Fri, 16 Oct 2020 in Revista de História (São Paulo)
COMUNICAÇÃO POLÍTICA ENTRE ANGEVINOS E ARAGONESES EM PALERMO NACRÔNICA DA SICÍLIA (SÉCULOS XIII E XIV): EXERCÍCIO DE HISTÓRIA CONECTADA
Resumo
O objetivo deste artigo é analisar a Cronicon siculum, que narra a história daIlha da Sicília desde tempos imemoriais ao presente do autor, com especial focona relação conflituosa estabelecida entre palermitanos, angevinos e aragonesesno território a partir das Vésperas Sicilianas (1282). O problema de pesquisa é:A história global/conectada serve para analisar a disputa de territórios? Aanálise está baseada nas discussões sobre as possibilidades de abordar objetosde estudo a partir da conexão entre processos aparentemente distintos e/ouanalisar como regiões distintas se relacionaram com os mesmos processos. Osconceitos utilizados foram: middle seas, mediação e comunicação política. Asconclusões remetem à proficuidade do aparato conceitual e da perspectiva dahistória conectada e apontam para o “triplo uso” do conflito na Ilha.
Main Text
Introdução
Este texto surgiu da leitura de trabalhos recentes que propõem a caracterização e aproblematização da chamada história global como perspectiva de análise e ferramentaheurística (DOOKI; MINARD, 2007, p. 07-21; DRAYTON; MOTADEL, 2018, p. 01-21;SUBRAHMANYAN, 2015, p. 425-445). Esta temática, além de despertar o interesse nahistoriografia brasileira, como mostram os dossiês propostos pela Revista deHistória e pela Revista Esboços, ambos em 2019,dialoga igualmente com dossiês recentes, como o da Past &Present (volume 238, novembro/2018). Como há quantidade significativade reflexões que procuram definir e conceituar essas abordagens, este artigo não temcomo objetivo propor um balanço historiográfico e/ou uma história dos conceitos. Oprincipal objetivo nesta proposta é realizar um estudo de caso, aplicando linhasgerais das proposições metodológicas de análise conectada. O caso específico estárelacionado aos conflitos entre palermitanos, angevinos e aragoneses no território esobre o território da Sicília entre os séculos XIII e XIV. Procuramos responder àpergunta “A disputa de territórios pode ser analisada pelo viés da históriaglobal/conectada?”. A hipótese poderia estar relacionada apenas à localizaçãogeográfica privilegiada da Ilha no Mediterrâneo. Porém, conforme podemos observar, ouso do título de “reis da Sicília” pelos angevinos, após a perda efetiva de podersobre o território - iniciada com as Vésperas Sicilianas, em 1282 - indica quepossivelmente não era apenas o domínio político-militar sobre o território queestava em disputa. Por este motivo que falamos em conflitos no território e sobre oterritório. Afinal, as Vésperas Sicilianas foram, de fato, um conflito na Ilha, emespecial, em Palermo. Mas as narrativas, principalmente expressas em crônicas -abundantes no período - também revelam conflitos sobre a Ilha ou, digamos, umahistória disputada.
As reflexões de David Abulafia (1977, 2008) sobre a história do Mediterrâneo sãoimportantes para o desenvolvimento das análises propostas. O autor, incialmente,alerta que é preciso pensar no Mediterrâneo tanto como um “espaço” quanto como um“conceito” e que esse espaço-conceito permite pensar as mudanças nas formas decomunicação pelo mar (ABULAFIA, 2012, p. 01-21). Abulafia propõe quatro fases parase pensar aquela história. As três primeiras abarcam desde a relação comConstantinopla à ascensão do Islã. A terceira fase, no entanto, marca umatransformação a partir da competição entre cristãos e encerra-se na primeira metadedo século XIV. Para além desta divisão, o autor defende que o conceito deMediterrâneo pode ser usado no plural de modo a pensar os “meios mares”. A ideia demiddle seas , no texto em questão, permite identificarterritórios que se colocavam frente a frente em rotas relativamente curtas(Exemplos: Sicília-Catalunha/Sicília-Nápoles). A partir desse aporte, então, épossível pensar em diferentes formas de contato e conexão entre esses povos cristãose entre esses territórios dominados por eles de modo a construir identidadesdistintas durante conflitos e suas negociações, ou, ainda, pensar como esses meiosmares enfrentaram os mesmos conflitos simultaneamente e de formas diferentes.
