pontes e passagens, favoreceriam avalorização de atividades ligadas aos operários e construtores. Trata-se de sintomasdos novos pressupostos para o exercício da vida religiosa. O laborsimplex, relacionado à obtenção somente do necessário à sobrevivência,era entendido como forma privilegiada da mendicância, e coadunava-se com o ideal dapaupertas. A mesma mendicância também supunha o salário obtidopelo trabalho - via de regra, associado a espécies não monetárias. A mendicância doléxico franciscano identificava-se ao labor manuum, e, sendo assim,supunha uma relação com a otiositas - embora essa não constasse dostextos e nem das prioridades enunciadas pelo franciscanismo. No entanto, para muitoalém do ato simples do pedir esmolas, a ação do esmoler franciscano encontrava-seincontornavelmente relacionada ao trabalho e nunca sob sua exclusão.
Nas Vitae e Legendae, há uma narrativa consensualque descreve os pedidos de esmolas a fim de encher as lâmpadas da igreja de S.Damião. Esta é uma tópica dos inícios do franciscanismo que se utiliza de uma dasprimeiras historietas relacionadas à conversão de Francisco: a solicitação, emsonho, para que Francisco restaurasse a Igreja de Deus. A obra darestauração em si supunha a mendicância, princípio fundamental da pobrezafranciscana. Mas a mendicância não poderia dar-se sob a exclusão da realização dotrabalho. Portanto, para o modelo da mendicância franciscana, haveria uma relação deequivalência entre o operário e o mendicante, e, portanto, uma relação decomplementaridade entre o trabalho e a esmola.
A tradição escrita do franciscanismo primitivo supunha, ainda, uma relação damendicância com a sobrevivência - a ação do esmoler, sempre identificada aoprincípio da pobreza, também ia ao encontro dos elementos mais básicos dasubsistência. Sendo assim, a esmola era o salário obtido pelo operário a partir deseu trabalho manual. Obter “comida misturada de porta em porta” era uma dasfinalidades da realização de trabalhos manuais simples e extenuantes - ligados,sintomaticamente, à edificação (aedificatio) e à reforma(reformatio). Trata-se de um éthos do trabalho progressivamenteligado à santidade na cristandade latina. Se os monges de São Bento - até mesmo emsua versão reformada - se aplicavam nos studia dosscriptoria - sem que houvesse a necessidade de uma adequação doléxico à demanda do labor manuum -, os franciscanos partiriam deuma nova sensibilidade - dada por novos contextos religiosos e, sobretudo, peladiversificação social. Um novo éthos se construía a partir dos mesmos impulsosreformistas dos séculos XI e XII. Os desdobramentos desses impulsos apontavam para adifusão e para a multiplicação da devotio na forma das construçõese das atividades ligadas aos meios urbanos.
Os textos da Legenda trium sociorum (doravante, LTS), atribuída aLeão, Ângelo e Rufino, e da Vita secunda (doravante, VS), de Tomásde Celano, são igualmente representativos desta ética esmoler. Produzidas em ummesmo contexto (cerca de 1246) mas com motivações opostas, ambas retomaram aVita prima do mesmo Tomás de Celano para assumirem a defesa departidos opostos. No entanto, os textos são unânimes na defesa das esmolas e nocompromisso com a manutenção da ética do trabalho. Um elemento ulterior vinhajuntar-se a estes: o aspecto moral, que associava a esmola àhumilhação e, por conseguinte, à humildade. Aresultante era o fazer-se humilde (humilis, ou ohumus da terra). Todo esse léxico converge com a noção dapobreza, e a define sob um conteúdo não somente social, mas sobretudo moral.
