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Fri, 16 Oct 2020 in Revista de História (São Paulo)
UMA HISTÓRIA GLOBAL ANTES DA GLOBALIZAÇÃO? CIRCULAÇÃO E ESPAÇOSCONECTADOS NA IDADE MÉDIA
Resumo
A História Global costuma ser definida como a análise da globalização econômica,cultural, tecnológica, bem como dos processos que lhe são associados: aemergência de uma sociedade de consumo planetária, a exploração do espaço, aameaça nuclear, os riscos tecnológicos, os problemas ambientais etc. É evidenteque, nessa acepção, a História Global não se adequa ao estudo das sociedadespré-modernas. Os fenômenos, desafios e ameaças que ocupam aqueles que adotam aHistória Global no estudo das sociedades anteriores ao século XVII não sãoos mesmos aos quais se interessam os estudiosos da Globalização. O objetivodeste artigo é discutir as possibilidades e os limites da História Global para oestudo das sociedades anteriores ao processo de Globalização.
Main Text
A noção de Idade Média carrega uma longa história que remonta ao Humanismo italiano dosséculos XIV e XV. Todavia, foi na segunda metade do século XIX que ela assumiu suafeição atual - a de um campo de conhecimento a respeito das sociedades que sedesenvolveram, grosso modo, entre os séculos V e XV, em um espaço que se estendia daPenínsula Ibérica ao Levante e da Escandinávia ao Norte da África. Foi também na segundametade do século XIX que a História se afirmou como disciplina científica e, sobretudo,como uma narrativa das origens das nações e dos Estados. Essa narrativa, que ultrapassouos limites da Academia e ganhou as opiniões públicas dos velhos e dos novos EstadosNacionais, atribuía um papel crucial ao período medieval. Os séculos de V a XV foramerigidos, por um lado, em teatro dos acontecimentos fundadores das nações europeias - obatismo de Clóvis, a Batalha de Covadonga, a coroação imperial de Carlos Magno, oTratado de Verdun, a Batalha de Hastings, a Batalha de Kosovo; por outro lado, em berçodos seus principais heróis - Clóvis, Carlos Magno, Joana d’Arc, Dante Alighieri, El-Cid,entre outros. Sob o impacto de dois conflitos mundiais que provocaram mortes edestruições em uma escala nunca antes vista no continente, da crítica ao nacionalismo eda construção da unidade europeia, a segunda metade do século XX assistiu à emergênciade uma nova tendência, que consistia em associar os séculos de V a XV à formação daEuropa. Quatro anos depois do final da II Guerra Mundial, o historiador alemão HermannHeimpel, diretor do Max Planck Institut de 1957 a 1971, sustentava que a Idade Médiacriou a Europa (HEIMPEL, 1949, p. 13-26). Mesmoque essa afirmação fosse uma tentativa de marcar a ruptura com suas tomadas de posiçãodurante o regime nazista (um de seus discursos, proferido em 1933, se intitulava “AIdade Média alemã - O destino da Alemanha”), o fato é que ela anunciou o caminho que ahistoriografia europeia percorreria nas décadas seguintes. O livro de Lucien Mussetsobre as “invasões bárbaras”( MUSSET, 1965),publicado na França, em 1965, recebeu, quando de sua edição inglesa, de 1975, osubtítulo “The Making of Europe”, ausente na edição francesa - tal acréscimo traduzia atendência de se enxergar a dissolução do Império Romano não mais como o ponto de partidada formação de identidades nacionais diversas, mas de uma só identidade europeia. Aideia se fortaleceu nas décadas seguintes, sem ter eclipsado totalmente a associaçãoentre a Idade Média e as origens das nações. Que o diga, por exemplo, a edição francesa,de 1989, do livro do historiador norte-americano Patrick Geary, cujo título, escolhidopelo editor, Naissance de la France, estava em flagrante contradição com o títulooriginal da obra, Before France and Germany.
O exemplo mais marcante da força que ainda exerce a ideia de nação entre os historiadoresfoi a recepção do livro Histoire Mondiale de la France, organizado por Patrick Boucherone publicado em 2017. Esse livro, de mais de 800 páginas, e para o qual contribuíram 122historiadores, vendeu cerca de 110.000 exemplares. A pedra angular em torno da qual aobra foi construída é a de que a História da França não tem sentido algum se não seinscrever na História Mundial. A obra recebeu duras críticas, dentro e fora dacomunidade acadêmica, por exemplo, a de que Boucheron pretendia “dissolver a França”. Noentanto, a crítica mais surpreendente, e talvez a mais absurda, veio do historiadorPierre Nova, que acusou os autores de celebrar o combate por uma “humanidade mestiça emigrante”, dos habitantes da gruta de Chauvet à França dos imigrantes clandestinos. Eletambém diz que os autores tomaram a disciplina História como refém de um projetoideológico. O livro organizado por Boucheron é a obra que melhor traduz, até o momento,o esforço da historiografia francesa em direção a uma História Global (ou HistóriaMundial, termo preferido pelos franceses). Tendo como pano de fundo o combatereivindicado contra as “derivas identitárias”, o esforço de Patrick Boucheron é mostrarque a “mundialização” não data de hoje e que a França sempre esteve aberta àsinfluências externas.