Acreditamos que analisar esses elementos a partir de expressões narrativas, como ascrônicas, é de fundamental importância e campo profícuo que certamente é enriquecidopelas proposições da chamada história global/história conectada. Este artigo estádividido em duas partes: na primeira descrevemos de modo mais detalhado o conteúdo ea forma da Crônica. Na segunda identificamos e analisamos,principalmente a partir dos documentos transcritos na Crônica, os“meios mares” e como eles são postos em perspectiva.
A Crônica da Sicília
Para desenvolver essas análises selecionamos a Cronicon siculum(Crônica da Sicília) a partir do manuscrito Ms. 488, daBiblioteca da Catalunha, em Barcelona. Os principais estudos sobre a obra e sobre omanuscrito especificamente podem ser classificados em catalães e italianos.Josep-David Garrido i Valls defendeu tese em 1997 na qual propôs uma edição ecrítica do Ms. 488. Na Itália os estudos sobre esta crônica têm sido conduzidos,ultimamente, por Pietro Colletta que, dentre outras publicações, realizou uma ediçãocrítica do texto, não apenas do manuscrito catalão (COLLETTA, 2011). Os autorescoincidem na classificação do texto como uma das quatro grandes crônicas sicilianasdo século XIV. Colletta afirma, porém, que foi a que teve menor fortuna desde asprimeiras edições do texto no século XVIII e, também, em estudos realizados noséculo XIX (COLLETTA, 2005, p. 567). Sobre o Ms.488 (que o autor classifica como Bna tradição manuscrita consultada para a edição que publicou em 2013), Collettaafirmou que, além de divergir em relação à numeração de capítulos, é o únicomanuscrito em latim que conserva a última parte da crônica. Garrido i Valls tambémconsidera o Ms.488 como o “mais completo”. Pietro Colletta afirma que essemanuscrito documenta de forma inequívoca como a transmissão de um texto, no medievo,implicava também em sua reelaboração, ao menos parcialmente.
A escolha desta crônica se deu, portanto, não apenas pela fortuna do texto, mastambém pelo fato de que o autor, desconhecido e caracterizado por Colletta (2011, p.29-41) como “anônimo palermitano” - Garrido i Valls não descarta, inclusive, apossibilidade de múltipla autoria (GARRIDO i VALLS,2005vol.2, p.1975) - inseriu transcrições de sessenta e um documentos doperíodo iniciando essas inserções, principalmente, para o período das VésperasSicilianas à primeira metade do século XIV. Garrido i Valls caracteriza o texto comouma “fonte diplomática de primeira mão, porque ilustra a narração com documentos daschancelarias papal, imperial, siciliana e napolitana”.
Pietro Colletta e Josep-David Garrido i Valls afirmam que a Crônicafoi redigida em diferentes momentos. O primeiro estágio de redação ocorreu em 1339com 105 capítulos; o segundo em 1343; o terceiro, compreendendo acontecimentos de1345 e a peste de 1348 e compreende a redação até o capítulo 125. Cada uma dessaspartes pode ter sido elaborada a partir da atividade de observação do cronista.Porém, conforme dito anteriormente, para o texto em latim, apenas o Ms.488 apresentaos capítulos finais da obra (COLLETTA, 2011, p. 57-76). Os autores dividem odocumento em quatro seções:
- Vésperas Sicilianas e Pedro III (Cap.38-46), período sobre o qual daremosespecial atenção.