A esmola se encontrava relacionada, ainda, a um mecanismo de resistência àfragilidade: trata-se da fragilidade do espírito, associada ao confortoproporcionado pela vida material abastada. Esta não predispunha ao exercício dotrabalho, sobretudo o trabalho realizado em condições adversas. A fragilidadeespiritual ligada ao conforto material viria, portanto, a favorecer aotiositas. Essa era representada por toda vida pregressa deFrancisco, caracterizada pela atividade usurária e pelo convívio inócuo com seusamigos. Ele deveria trocar uma alimentação substanciosa e ao mesmo tempo delicada,preparada por serviçais e servida em louças finas, pela “comida misturada” quepediria de porta em porta, justa recompensa por um trabalho extenuante. O “espíritodelicado” de Francisco, consensualmente definido, no conjunto das narrativas, comoburguês e abastado, não seria predisposto ao trabalho árduo ou ao consumo de restosde alimentos. Retomamos a LTS e a VS: o trabalhoduro a ser realizado na reforma da igreja corresponderia à infâmia do ato de pediresmolas. Labor físico e labor espiritual: aotrabalho físico extenuante corresponde um trabalho espiritual infamante. Como emoutros aspectos da narrativa franciscana, há uma implicação de superação: na mesmamedida em que se devem superar as adversidades da matéria, igualmente devem sersuperadas as adversidades do espírito. Dor e fatiga, no caso material; vergonhamoral, no caso espiritual.
Piron observa a grande dificuldade em partilhar do estado medicante em virtude davergonha implícita no ato de pedir esmolas de porta em porta. A mendicância, estadopor excelência dos frades menores, impunha particular constrangimento aos frades queocupavam posições dirigentes, sobretudo tendo em vista sua posição socialfrequentemente elevada (PIRON, 2009, p. 36). Observa-se ainda, que a lembrança doestado mendicante consistiria em uma penitência sempre retomada quando se tratava decorrigir desvios contra a natureza humilde da Minoritas.
A terminologia da pobreza na Ordem Franciscana apresentaria, naturalmente, umacorrespondência com o léxico bíblico da exclusão. A esse respeito, a Bíblia hebraicaapresentava prescrições dotadas de implicação legal: trata-se dos textos de Levíticoe Deuteronômio, com suas reiteradas recomendações a respeito daqueles identificadoscomo desassistidos sociais: o órfão, a viúva, o estrangeiro. O fundamento jurídicodesses dois livros justifica seu conteúdo legal, no sentido de prover assistêncialegal aos marginalizados da sociedade. Sua força de lei advinha da necessidade deuma regulamentação unívoca em uma sociedade destituída de um Estado. De qualquerforma, o código expresso nessas fontes - que pode ser coligido em associação comoutros documentos - representa uma atribuição de funções assistenciais a indivíduose grupos de uma comunidade.
De uma maneira geral, a literatura cristã reverberou as prescrições sobre o órfão, aviúva e o estrangeiro. As recomendações da Patrística sublinharam as alegorias do“marginal” bíblico, ao passo que o episcopado do segundo cristianismo as identificoue individualizou a partir da política do dom. Na concepção dos pobres destinatáriosdo dom, havia um fundamento jurídico que radicava na alegoria bíblica. Aqueles aquem se deveria acolher no seio das paróquias, enquanto destinatários pordireito dos bens da ecclesia, eram osfragiles do tecido social, aqueles que se encontravam, por umadefinição que precedia sua própria existência, nas franjas da sociedade. A partir doterceiro século, momento em que o cristianismo se consolidou na rede paroquial e naadministração pública, cristalizou-se a noção segundo a qual os bens da Igrejapertencem aos pobres.
Há uma continuidade na tradição escrita que orienta a composição de documentosjurídicos e de textos em geral a respeito da vida regular na cristandade latinamedieval. Por essa razão, podemos identificar, no conjunto da produção - normativa ebio-hagiográfica - proveniente da Ordem, uma relação de continuidade com o léxico dapobreza empregado nos textos beneditinos. Para efeitos da documentação franciscana,o vocábulo paupertas segue sendo, em grande medida, umacategoria relacional, ou seja, um instrumento paraquantificação e classificação e não propriamente um conceitodefinidor de um ou mais aspectos da cultura material ou de um conjunto deideias.