A inserção da História da França no âmbito de uma História da Europa parece maisconsensual do que a sua inserção numa História Global. Em 2003, Jacques Le Goffpublicava, na Coleção “Faire l’Europe”, um livro com o título no formato de uma questão,L’Europe est-elle née au Moyen Âge?, à qual dava uma resposta afirmativa, por meio daidentificação de um conjunto bastante heteróclito de fenômenos que o autor não dizclaramente se são ou não exclusivos da Europa: as capitais e as cidades, asuniversidades e a cultura urbana, as contestações e a repressão, a burocracia, asmonarquias nacionais, a memória e a história etc. A lista é longa; tanto a amplitude dosfenômenos descritos por Le Goff como “europeus” quanto a ausência de uma perspectivacomparatista foram criticadas quando da publicação do livro L’Europe est-elle née auMoyen Âge? (PAULY, 2005, p. 157-166). No entanto,nada que se comparasse à polêmica suscitada pela História Mundial da França. Claro, ostempos eram outros e a França de 2003 ainda não havia começado a enfrentar o debate emtorno da “identidade nacional”, que caracterizaria o mandato de Nicolas Sarkozy. Veio daantropologia a crítica à ideia de Le Goff que define a modernidade como uma criação daEuropa medieval. No entanto, a crítica mais contundente a essa ideia veio daAntropologia, mais precisamente da obra do inglês Jack Goody (também autor de um volumena Coleção “Faire l’Europe”, intitulado La famille em Europe). Em O roubo da história,Goody pretendeu denunciar aquilo que chamou de “esforço coordenado de acadêmicoseuropeus [entre os quais ele inclui Jacques Le Goff] para manter uma posição altamenteeurocêntrica mesmo diante das evidências que exigem interpretação distinta” (GOODY, 2008). Em que pese a polêmica suscitada pelasua denúncia do “roubo” perpetrado pela Europa, é inegável que a obra de Goody é um dosmarcos da crise das teorias da modernização e das narrativas históricas que lhes davamsustentação. Suas reflexões sobre as relações entre Ocidente e Oriente, sua crítica aoeurocentrismo, bem como seu recurso sistemático à análise comparativa o situam nacorrente que se convencionou chamar de “Global History”. Ao longo dos anos, a HistóriaGlobal surgiu como uma alternativa à História Nacional, na medida em que soube salientaros fenômenos de interdependência e os processos de integração em escala planetária. Emuma obra coletiva, publicada em 1993 e intitulada Conceptualizing Global History, ohistoriador Bruce Mazlish definiu a História Global como a análise do nascimento e daevolução do fenômeno recente da globalização econômica, cultural, tecnológica, bem comodos processos que lhe são associados, como a emergência de uma sociedade de consumoplanetária, a exploração do espaço, a ameaça nuclear, os riscos tecnológicos, osproblemas ambientais etc. Segundo ele, a História Global, além de ser a melhor maneirade se estudar a sociedade globalizada - fruto de um mundo cada vez mais interconectado einterdependente - deveria tornar-se, inclusive, um novo período da História, situadoapós a História Moderna e a História Contemporânea. Nessas duas acepções, seja comocampo de estudo da globalização, seja como período histórico correspondente à sociedadeglobalizada, a História Global não se adequaria ao estudo das sociedades que nãoconheceram o processo de Globalização. Nesse sentido, a questão que se coloca nestedossiê é a seguinte: quais os limites e quais as possibilidades de uma História Globalantes da Globalização?
É preciso reconhecer que, apesar do otimismo de alguns de seus defensores, a HistóriaGlobal não se tornou um campo de estudos consolidado, menos ainda um marco cronológico.Uma das razões disso é que os historiadores se equivocaram no diagnóstico de que osEstados Nacionais estavam em um inelutável declínio e de que, por conseguinte, aHistória Global substituiria a História Nacional. Jill Lepore, em artigo publicado na revista Foreign Affairs, no primeiro trimestre de2019, lamenta-se de que os historiadores tenham abandonado a HistóriaNacional, deixando-a nas mãos de “charlatões, fantoches e tiranos”. Seu diagnósticoparece excessivo, pois há de se reconhecer que a demanda por Histórias Nacionais porparte da opinião pública foi também atendida por historiadores não profissionais,jornalistas ou ensaístas que produzem textos acessíveis e que se baseiam em uma boapesquisa documental. No entanto, ela tem razão ao afirmar que, quando os historiadoresabandonam o estudo da nação ou quando os acadêmicos param de tentar escrever umahistória comum para um povo, o nacionalismo não morre. Eis o dilema dos historiadores,segundo uma fórmula da autora: escrever História Nacional cria uma série de problemas;no entanto, recusar-se a escrevê-la cria mais problemas ainda, e esses problemas sãopiores (LEPORE, 2019, p. 10-19).