- Giácomo II (Cap.47-52)
- Frederico III (Cap.52-101)
- Pedro II (Cap.102-125): nesta parte, por exemplo, encontram-se oscapítulos sobre a morte do rei Roberto de Nápoles, em 1343 (cap.116), ostratados de paz entre Luís da Sicília e Joana (sucessora do trononapolitano), em 1347 (cap.125) e sobre a mortandade causada pela pesteem 1348 (cap.123). (COLLETTA, 2011, p. 131-133)
A partir do que foi apresentado até o momento, é possível afirmar que os autoresestabelecem um marcador na redação da Crônica, a saber, ainserção/transcrição de documentos de chancelaria a partir da terceira parte daobra. Para melhor compreendermos o que estamos chamando aqui de “conteúdo” e “forma”desse documento, selecionamos passagens que remetem à primeira e à segunda parte -quando não há o registro de documentos oficiais - e à terceira e quarta partes, comos documentos oficiais inseridos na narrativa pelo anônimo palermitano.
A partir desta citação podemos observar alguns elementos, como: um proêmio que servecomo introdução sem necessariamente oferecer informações sobre a concepção da obraou o universo cultural do autor (GUIMARAES, 2015, p. 77). A narrativa informa sobreum acontecimento fundador a partir da atribuição fictícia do rapto de Helena emterras sicilianas, conforme apontou Pietro Colletta (2011, p. 137). Trata-se de umrecurso de associação da origem com um mito de autoctonia e que procura associar ahistória do lugar à de Tróia (GEARY, 2013; 2008).
O que se percebe, nos capítulos que compõem as duas primeiras partes, também é aconstrução da narrativa que revela o procesuum (êxito, sucesso)(GAFFIOT, 2016, 1067-1608) da Ilha relacionado às sucessivas “aquisições”, como ados gregos (cap.2) e dos “sarracenos” (cap.5) e dos normandos (cap.6) até culminarno domínio aragonês (4ª parte). Sobre as três primeiras “aquisições” a narrativa sedá da seguinte forma: os gregos chegaram com seus exércitos e ocuparam a ilha emnome do imperador Arcádio. Impuseram ao território um nome grego,“Sicalea, que em latim quer dizer figueira e oliveira, e porisso que atualmente é chamada Sicília”. A conquista muçulmana, narrada no capítulo5, teria sido facilitada por um conflito na Ilha contra o imperador bizantino(cap.3-4). Interessante observar que é nesta passagem que o anônimo palermitanorealizou a primeira inserção cronológica no texto: “O tal convite a esses muçulmanosna Ilha ocorreu no ano da Encarnação do Senhor octogésimo vigésimo sexto, mês dejulho, que corresponde ao ano cento e noventa e oito do advento de Mohammed”.
A conquista normanda, que marca a passagem da primeira para a segunda parte, segundotanto Garrido i Valls quanto Colletta, também é apresentada com um marcadorcronológico (Domini .Mo LVIII.o e Domini .MoLX.o) e por marcadores jurisdicionais/políticos/administrativos, asaber, o ducado da Apúlia (Puglia) e o principado de Cápua. Porém, segundo Colletta,o que é mais significativo nesta parte é a retomada cristã do território e,principalmente, a constituição da Sicília como reino. Também foi, a partir dagenealogia normanda - da última herdeira, Constança, filha de Manfredo - que oanônimo palermitano construiu/usou a legitimidade aragonesa na reivindicação doterritório. Este tema retorna no restante da Crônica, quando oanônimo define Carlos de Anjou como alheio à linhagem (“regum penitusaliens”), por exemplo, e, também, trata do domínio angevino como uma“aquisição” dos territórios (COLLETTA, 2011, p. 149). Esse elemento da aquisição, decerta forma, equipara, por exemplo, os angevinos aos muçulmanos, aos bizantinos eaos normandos.