Por outro lado, a categoria da pobreza na Ordem Franciscana, é, também,suficientemente ampla para abarcar todo um conjunto de significados, todos eles emgrande medida derivados da exegese do texto bíblico e das fontes jurídicasmedievais. Diferentemente do que se poderia concluir, o léxico dapaupertas e dos pauperes nos textosfranciscanos não só se caracterizou pela polissemia como também apresentou umemprego fundamentalmente distanciado do sentido da pobreza material. Estaapresentava, como nas fontes cristãs em geral, um papel preponderante no nível dasrepresentações, e, naturalmente, o discurso sobre os pobres e a pobreza jamais sedivorciaria desta alegoria original. A alegoria do pobrezinho fazia eco às condiçõesprecárias da manjedoura e à escassez de víveres que impunha o milagre para suamultiplicação. Ela era necessária - embora não suficiente - para a reprodução dadinâmica da conferência de sentidos para a pobreza.
Há duas implicações fundadoras da concepção franciscana de pobreza: a primeira é denatureza doutrinária; a segunda, jurídica. Do ponto de vista da doutrina, devemoscompreender a concepção franciscana de mundo como um aspecto da exegese evangélica,segundo a qual Jesus e seus apóstolos nada haviam possuído, fosse em particular,fosse em comum. Essa doutrina da ausência de propriedade consistiria no fundamentopara a observância franciscana da pobreza - a Regra franciscana retiraria suaidentidade e originalidade da observância estrita. Do ponto devista jurídico, impunha-se a criação de uma normativa específica que permitisse aexistência da comunidade franciscana, a partir das características particulares desua proposta: tratava-se de estabelecer um mecanismo que lhe permitisse renunciar àpropriedade dos bens, conservando somente o seu uso. Para além de um engajamento emum conjunto de práticas religiosas, a Ordem Franciscana, assiminstitucionalizada, deveria ter uma existência jurídica legitimada, pressuposto paraseu reconhecimento social.
Aquilo a que se convencionou compreender, entre os franciscanos, como o pressupostoda vida evangélica, identificava-se com a pobreza absoluta. Essa noção unânime seriasustentada não somente por aqueles considerados rebeldes - sob a nomenclatura geralde Espirituais Franciscanos - como também pela fonte máxima de autoridade na Ordemno século XIII - Boaventura de Bagnoregio. Com base em uma exegese particular dotexto evangélico - aquela predominante entre os franciscanos -, Boaventuradefenderia a forma vitae dos franciscanos como mais próxima àperfeição evangélica do que as formas professadas e praticadas por outras ordensreligiosas. Com base em uma concepção hierárquica da perfeição, o ministro-geralalocaria os frades no topo de uma cadeia que tinha como fundamento o grau desemelhança com a vida de Cristo e dos apóstolos:
Decorrente da querela entre o clero secular e os mendicantes na Universidade deParis, a Apologia pauperum contra calumniatorem (c.1269) defenderiaa pobreza franciscana por intermédio de uma série de recursos retóricos, resultantesde um processo cumulativo responsável pelo prolongamento da disciplina dotrivium nos ambientes da Idade Média cristã. A retórica deAgostinho, estabelecida a partir dos manuais ciceronianos, reverberava a disciplinaclássica descrita e difundida por Aristóteles.
Da questão doutrinária decorria a implementação de um aparato jurídico destinado aviabilizar e a legitimar o modo de vida professado pelos frades. Sob o ponto devista legal, a Ordem passaria a dispor de um mecanismo de separação entre apropriedade (dominium) e o uso (usus). OsFranciscanos deveriam, a partir da Mira circa nos, publicada porGregório IX em 1228, abrir mão da propriedade de todo e qualquer bem, conservandopara si somente o seu uso. A esse respeito, o mesmo Boaventura dedicara-se aestabelecer o princípio geral da jurisdição acerca da propriedade franciscana. Emmeio à contenda com os mestres seculares, o então ministro-geral fixaria a naturezada pobreza franciscana, identificando-a à pobreza absoluta e diferenciando-a deoutras formas de vida religiosa:
Mas o salto qualitativo em relação à discussão que ocuparia os frades ao longo doséculo XIII - a Questão Franciscana - se daria a partir da superação da dicotomiapropriedade versus uso. A categoria do ususpauper, delimitada na obra do franciscano Pedro de João Olivi (1248-1298),representaria um expediente de estabilização de conceitosm, embora estivesse longede sanar os conflitos no interior da Ordem. Ao longo do Tractatus edas Questiones de Usu Paupere, Olivi redimensionaria a discussão emtorno do binômio propriedade-uso, conferindo-lhe profundidade: ele o faria a partirda interposição do usus pauper, que apresentaria uma novaperspectiva ao debate. Tratava-se de transcender o binômio para fixar um terceirovértice, responsável pela mediação da relação entre os dois primeiros.