Desprovida de suas pretensões de substituir a História Nacional, ou ainda de se converterem sucessora temporal da História Contemporânea, o que resta da História Global? Ela seconverte em um método. E é nesse método que reside o principal interesse para aquelesque pretendem estudar as “sociedades antigas” - o termo parece mais adequado do que“pré-moderno” para definir as sociedades que não experimentaram um processo deglobalização. Esse método busca, por meio do vaivém incessante entre os diversos níveis(temporais e especiais), identificar analogias, paralelismos, bem como as conexões quenão se poderiam identificar em uma abordagem mais fechada e estática. A História Globalpermite, assim, trazer à luz interpretações gerais que, de outra forma, permaneceriaminvisíveis, ocultas (MAUREL, 2009, p. 153-166.).
Não podemos, contudo, desprezar a “escala nacional”, ainda que seja difícil defini-la comprecisão territorial antes do advento dos Estados Nacionais. O desafio está precisamenteem evitar a perspectiva genealógica, projetando no passado as construções nacionaiscontemporâneas, seu Estado, suas fronteiras, sua burocracia e mesmo suas rivalidades -tal perspectiva foi exaustivamente criticada nas últimas décadas. O desafio da HistóriaGlobal antes da Globalização é o de identificar os diversos níveis e escalas nos quaisas comunidades se constroem, se modificam, interagem entre si. Seria, aliás, um equívocoresumir essas comunidades a sua escala macro (a “cristandade”, o “islã”) ou a sua escalamicro (o “vilarejo”, a “aldeia”), desprezando as comunidades políticas que seconstruíram paulatinamente em torno de um mito fundador, de uma batalha, de um herói oude particularidades geográficas. Essas comunidades não são uma invenção pura dahistoriografia do século XIX - é possível encontrá-las nas leis, nas correspondências enas obras dos historiadores que, na Antiguidade e na Idade Média, refletiram sobre asorigens e as identidades dos povos que habitavam as margens do Mediterrâneo e além. Aomesmo tempo, é necessário diferenciá-las das construções nacionais do século XIX, queprojetam sobre toda a comunidade territorial uma homogeneidade cultural e linguística euma origem comum que são amplamente fabricadas. A História Global e suas abordagenscomparatistas em várias escalas espaciais e temporais, quando aplicadas às sociedadesantigas, podem lançar uma nova luz sobre os processos de emergência, de resiliência e detransformação das comunidades antes da fabricação dos Estados Nacionais (CURTIS, 2016.).
A História Nacional centrou-se unicamente nas noções de território e de fronteira,deixando em segundo plano outras formas de espacialização da vida social. Território efronteira são noções institucionais e, ainda hoje, marcam o “inconsciente científico” damaioria dos pesquisadores. Um de seus maiores expoentes é a Geografia Histórica do finaldo século XIX e do início do século XX, que considerava os espaços como quadrospré-definidos sem grande descontinuidade entre si, podendo ser medidos, cartografados edelimitados e nos quais se encaixaria a história das sociedades (cidades, diocese,senhorias paroquiais, departamentos…) (CHOUQUER,2008). Nos anos 1950-1970, a École des Annales atribuiu importância aoespaço, a ponto de Ferdinand Braudel definir sua abordagem como “géohistoire” - mas oestudo da dinâmica das formas espaciais em uma “longa duração” acabou não seconcretizando. Nos três volumes sobre a “Nova História” (LE GOFF, NORA, 1974), organizados por Jacques Le Goff e por Pierre Nora,1974, o espaço não aparecia como objeto de pesquisa. Isso só ocorreu a partir do iníciodos anos 1990, quando os medievalistas passam a se interessar pela capacidade de associedades construírem espaços e espacialidades simbólicas (COHEN, MADELINE, IOGNA-PRAT, 2016, p. 1-19). É nítida a influênciado “spatial turn”, obra de geógrafos e de sociólogos que advogavam tanto a capacidadesde as comunidades fabricarem o espaço quanto o fato de este último possuir também umadimensão simbólica. Assistimos, entre os medievalistas, à emergência de novos objetos: aespacialização do social, que tomou a forma dos conceitos de “Incastellamento” (TOUBERT, 1973), “Encellullement” (FOSSIER, 1982) ou “Inecclesiamento” (LAUWERS, 2013, p. 315-338); o estudo de lugares eespaços sagrados e santificados (VAUCHEZ, 2000), dos espaços eclesiológicos (IOGNA-PRAT,2006; LAUWERS, 2015), dos loci da afirmação de poder da Igreja sobre os homens, ositinerários processionais como uma afirmação do poder do príncipe e da comunidade noambiente urbano (LECUPPRE-DESJARDIN, 2016; RICHARD, 2009). Todas essas novas perspectivas, àsquais os medievalistas são profundamente sensíveis, apontam para a profunda imbricaçãodo físico e do social nas realidades socioespaciais (NOIZIET, 2012).