A terceira parte da Crônica (cap.21-37), segundo Colletta, é repletade referências cronológico-espaciais, porém, além de apresentar erros e imprecisões,também é caracterizada por poucos dados referentes ao período de domínio deFrederico II. Segundo o autor, o que pode explicar a ausência de documentos ereferências mais precisas é o fato de que tanto Frederico quanto seu sucessor teremvivido mais na parte continental do reino (Puglia) do que na Ilha da Sicília. Essefator, segundo Colletta (2011), não é uma exclusividade da Crônica daSicília. Crônicas contemporâneas padecem da mesma carência. Aabundância documental propriamente dita, então, está relacionada, nesta parte, àdocumentação trocada entre Carlos de Anjou e Clemente IV. A quarta parte apresentaum elemento distinto das demais ao abordar os Aragoneses na Ilha. Esse fato étratado como “o advento de Pedro I na Sicília” e não como “aquisição”, como noscasos anteriores. É importante salientar esse elemento: conforme afirmamosanteriormente, quando, na Crônica, é abordado o período em quemuçulmanos, bizantinos, normandos e angevinos dominaram o território da Sicília, oanônimo palermitano usou o termo “aquisição”, como se referisse ao caráter externo ealheio à “linhagem” de direito sobre a Ilha. Pedro I não adquire, ele surge,aparece. Neste sentido, acreditamos ser possível inferir que há uma evidenteorientação pró-aragoneses.
Apresentamos a seguir um quadro geral da localização e breve descrição dos documentosque foram inseridos pelo anônimo palermitano na Crônica.
A partir desse rol de documentos e utilizando a noção de middle seasapontada no início deste texto, é possível identificar múltiplas conexões:
A tabela e o infográfico revelam a inserção dos documentos naCrônica a partir dos anos finais do domínio de Frederico IIsobre o Sul da Península Itálica (incluindo a Ilha da Sicília). Revelam também queessa inserção se intensifica a partir da ascensão de Carlos I de Anjou (1266),principalmente no contexto das Vésperas Sicilianas (1282) (DUNBABIN1998, 2011;BOYER; MAILLOUX e VERDON, 2016). De 1282 a 1347 ao menos três middleseas podem ser analisados frente aos mesmos acontecimentos:Palermitanos - Angevinos (estes que, após 1282, não retomaram o domínio sobre a Ilhae governaram a partir de Nápoles); Palermitanos - Aragoneses (que vão usar a forçamilitar, a reivindicação de legitimidade de hereditariedade sobre o trono e relaçõespolíticas com o papado, por exemplo, para manter o domínio sobre o território após aexpulsão dos Angevinos); Palermitanos - Messineses (que trocaram informações, emdiferentes momentos, sobre os constantes cercos Angevinos sobre a cidade de Messina,conforme apontam os documentos 7, 31, 57 e 58) (CORRAO, 2001, p.95-168; PISPISA,1988; TONNERRE; VERRY, 2003).
Os dados iniciais obtidos a partir dessa primeira análise podem ser explorados à luzdo que realizaram Hilde De Weerdt, Catherine Holmes e John Watts sobre “mediação” e“comunicação” política entre os séculos XI e XV. As autoras consideraram trêsdiferentes tempos-espaços: a China entre os séculos XI e XIII; Bizâncio, para omesmo período; e a França no século XV. Esse recorte, geográfica e cronologicamentemais amplo que o adotado neste artigo, contempla o que foi classificado no textocomo três diferentes níveis de política (Império - China; Reinos e estados queclamavam por homogeneidade - caso da França; e “galactic polities”- para se referir a Bizâncio). Os conceitos que instrumentalizaram as análises sãoos principais pontos de contribuição para o que pretendemos fazer:“mediation”/“mediators” e “politicalcommunication” (DE WEERDT; HOLMES e WATTS, 2018, p.261-296).
Segundo as autoras, mediação pode ser entendida de duas formas: “poderes que, emalguma medida, estão no meio” e que, por isso, podem conectar centros e localidades;e, como “mediadores”, as pessoas que vão negociar as tensões entre o poder formal ouinstitucional (estado e leis, por exemplo) e o poder social ou informal (redes,interesses privados, opinião pública). Para o primeiro entendimento, que relaciona aconexão entre centro-localidade, também consideraram que o centro é uma localidade.Neste sentido, a mediação conecta localidades umas com as outras. Isso tambémimplica em considerar que, nesta acepção geográfica, o meio é um ponto relativo eque pode ser deslocado dependendo da análise proposta. Para o segundo entendimento,consideraram que as “atividades, identidades e posição social dos mediadores variamconsideravelmente” (DE WEERDT; HOLMES e WATTS, 2018, p.262). Esses entendimentosculminam também em relações com múltiplas direções e, por isso, essas noçõesaproximam-se do que definiram como “comunicação política”: “a produção e troca depalavras, imagens e ideias pertinentes à política” (DE WEERDT; HOLMES e WATTS, 2018,p.263).