A separação entre a propriedade e o uso acarretava em um debate, cuja conclusãoconcorreria, em grande medida, com a doutrina do usus pauper, - umaproposta no sentido de se estabelecer um princípio antes qualitativo quequantitativo na determinação das formas e limites do uso. O tratado De usupaupere, e suas subsequentes quaestiones, teria sidoproduzido em cerca 1283, em um contexto de disputas entre grupos e facções. A ideiade que a pobreza radicava não em um princípio absoluto sujeito a medidasinvariáveis, mas, antes, em uma prática - ou práticas - sujeitas a medidasdosimétricas de natureza (também) qualitativa, seria a grande novidade trazida pelopensamento de Olivi. Infelizmente, o contexto de acirramento de disputas, aliado auma produção concorrente do próprio Pedro de João Olivi - a chamada Lecturasuper Apocalypsim - acabariam por ofuscar o texto e comprometer seualcance na Ordem como um todo.
Se os Conventuais tenderam progressivamente a desacreditar a produção de Olivi, namedida em que ela obtinha a adesão de muitos colegas da facção oposta, osEspirituais elegeram a Lectura, um texto fundamentalmente místico,como emblema de sua própria luta - considerando o De usu pauperecomo um mero aparato jurídico no conjunto do pensamento místico do frade. Amarginalidade a que seria relegado o De usu paupere trariaconsequências desastrosas tanto para a sobrevida da unidade da Ordem quanto para odebate em torno da pobreza. Esse tenderia a retroceder às discussões de princípiosdo século XIII - discussões até mesmo anteriores a Francisco - a cada vez que seapresentava a necessidade de se construírem consensos partilhados.
Texto jurídico importante por estabelecer a definição do ususpauper, na década de 1280, o Tractatus de usu paupere,acrescido de suas Quaestiones, pode ser considerado a obra desíntese de Olivi. Trata-se de uma contribuição fundamental para o entendimento dotópico, aprovado pelo papa Gregório IX para a Ordem Franciscana, e que estabelecia aseparação entre o uso e a propriedade. Princípio fundamental da existência jurídicafranciscana em seu primeiro século, o usus pauper era o elemento demediação entre essas duas grandezas, sendo que os frades deveriam abdicar dapropriedade, conservando somente o uso das coisas. De acordo com Todeschini, porintermédio da categoria econômica do “uso”, a escola franciscana teria conseguidotraçar uma nova chave explicativa para a dialética que ligava o sujeito humano àscoisas criadas (TODESCHINI, 2002, p. 326). Para além desta perspectiva, observa-seuma contribuição para a construção do pensamento econômico moderno: ao relacionar,como alternativa à terminologia denarii - designativa da espéciemonetária -, a palavra pecunia, Olivi estabelecia como válida - eequivalente ao dinheiro - toda uma categoria de bens pecuniários passíveis deincorporar valor. Trata-se da concepção de uma ratio pecuniae,subjacente ao conjunto dos bens passíveis de serem utilizados à guisa deprecificação (LAMBERTINI, 2016, consultado em 05/12/2019). O tratado, que nada temde conteúdo moral ou exortativo, procura, na verdade, a partir da discussão eproposta de resolução de uma questão jurídica, estabelecer, no campo normativo, ospressupostos para o funcionamento das casas franciscanas. Pela natureza dacomposição, o texto apresenta minúcias terminológicas e atém-se a detalhes mínimosdo funcionamento das comunidades.