A constatação de que o espaço é fabricado e, ao mesmo tempo, objeto de representações,colocou para os historiadores o problema da identificação dos agentes dessa fabricação edessas representações. As comunidades constituem, nesse sentido, a melhor ferramentapara a compreensão da espacialização do social, pois o que as define, no âmbito dasociologia, é a ação - seja ela fundada em expectativas, em valores ou em crençascomuns. As comunidades existem porque elas desenvolvem as práticas comuns de ocupação,de apropriação, de produção e de reprodução do espaço. Nesse sentido, elas constituemcategorias mais adequadas para uma História Global das sociedades antigas do que“estamento”, “classe social” ou “etnia”. Essa abordagem, fundada nas comunidades,possibilita orientar a reflexão não para a “essência” dos grupos sociais, mas para asmodalidades de suas ações (o espaço produzido, a construção da memória etc.) e avaliarse a expressão de sua identidade é consciente ou criada por um agente externo (porexemplo, a obrigação do pagamento de um imposto ou o engajamento forçado no exército).Embora as comunidades não representem pessoas jurídicas até o século XII, algunshistoriadores não hesitam em falar de “comunidades” no início da Idade Média. WendyDavies, por exemplo, usa o conceito de “community territory” para enfatizar que apropriedade camponesa não é uma série de espaços isolados, mas uma rede deinter-relações. Temos, portanto, a possibilidade de pensar as diversas escalas do espaçoantigo, sem o recurso ao Estado como categoria explicativa, em uma perspectiva que une olocal, o regional e o supra regional. A História Nacional é estreitamente dependente doEstado como mecanismo de espacialização do social, tanto no que se refere à definição defronteiras quanto por meio do processo de socialização. A noção de “comunidade deprática”, elaborada por Étienne Wenger, por exemplo, constitui um meio pelo qual podemosanalisar o fenômeno da socialização em sociedades anteriores à emergência do EstadoModerno. Os membros de uma comunidade são gradualmente treinados por meio de suaparticipação cada vez mais completa nas atividades do grupo. Suas interações com membrosexperientes os transformam, gradualmente, em membros de pleno direito (que, por sua vez,podem treinar novos membros) (WENGER, 1999). Éimportante também levar em conta a complexa questão das comunidades de ideias. O estudodos discursos que legitimam a comunidade e seus modos de ocupar e de fabricar um espaçoajuda na compreensão das maneiras pelas quais essa comunidade se representa, sereproduz, transmite sua própria memória e orienta a construção das identidades dossujeitos que a compõem. No entanto, não podemos restringir a nossa análise aosprocedimentos de construção das comunidades. O conflito externo, as disputas internas, aexclusão, a perseguição, o estabelecimento de hierarquias, as epidemias, os desastresnaturais, são todos meios por meio dos quais as comunidades podem se deslocar ou sedissolver (GREEN, 2017, p. 494-520).
As comunidades e seus espaços não constituem, de forma alguma, categorias estanques,pois, mesmo quando nunca tiveram contato entre si, podem ser objeto de comparação. E aHistória Global constitui uma ferramenta eficaz nesse sentido. Marcelo Detienne, em seulivro “Comparer l’incomparable”, mostrou que o comparatismo não deve e não pode serestringir a sociedades que estabeleceram contato entre si. Ele apresenta uma defesamarcante do comparatismo, contra aquilo que designa de “tirania do nacional” nasCiências Sociais. Detienne propõe um método baseado em uma transcendência disciplinar(de forma a integrar a História e a Antropologia) e geográfica, que consiste em submetera um mesmo questionamento sociedades que não possuem, a priori, nada em comum, ou quepertencem a épocas distintas, de forma a identificar um aspecto até então desapercebidoou então revelar lógicas parciais de pensamento (DETIENNE, 2000). Quanto às comunidades que estabelecem contato entre si, talcontato se dá por meio da circulação de homens, de ideias, de notícias, de bens e deobjetos em geral. A comunicação é um aspecto importante desses contatos e umacaracterística essencial de todas as formas de vida social. Além disso, toda ação socialpossui, necessariamente, aspectos comunicativos.