A partir dessas reflexões podemos constatar, pelo mapeamento da documentação, queestamos diante dos dois casos para mediação e que os poderes políticos relativamentemais fortes (Aragão - por reivindicar a legitimidade no território pela genealogiaque remete a Manfredo) e Anjou/Nápoles - por sua ascendência com o reino de França esuas relações de proximidade com o papado, como remetem os documentos 3, 4 e 6citados no interior da Crônica), passam a ser localidades com aqual Palermo se relaciona. Importante lembrar também que, inclusive geograficamente,a cidade ocupa o lugar central tanto das disputas quanto da produção da comunicaçãopolítica. Por isso afirmamos anteriormente sobre o caráter relativo da mediação. Nocaso observado, Palermo é esse mediador geográfico. Os mediadores, por causa dasmúltiplas direções das relações políticas, também são múltiplos(universitates/universitas , condes, autoridades públicaslocais, reis, príncipes, papas). Além disso, o anônimo palermitano pode serconsiderado um mediador na medida em que seleciona, encadeia e produz narrativa naCrônica da Sicília. Essas ações produzem “imagens e ideiaspertinentes à política”. Parte delas são analisadas a seguir.
Essa seleção e encadeamento, no entanto, não é um movimento extraordinário/inédito doautor desconhecido da crônica. Benoît Grévin, por exemplo, ao analisar a “retóricado poder” a partir das cartas de Pedro de la Vinha (1190-1249), além de empregar aexpressão “comunicação política”, dentre outros elementos, considerou os usospolíticos da e na inserção de fórmulas de redação de documentos de chancelaria ecartas oficiais em crônicas. Segundo o autor, Salimbene de Parma e Mateus Parisempregaram em suas crônicas, no século XIII, elementos da linguagem política quecirculavam através das cartas de Pedro de la Vinha. Esses elementos compreendemcaracterísticas como discurso antipapal e profecias (GRÉVIN, 2008, p.448-508). Alémdisso, o historiador francês considerou que a Nápoles Angevina e a Sicília Aragonesasão “herdeiras diretas” da comunicação política empregada na corte de Frederico II(GRÉVIN, 2008, p.740-750). Ou seja, a concordar com Benoît Grévin, a forma de seescrever também era um tipo de sistema de comunicação que circulava entre aslocalidades, como na França e na Península Itálica, o que inclui os espaçosconcernentes à análise proposta (PALMIERI, 2006; ZABBIA, 1997; DE CAPRIO, 2017,p.227-268; e DE CAPRIO, 2012; DELLE DONNE, 2011).
Middle seas e comunicação política na Crônica daSicília
A carta de Carlos I de Anjou a Pedro de Aragão é datada de 1282, no contexto daderrota angevina nas Vésperas Sicilianas. O angevino intitula-se como rei deJerusalém e da Sicília, além de mencionar o ducado da Apúlia (Puglia) e o principadode Cápua e seus títulos honoríficos franceses. O aragonês, neste documento, é apenasfilho do ilustríssimo rei de Aragão. O trecho transcrito revela também que oangevino usa como argumento para se legitimar como rei da Sicília o fato de teragido sob o comando e o ensino da Igreja e fala também do derramamento de sangue eda angústia que a atividade beligerante gerou. Por sentir-se governante legítimo,Carlos de Anjou determina, ao final da carta - não citado aqui, que Pedro e suagente saia do território.