Aqui, o léxico da pobreza também apresenta a particularidade de desdobrar-se em umapolissemia, sendo que o termo paupertas nunca se relaciona àpobreza social e material. No texto de Olivi, a paupertas - e seuspróximos, tais como pauper e pauperes - figura emtrês níveis: a) como categoria relacional, a exemplo dos textos monásticos; b) comonormativa, fornecendo lastro teórico à forma de vida professada pela Ordem, como em“professionem ac regulam paupertatis nostram” (ed. BURR, 1992, p. 89) c); comsentido adverbial, ou seja, expressando um modo (pobre) de vida, caso de “rerum(...) modo non excedunt altíssima paupertas” (ed. BURR, 1992, p. 89). Nocorpus franciscano de escritos, seria comum, portanto, que apaupertas comportasse uma polissemia, concomitante à suaonipresença nas sentenças.
Recolhemos e analisamos uma série terminológica nos 30 primeiros artigos doTractatus (c.1283), assim como na IX Quaestio,particularmente representativa do debate então em voga. Em primeiro lugar, apaupertas surge como aspecto normativo da Regra e, portanto,incorporado à forma de vida franciscana - devido à particularidade do aparatoteológico da Ordem, esta vem identificada, automaticamente, à forma de vidaprofessada no cristianismo primitivo por Cristo e seus apóstolos. Apaupertas é, aqui, equivalente à mendicitas,também relacionada à forma de vida. O substantivo pauper ocorretrês vezes com sentido adverbial, para referir-se ao modo pobre, e ainda três vezesexpressando a exegese da pobreza dotada de conteúdo moral - caso do pauperspiritu. A terminologia que parece descrever de forma mais completa osentido da pobreza material é egestas e seus próximos, tais como overbo egere. Este último também é intercambiável por nonhabere/habendo/habentes. A egestas, por sua vez,opõe-se a opulentia/abundantia, as quais, via de regra, surgem emconjunto.
A egestas possui, portanto, força conceitual para definir a pobrezamaterial, aspecto sobremaneira marcante no pensamento franciscano. A apropriação danoção da pobreza, em sua materialidade - em certo sentido, contra a tradiçãoexegética -, possui implicações para o desenvolvimento do pensamento e dasinstituições franciscanas já nos primeiros séculos. A incorporação da pobreza em suaforma concreta se faria a partir do emprego do léxico da egestas,sendo que a paupertas manteria seu emprego como categoriarelacional. O Tractatus traz a fórmula egestas superpaupertatem, o que vem a confirmar o uso categorial depaupertas e o uso conceitual de egestas. Afórmula, repetida ao longo do tratado, é empregada como sinônimo da tambémamplamente utilizada expressão penuriam rerum utilibium. O vocábulopenuriam, ao lado de necessitas, encontra-seassociado ao léxico da egestas no conjunto do tratado.
A egestas, por sua vez, vem associada a uma série de aspectosrelacionados à propriedade e aos bens em geral, via de regra, representados portermos empregados no caso latino do genitivo (carecer de [algo]). Érecorrente, portanto, no texto do Tractatus, a presença deexpressões tais como egestas res, egestas divitiae, entre outras.Há uma insistência, portanto, na associação da Ordem à carência(egestas) de bens materiais: coisas, dinheiro, reserva degrãos, privilégios concedidos por poderosos, alimentos. Trata-se da prevalência doléxico da egestas sobre o da paupertas nadelimitação dos aspectos da pobreza material.