A partir da Segunda Guerra Mundial, observamos o desenvolvimento das Teorias deComunicação a partir das obras de Harold Laswell (LASWELL, 1948, p. 37-51). No entanto, foi graças à teoria matemática dacomunicação de Claude Shannon (SHANNON, 1948, p.379-423) que a comunicação se tornou um tema frequente das pesquisas em CiênciasHumanas, influenciando também os estudos medievais, principalmente a partir dos anos1970. Entendemos hoje que todas as formas de comunicação são parcialmente oucompletamente políticas e sociais em seus significados e envolvem, portanto, relaçõesdesiguais de distribuição de poder. O interesse pela comunicação nos estudos medievais,como indica Jan Dumolyn, tem contribuído com pesquisas sobre as redes e a circulação denotícias e mensagens, sobre os mensageiros e os receptores, sobre a linguagem e osespaços de comunicação oral, escrita e gestual, por exemplo (DUMOLYN, 2012, p. 33-55). Os usos iniciais do conceito decomunicação em trabalhos de medievalistas, como no trabalho de Michael Richter, tendiama utilizar a palavra para designar formas de comunicação não escrita (RICHTER, 1995). A partir dos trabalhos de GerdAlthoff, em meados dos anos 1990, ganhou importância a noção de comunicação política esimbólica com foco na comunicação oral e na comunicação não verbal (ALTHOFF, 1997). A comunicação política podeconfirmar e espalhar certas ideias fundamentais, valores e normas sociais, trazendo àtona padrões de comportamento que são compartilhados por membros do corpo político e dacomunidade. É esse o tema do artigo deste dossiê, intitulado A Comunicação políticaentre angevinos e aragoneses em Palermo, na Crônica da Sicília (séculos XIII e XIV): umexercício de história conectada, de Igor Salomão Teixeira. O autor utiliza as noções demediação e de comunicação política em sua análise da Crônica da Sicília, para mostrarcomo esse texto anônimo do século XIV serviu como uma ferramenta na disputa entrearagoneses e angevinos sobre o território e através do território siciliano.
O contato entre as comunidades não se restringe à comunicação. Noções de movimento emobilidade são centrais para a compreensão de vários aspectos da sociedade. Em suaessência, “movimento” inclui conexões no tempo e no espaço por meio de pessoas, deobjetos e de ideias. É importante investigar como a circulação, os movimentos e amobilidade das pessoas, dos hábitos, das mercadorias e das ideias influenciam aconstrução das próprias comunidades e de seus espaços. É essa reflexão sobre o papelconstrutivo da circulação e da comunicação que vemos no artigo de Adriana Vidotte,intitulado Das Artes e da Natureza: articulação de saberes no pensamento científico doséculo XIII e publicado neste dossiê. A autora busca analisar, na construção dopensamento científico ocidental do século XIII, a influência dos conhecimentosproduzidos no na Grécia Antiga e no mundo árabe. Para tanto, utiliza a obra Image duMonde, escrita por Gossouin de Metz, por volta de 1245, para mostrar o quanto apercepção da natureza nos meios letrados do século XIII foi influenciada pelas conexõescom o espaço árabo-muçulmano.
A discussão sobre circulação ganhou relevo, principalmente, na esfera da História daArte. As primeiras reflexões nesse sentido surgem na Revue de l’Art, em 1998, com oeditorial de Roland Recht (RECHT, 1998, p. 5-10).Os estudos dedicados às circulações e mobilidades, principalmente artísticas, deveriamtratar da interculturalidade, da interação cultural ou da história cruzada, dosdeslocamentos, das trocas ou das transferências. A intenção de Recht, portanto, eraressaltar a amplitude e a intensidade das trocas em um período que havia permanecidoainda na sombra e buscar caracterizar as “modalidades segundo as quais essa circulaçãooperava”. No campo da História da Arte, como indica Jean-Marie Guillouët, pensar sobreessa questão significa colocar em evidência a circulação dos artistas, dosconhecimentos, das formas, das obras e dos modelos e compreender o papel dessamobilidade nas evoluções artísticas (GUILLOUËT,2009, p. 17-25). Com isso, ressalta-se o fato de que, por exemplo, osaber-fazer “importado” e o local se interpenetram, às vezes são recusados e outrasvezes são mestiçados. Há resistências e disputas, há incorporações intencionais. Muda-sea escala para não mais se pensar exclusivamente em termos de “influências” ou de visõesnacionalistas (como no caso dos trabalhos de Georg Troescher no início do século XX),mas sim das causas e consequências dessas mobilidades na produção em escala europeia eaté global. O artigo de Flavia Galli Tatsch, intitulado Mobilidades, conexões, novoscontornos. A circulação de artefatos em marfim nos séculos X-XIII, pretende analisarcomo a circulação de artefatos em marfim contribuiu para a constituição para aquilo quea autora chama de uma “cultura visual comum” no Mediterrâneo entre os séculos X-XIII.