A resposta foi dada no mesmo tom:
A partir deste excerto é possível perceber a inversão da anulação dos títulos: Pedroanuncia-se como Rei de Aragão e da Sicília enquanto Carlos é apenas conde daProvença e de Forcauquier. O aragonês desconsidera também a Apúlia e Cápua,territórios continentais do reino da Sicília. Assim como Carlos carregou a tinta naefusão de sangue e na angustia da guerra, o aragonês argumentou a partir do quechamou de arrogância as ameaças contidas na epístola inicial. Finaliza o documentoreafirmando seu direito hereditário (a Crônica repete esseargumento ao remeter a legitimidade aragonesa a Manfredo) e afirmando que Carlossabe que “non poteris contra nos tuo exercitu prosperare” (“teuexército não pode prosperar contra nosso exército”) e que, por isso, ele deveriaevitar o derramamento de sangue inocente.
Os documentos, embora angevino e aragonês, tiveram como palco-localidade, Palermo,então território em disputa. Isso explica, no infográfico, o porquê da comunicaçãopolítica entre Aragoneses e Angevinos perpassar a caixa de texto dos Palermitanos. Aideia é demonstrar como essa comunicação se deu sobre o território e através doterritório. Os palermitanos, pessoas diretamente afetadas pelos conflitos eprotagonistas na eclosão da revolta, como é possível identificar em outra crônicanão analisada aqui (Lu Rebellamentu di Sicilia contra Re Carlo,texto também anônimo, igualmente atribuído à região de Palermo e que se refereapenas ao contexto de 1282 e a eclosão da revolta “contra os franceses”), tomarampartido da coroa de Aragão (BRESC, SCIASCIA, 1993, p. 120-135).
Esta frase, se pensada na relação entre localidades apontada a partir do conceito demediação, talvez tenha mais lógica, no texto da Crônica da Sicília,se escrita de modo inverso: os aragoneses tomaram partido dos palermitanos e, talvezpor isso, o uso de termos como “advento”, “entrada” e “trânsito” de Pedro pelasterras do reino, como também o “advento da Rainha Constança na Ilha da Sicília” ,tenha sido empregado pelo anônimo palermitano em detrimento de “aquisição” - como ofez sobre gregos, sarracenos, normandos e angevinos. Explicitamente, queremosafirmar que, por considerarmos a proposta metodológica da história conectada, oconceito de mediação (ao menos na acepção geográfica), permite alocarmos Palermocomo meio que protagoniza a disputa. Permite afirmar que os habitantes da cidadesiciliana foram agentes políticos e não apenas habitantes de um território emdisputa. O argumento do alinhamento aragoneses-palermitanos, por exemplo, é quesustenta a defesa de Pietro Colletta sobre a Crônica da Sicília serum texto de propaganda política (COLLETTA, 2011, p.16).
Os documentos contidos na Crônica da Sicília e que foram analisadosneste artigo revelam mais a disputa entre duas casas em conflito. Seriam, paramanter a coerência com os conceitos com os quais procuramos trabalhar, doismiddle seas mediados pela localização geográfica, relativa edisputada de e por Palermo. Porém, a partir da tabela apresentada anteriormente, épossível perceber que a comunicação política não se deu apenas pela situação de“mediação” - aqui no sentido de poder que está no meio - ocupada pelos palermitanos.Se considerarmos, por exemplo, a troca de informações com os messineses podemosperceber que o conflito detonado a partir das Vésperas não reduziu as cidades àcondição de cenário no qual outros personagens disputavam o protagonismo.