Essa mesma carência relaciona-se, no corpo do texto, a aspectos definidores dapobreza, representados por uma terminologia que pretende circunscrevê-la - sempreaplicada em proximidade com a palavra egestas - e não com o termopaupertas. Trata-se de definir e caracterizar a pobrezamaterial - a egestas - por topói recorrentes, taiscomo: vileza no vestir e no comer, rígidos jejuns, forma de viver em humildade easpereza. Da mesma forma, é recorrente o emprego de uma terminologia alusiva aooposto daquilo que se configuraria como pobreza material: trata-se da referência àdelicadeza - essa vem, via de regra, associada à comida, mas também poderelacionar-se à vestimenta. Trata-se de um tópos dasvitae e legendae, que situam o personagem deFrancisco anteriormente à conversão em seus hábitos burgueses e abastados. Ocontraste é representado por sua renúncia à vestimenta no momento do desnudamentodiante de seu pai e por sua disposição para o trabalho sob a condição de pedircomida de porta em porta - ambos aspectos já tratados neste capítulo.
A humilitas que se encontra aqui não representa um princípio geralda norma comportamental franciscana e nem uma alegoria da pobreza bíblica. Portanto,não se trata de uma forma intercambiável com a paupertas, mas simuma manifestação material e concreta da pobreza - portanto,egestas. Ao modular-se à egestas, ahumilitas tem sua semântica alterada: ela passa a ter seusignificado associado a elementos da existência material e concreta. Um dosmecanismos de alinhamento da humildade à pobreza material é sua associação, conformese observa no corpo do De usu paupere, à terminologiaasperitate. A aspereza designa formas e texturas palpáveis,sobretudo no vestir e no comer - e, portanto, situa e preenche um conjunto decondições materiais de existência. Em adição, a aspereza contrastacom a delicadeza, sendo que essa última, via de regra, é empregadacom a função de definir uma situação material: no caso, a vida burguesa. Note-se, aesse respeito, que a humilitas e sua terminologia relacionadaacabaria por ser facilmente associada à pobreza material do que a própriapaupertas. Essa última se encontraria investida,historicamente, de muitos - e múltiplos - significados, embora muito raramente deseu sentido literal tal como hoje se lhe atribui.
A terminologia da egestas vem, ainda, relacionada aousus. Embora esse último se encontre fundamentalmentearticulado a expressões da vida material - uma vez que se refere aos bensdisponíveis aos frades -, o emprego do termo não é frequente quando relacionado àegestas. Ao contrário, quando se trata do corpo lexical dapaupertas, o usus passa a ser um elementosempre presente e operante no campo normativo. Trata-se de uma categoriainstrumentalizada para fins jurídicos e com emprego muito limitado no campo dascondições concretas de existência. A partir da bula de Gregório IX, ousus passaria a configurar-se como aspecto da norma franciscanae seria empregado conforme a sua definição particular da pobreza: ele passaria aintegrar um corpus teórico de significações no universofranciscano.
Por conseguinte, ao tratar do uso - seu eixo temático, embora raramente sua temáticaúnica -, o Tratado o emprega, primordialmente, em uma acepção demedida, o que vem a reforçar sua função normativa. O usus tem porfunção operar uma modulação da paupertas, de forma que cabe a eledelimitar o campo destinado ao exercício da paupertas ecircunscrever as práticas franciscanas. Sendo assim, temos quepaupertas/pauper consiste, neste caso em particular, naforma do uso. Seguem os principais empregos do ususpauper e suas formas intercambiáveis:
A IX Quaestio representa um caso modelo do tratamento do tema. Nãose verifica a palavra paupertas neste enunciado em forma dediálogo. Olivi compõe sua réplica à quaestio sobre o ususpauper prescindindo do vocabulário específico dapaupertas. Mais afeito à categorização abstrata, o instrumentalda paupertas revela-se menos útil ao tratamento de questõesespecíficas da vida prática. Aqui predomina o léxico da necessitas.Ao seu lado, coexistem as formas habere sufficientiam eegere. A necessitas, por sua vez, é passívelde um espectro de variações, embora estas sejam restritas a uma semântica da pobreza- ela não é, como a paupertas, uma categoria relacional. Anecessitas serve, antes a uma categorização que adquire sentidono interior do discurso, por sua força retórica. Dessa forma, temos associações taiscomo necessitas presens; necessitas extrema; necessitas mortis; necessitasminora. Destas, a necessitas presens é a maisamplamente empregada para definir o ideal do usus pauper:“nunquam res accipienda vel habenda nisi pro necessitatepresente. ” (ed. BURR, 1992, p. 109).