A circulação é um conceito que nos ajuda a pensar também em novas articulações, como nocaso da discussão das “commodities sagradas”, noção proposta por Patrick Geary (GEARY, 1986, p. 169-192). Em uma acepção mais amplado sentido de commodity, na qual podem ser consideradas commodities quaisquer pessoas ouobjetos que são circulados e trocados e cujos valores e autoridades só se confirmamnessa circulação, Geary ressalta a centralidade desse conceito para a compreensão dosvalores atribuídos às relíquias ao longo da Idade Média. Por uma perspectiva de HistóriaEconômica, a circulação também é um elemento fundamental, como tem demonstrado LaurentFeller em seus trabalhos dedicados ao valor das coisas (FELLER, 2017, p. 57-76). Os estudos realizados recentemente a respeito dosmecanismos de troca (mercantis e não mercantis) chamaram a atenção para as formas decirculação forçada ou voluntária de terras e de objetos, para os valores das diferentesformas de transação, bem como para o papel dos objetos e sua dimensão econômica (FELLER,RODRÍGUEZ, 2013; CÂNDIDO DA SILVA, 2014; POTTAGE, 2004, p. 1-39).
Pensar a circulação e a comunicação significa, portanto, afastar-se de uma lógica em quesó se analisa o resultado final ou o caminho final percorrido. As circulações sãoimportantes em si e auxiliam na elaboração de uma história conectada. Dessa forma,algumas das consequências de se pensar a partir da noção de comunicação e circulaçãoficam claras: desenha-se uma outra expansão territorial, uma vez que se pensa em termosde redes, que podem ser ou não contínuas e altera-se as lógicas espaciais (oMediterrâneo, a Eurásia, a inclusão do mundo africano). Rompe-se com a história nacionalao se propor uma lógica de conexões, criando outras unidades políticas, algo fundamentalpara a compreensão do período medieval. Ao mesmo tempo propõe-se uma visão pós-estatal,ou seja, uma visão de um mundo não estatal, no qual os agentes não são necessariamenteoficiais do governo. Mudam-se os tempos e os recortes cronológicos, uma vez quecronologias tradicionais (como a queda de Roma, a tomada de Constantinopla, a crise doséculo XIV, para citar apenas alguns marcos clássicos) não dão conta de explicar asdinâmicas de mobilidade dessa sociedade, que se mostra muito mais complexa, fluída ediversa do que se poderia imaginar a partir das datações fechadas. Finalmente, mostra-sea complexidade das identidades, eliminando a substancialização e a essencialidade, parase pensar em termos de identidades mistas, com características compartilhadas com váriasidentidades.
Assim, os conceitos de “comunicação e circulação” permitem tratar de questõesrelacionadas à construção da memória e da historiografia, da circulação e dastransferências de imagens e de objetos, das redes de comunicação política e social, dastrocas comerciais e dos bens, da construção dos conceitos e do conhecimento, dos usos ecirculações das imagens políticas, das trocas culturais, sociais e políticas em espaçosgeográficos diferenciados. Na confluência desses diferentes trabalhos, a comunicação e acirculação se encontram para oferecer a visão de uma história conectada da Idade Média,para além das tradicionais barreiras geográficas e temporais - e, exatamente por isso,são fundamentais para pensarmos a Idade Média como História Conectada. O interesse pelomovimento como um elemento do mundo medieval ajuda a romper a visão estereotipada de umasociedade fechada e estática. A partir das noções de comunicação e de circulação, osautores deste dossiê analisam a Idade Média como um mundo aberto e diverso, no qualpessoas, ideias e objetos se deslocavam para além das fronteiras nacionais e entre osdiversos espaços políticos e culturais.
A circulação não envolve apenas aspectos positivos. Em plena era das migrações, tendemosa enxergar a circulação de homens, de ideias e de mercadorias como um dos principaismecanismos de fortalecimento dos laços sociais. Não temos o hábito de pensar ascirculações como algo disruptivo. Assim, esquecemo-nos de que os conflitos militaresenvolvem, também, a circulação de homens e de materiais. Ou, ainda, as circulaçõescompulsórias de pessoas ou de comunidades, as ondas de perseguição contra judeus oucontra os grupos sobre os quais recaía a acusação de heresia. A Peste é outro exemplo.Além de seu impacto devastador, ela é também um indicador da extensão da circulação deindivíduos e de mercadorias nas sociedades antigas. Tomemos a Grande Peste do séculoXIV: originária da Ásia - provavelmente da China (SLAVIN, 2019, p. 59-90), ela é mencionada na cidade de Caffa (um entrepostogenovês), às margens do Mar Negro, durante o cerco mongol, em 1346; os genovesesresistiram ao cerco, mas, em seu retorno à Europa, trouxeram a peste consigo; naprimavera de 1347, ela é atestada em Constantinopla; Alexandria, no Egito, foi atingidaem setembro de 1347; Messina, na Sicília, em outubro; Marselha, em novembro; Barcelona,em maio de 1348; Almería, Paris e Veneza, em junho. Nenhuma região da Europa foipoupada: a Itália, a França, a Inglaterra, a Irlanda, a Escandinávia, a região báltica,a Polônia, a Península Ibérica, as planícies da Europa Central, os Bálcãs.