Uma última observação deve ser feita também em relação ao protagonismo que o anônimopalermitano assume na tessitura da Crônica. Afinal, a inserção de“documentos oficiais” (ou de chancelaria) no texto deu-se pelo acesso, de algumaforma, a esses materiais. Isso pode ser explicado pela sua proximidade do autordesconhecido com o ambiente no qual esses documentos eram produzidos e circulavam.Outra interpretação também é possível, a saber, de uma possível ampla circulaçãodestes - o que é provável, em se tratando da “retórica do poder” ou da “comunicaçãopolítica” que tem, para o Sul da Itália, a referência de Pedro de la Vinha. Nestecaso, o cronista também é um mediador na medida em que o encadeamento proposto notexto concilia as informações oficiais com a história contada, atribui-lhes sentido(Tróia, as aquisições e os adventos) de modo a encerrar o texto com o acordo “final”(o mais próximo do tempo presente do autor) de paz, que selou oprocessuum da Sicília sob comando dos aragoneses, mas com oprotagonismo dos palermitanos - agentes igualmente mediadores, principalmente apartir dos conflitos deflagrados na década de 1282 (MARINO, 2013, p.11-34).
Considerações finais
A Crônica da Sicília, pela peculiaridade da inserção/transcrição dosdocumentos como capítulos do texto, é um documento que extrapola a dimensãonarrativa. Neste artigo, procuramos abordar a dimensão política do texto cronístico.Esta abordagem está longe de ser inovadora. Porém, o que se oferece de forma,considerando os trabalhos de Pietro Colletta e Josep-David Garrido i Valls, é oaparato conceitual que não foi utilizado nas pesquisas desses autores. A tese deColletta sobre a Crônica como propaganda certamente auxiliou nasreflexões e no entendimento do texto também a partir das noções de mediação ecomunicação política propostas por Hilde de Weert, Catherine Holmes e John Watts.Essas duas noções complementaram e potencializaram, na pesquisa ora apresentada, anoção de middle seas, atribuída a David Abulafia.
Acreditamos que com esse aparato, a localização do “centro” nas disputas torna-semenos importante que pensar as localidades como territórios que criavam, disputavame conciliavam de diferentes formas e significados os mesmos acontecimentos, porexemplo. O exercício de história conectada proposto neste artigo revela que ahistória do Mediterrâneo (espaço e conceito), em sua complexidade, tem potencialpara outras análises. Inclusive a partir do mesmo documento. Outros middleseas, por exemplo, não foram abordados neste texto, como a relação dospalermitanos com o papado (ora em Roma ora em Avignon).
As Vésperas Sicilianas serviram, pelo menos, a três usos: os palermitanos usaram arevolta e o descontentamento contra os “franceses” como elemento de protagonismopolítico e social, usando diferentes mediadores (incluindouniversitates e o próprio cronista) para a proposição de umtipo de posicionamento político não apenas frente aos que haviam “adquirido” a Ilha- os quais expulsaram no conflito - ou aos que “apareceram” (aragoneses), mas tambémcom outros mediadores (seja instituições, como o papado, ou congêneres, como osmessineses). Os angevinos valeram-se de um mediador que não deve ser desprezado:afinal, ao ordenar a expulsão de Pedro e sua gente da Ilha, em 1282, Carlos I deAnjou o fez a partir do “ensinamento” e sob proteção da Igreja - referindo-se àvitória contra os Hohenstaufen, que lhe garantiu o domínio sobre o território anosantes. Porém, o mediador angevino foi questionado em sua autoridade de diferentesformas e em diferentes momentos no período que engloba a Crônica daSicília, como revela a acusação de heresia contra João XXII, e acondenação de Roberto de Anjou pelo papa “germânico”, ou antipapa. Além disso, asimbologia do conflito pode ser percebida nos documentos produzidos no contexto daderrota angevina: o jogo de palavras e o não reconhecimento mútuo de títuloshonoríficos e de propriedades, observado entre as cartas de Carlos de Anjou e Pedrode Aragão, por exemplo. Os aragoneses, que são os governantes sobre os quais há maisespaço na Crônica, de algum modo, acessaram uma chave considerada“legítima” ou “legitimada” pelos palermitanos: o direito hereditário sobre aquelesdomínios. Valeram-se desse elemento para garantir a dinastia e sucessivas vitóriascontra os “alheios ao reino” e àquela linhagem, para usar os termos do cronistasobre o rei Carlos de Anjou.
Resumo
Main Text
Introdução
A Crônica da Sicília
Middle seas e comunicação política na Crônica daSicília
Considerações finais