A instituição franciscana impunha, desde seu estabelecimento efetivado sob o modeloconventual, a questão das doações. Alvo de críticas de parte da Ordem e sempreencarada de forma controversa, as doações deveriam, também, enquadrar-se nacategoria do usus, excluindo-se a questão da propriedade. Aqui, aterminologia recai sobre a mendicância, intercambiável com a noção do ususpauper: “Sed aliquando melius possunt dare semel pro toto annout in vindemiis et messibus et consimilibus (...) usum hominum inopum etmendicantium. ” (ed. BURR, 1992, p. 110).
Conclusão
O léxico da pobreza no conjunto da documentação franciscana implica,fundamentalmente, em uma polissemia. Essa tem sua origem na própria ambiguidadeinterpretativa do texto bíblico, a partir das sucessivas exegeses e traduções dohebraico, do grego e do latim. Mas essa polissemia também deriva da particularidadeda eleição da pobreza como fundamento de toda a doutrina franciscana. Ao longo datradição de escritos ligados aos meios monásticos, a paupertas teveseu emprego preferencial como categoria relacional. No conjunto da documentaçãofranciscana, por seu turno, a paupertas apresentava, para alémdesse uso tradicional, uma acepção doutrinária e modal. Embora onipresente no textofranciscano, o vocábulo paupertas nunca aparece empregado com osentido de condição material de existência.
Em que pesem suas limitações, por intermédio da noção da paupertas(e não necessariamente da terminologia paupertas) e de seuscorrespondentes egestas, mendicitas, necessitas, a literaturafranciscana readequou o léxico do trabalho - o labor manuum - àterminologia da vida religiosa. Doravante, o trabalho se encontraria, naterminologia, incontornavelmente associado à pobreza, a partir da mediação damendicância.
Este conjunto de reflexões nos possibilita algumas conclusões de caráter geral ealgumas pistas para a exploração de determinadas particularidades. Em primeirolugar, é necessário considerar a manifestação lexical da pobreza franciscana nointerior de uma série histórica abrangente o suficiente para nos fornecer bases paraa comparação. Neste sentido, retomamos uma terminologia que remonta aos princípiosfundadores do cristianismo e constituidores de sua antropologia. O vocabulárioidentificado seria retomado e se tornaria hegemônico, ditando, ao mesmo tempo, uméthos cristão de pobreza predominante ao longo dos séculos.
Em segundo lugar, a análise da série histórica permite afastar a hipótese, sempreretomada em círculos acadêmicos e não acadêmicos, segundo a qual Francisco de Assisfundamentaria uma novidade absoluta com sua proposta específica de pobreza.Igualmente, uma tal análise de longo prazo nos conduz a refutar o pensamentocorrente segundo o qual as formas de pensar, agir e relacionar-se com a sociedadepropostas pela e para a Ordem Franciscana seriam, essencialmente, disruptivas; aocontrário, elas integram um longo caminho de construção e reconstrução dareligião.
Por fim, aqueles aspectos realmente inovadores aportados pela “boa-nova franciscana”são importantes por iluminar todo um período, dotado de característicasparticulares, necessidades específicas e novas formas de relacionamento das pessoasentre si e com seus espaços. Por outras palavras, uma vez separados do caldo geral,estes aspectos acabam por reforçar a singularidade de Francisco, de sua experiênciae de sua proposta - uma vez que lhes conferem significação em seu ambiente e em suatemporalidade.
Resumo
Main Text
1. Introdução: a pobreza como categoria histórica
2. O léxico e o campo semântico da pobreza
3. A pobreza beneditina: economia de bens materiais e simbólicos
4. A Ordem Franciscana: concórdia entre pobreza e trabalho
Conclusão