Por fim, a fome e a pobreza. É preciso evitar a tentação de se deduzir, a partir dogrande número de referências à fome e aos pobres nas fontes narrativas do período, queas sociedades medievais estavam mergulhadas na escassez crônica. O historiador PereBenito i Monclús recenseou vinte episódios suprarregionais de fome entre 1090 e 1260.Segundo ele, os fenômenos climáticos desempenharam um papel menos importante nessascrises de grande amplitude geográfica do que os efeitos da expansão dos mercados entreos séculos XI e XIII: rumores, especulação, compras maciças de cereais por parte dascidades italianas teriam provocado alta de preços e fome no Norte da Europa (BENITO I MONCLÚS, 2011, p. 37-86). Isso mostra aimportância de se considerar as dinâmicas suprarregionais como fator explicativo dascrises alimentares, antes mesmo da formação de uma economia em escala europeia. No quese refere à pobreza, Thiago Ribeiro, em seu publicado neste dossiê e intitulado “Ocuidado do ‘pobre’ entre os séculos VIII e X: uma questão política global”, mostra que agrande recorrência de termos referentes aos pobres nos textos normativos bizantinos ecarolíngios não podem ser avaliados como um testemunho estatístico do empobrecimento eda opressão naquelas sociedades. Essa recorrência seria, sobretudo, o resultado dosinteresses dos agentes envolvidos na elaboração desses textos: as cortes bizantina ecarolíngia. Também na ótica do léxico da pobreza, Ana Paula Tavares Magalhãesdesenvolve, neste dossiê, uma reflexão sobre a Ordem Franciscana, na qual mostra que,embora onipresente no texto franciscano, o vocábulo paupertas nunca aparece empregadocom o sentido de condição material de existência.
Considerações finais: uma História Conectada da Idade Média
Este artigo introdutório pretendeu discutir as possibilidades da História Global parao estudo das sociedades antigas. Como método de análise, a História Global é maisbem definida por meio da expressão “História Conectada”, que constitui, no final dascontas, uma modalidade específica da abordagem Global. Seu objetivo, como afirmamCaroline Douki e Philippe Minard, é quebrar as compartimentações das históriasnacionais e dos espaços culturais, de forma a salientar a interação entre o local eregional e o supra regional (que pode ser chamado, algumas vezes, de global) (DOUKI, MINARD, 2007, p. 7-21). Segundo SanjaySubrahmanyam, a alternativa à grande narrativa da modernização não é afragmentação em parcelas como acreditam os pós-modernistas, mas o estudo dasinterações múltiplas, para além dos recortes estatais (nacionais ou imperiais) e comescalas diversas. Não se trata simplesmente de descer a outra escala, mas fazer umpasso para o lado, de olhar de outra forma e identificar conexões mais ou menosobscuras ou que passaram despercebidas (SUBRAHMANYAM, 2015, p. 425-445). É preciso lembrar que as fronteiraspolíticas não são entidades impermeáveis, elas só se tornaram impermeáveis graças àadoção de uma perspectiva de análise centrada nas nações. Nesse sentido, a HistóriaConectada não é global apenas do ponto de vista de seu objeto, mas também pela suarecusa à fragmentação historiográfica e às compartimentações disciplinares: elapretende mobilizar todas as disciplinas. O interesse pelas questões climáticas eecológicas e pelos problemas das relações dos homens com os meios em que vivem fezcom que os historiadores se voltassem para os geógrafos, os biólogos, osespecialistas do clima e da dendrocronologia.
Uma História Conectada da Idade Média não corresponde a uma grande narrativa dahistória europeia que vai do século IV ao século XVII. O caráter inovador daHistória Conectada reside no fato de que ela pretende ir além de umacompartimentação nacional da pesquisa histórica, de forma a identificar fenômenos,desafios ou ameaças que ultrapassam as fronteiras dos Estados e que dizem respeito aconjuntos de indivíduos, independentemente de seu pertencimento nacional. Osfenômenos, desafios e ameaças que ocupam aqueles que adotam o método da HistóriaConectada no estudo das sociedades anteriores ao século XVII não são, evidentemente,os mesmos pelos quais se interessam os estudiosos da Globalização, como as ameaçasnucleares ou terroristas, os problemas ambientais, as trocas de capitais, as açõesdas empresas multinacionais etc. (MAUREL,2009, p. 153-166). Uma História Conectada da Idade Média também não podeser conduzida a partir de temáticas ou de eixos de análise que derivam de umaabordagem puramente eurocêntrica do período (por exemplo, a emergência do EstadoModerno ou a expansão da Cristandade), ainda que esses fenômenos continuem a serobjeto de estudo. Assim, os objetos de uma História Conectada da Idade Média são osfenômenos que, entre os séculos IV e XVII, articularam espaços e comunidades naEurásia e na África: a expansão da Cristandade e do Islã, as rotas comerciaisatravés da África e da Eurásia, os intercâmbios comerciais e culturais, a emergênciade uma vaga de produção historiográfica que revela a afirmação de uma ideia dehistória global, as viagens e as expansões marítimas, o estabelecimento deentrepostos mercantis ao longo da costa africana, os conflitos militares, as crisesalimentares e os surtos de peste, entre outros. A História Conectada não pode serconectada apenas do ponto de vista da combinação de escalas de diversos níveis. Aincorporação da climatologia, da arqueologia, da demografia permite estabelecercomparações, relações que ultrapassem os contextos cronológicos e geográficostradicionais e compreender como as circulações de ideias e de mercadorias (mastambém os conflitos, a fome e a peste) conectaram os espaços eurasiano e africano.Seja pelo amplo escopo cronológico, seja pelo escopo geográfico, uma pesquisa queversa sobre Idade Média e História Conectada deve estar atenta ao impacto dos gruposhumanos sobre o meio-ambiente, mas também ao impacto do meio-ambiente sobre osgrupos humanos - sem, naturalmente, adotar as perspectivas deterministas quemarcaram uma primeira etapa do pensamento geográfico.
Robert I. Moore propõe como características unificadoras do “período medieval” a“intensificação” e a “resiliência”. A resiliência decorreria do fato de que, apesardas invasões, da fome, da crise ecológica, dos conflitos sociais e das epidemias queatingiram as sociedades das Eurásia entre os séculos XIII e XIV, essas sociedadesnão entraram em colapso. Originária das chamadas “ciências duras”, a noção deresiliência substitui a abordagem catastrofista pelo interesse nas formas pelasquais as sociedades lidam com as suas vulnerabilidades e reagem às crises (CURTIS, 2016). Mais importante ainda, teriahavido, segundo Moore, uma “intensificação” de diversos aspectos da vida social: dastrocas comerciais, da vida urbana e da aplicação de instrumentos de governo; dacapacidade desses instrumentos de penetrar pequenas comunidades, invertendo ouapoiando hegemonias locais; da difusão da escrita e das instituições que asustentam; da criação de comunidades e de novas formas de associação e derepresentação, de santuários, de redes de peregrinação e de novas formas deassociação (MOORE, 2016, p. 80-92). Essasduas características possuem a vantagem de não estarem associadas a uma históriapuramente ocidental ou europeia, além de permitirem que se coadunem os diversosníveis de análise, condição essencial para uma História Conectada.
O contexto no qual emerge a História Conectada é o de um profundo pessimismo emrelação ao Ocidente e ao seu lugar no mundo globalizado. No que se refere à IdadeMédia, a posição dos historiadores latino-americanos é privilegiada. Não somoshistoriadores ou arqueólogos europeus tentando responder à questão do lugar da nossasociedade no mundo contemporâneo. Não se trata, portanto, de fazer uma espécie de“pré-história” da globalização, tampouco de reencontrar um lugar para a Europamedieval numa narrativa global sobre a história do Ocidente. A Europa medieval nãodeve ser tratada como um espaço fechado, mas como um conjunto de espaços em conexõescom o Oriente, próximo ou mais distante, bem como com a África. A Idade Média deveser tratada como um marco cronológico em que o eurocentrismo é um sentido entreoutros. Como lembra Robert I. Moore, todas as periodizações trazem consigo o riscode disfarçar continuidades e de inibir a análise em conjunto de fenômenos, maspermanecem úteis e vitais na medida em que são capazes de formular grandes questõesque alimentam a investigação e a discussão. É importante ressaltar que a noção deIdade Média associada à História Conectada serve para situar cronológica einstitucionalmente a pesquisa, as circulações e os espaços conectados entre osséculos IV e XVII. Por outro lado, por meio do uso da expressão “Idade Média”,evoca-se um período situado entre a Antiguidade e a chamada “Primeira Modernidade”,sem, no entanto, inferir daí a existência de uma “civilização medieval”; ou, ainda,sem inferir que essas sociedades, apenas por situar-se nesse período, possuiriam asmesmas características.
Resumo
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Considerações finais: uma História Conectada da Idade Média
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