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Wed, 16 Nov 2022 in Revista de História (São Paulo)
UM JACOBEU EM PERNAMBUCO? O CASO DO PE. BERNARDO DA SILVA DO AMARAL (C.1772-C.1776)
Resumo
O presente artigo propõe analisar a trajetória do Pe. Bernardo da Silva do Amaral, confessor e diretor espiritual na capitania de Pernambuco, durante a segunda metade do século XVIII. Pe. Bernardo costumava afirmar às suas dirigidas que “dar ósculos abraços, e ter tratos desonestos, não era pecado”, antes “servia para maior união dos espíritos, e serviço de Deus”. Preso pelo vigário geral do Bispado de Pernambuco, teve sua acusação “fundada na mais refinada Jacobeia”. Encaminhado à Inquisição, em Lisboa, foi condenado por cometer crimes de solicitação e molinosismo. Diante disso, examinaremos o motivo da divergência entre a acusação realizada pelo juízo eclesiástico de Pernambuco e a condenação aplicada pelo Tribunal do Santo Ofício de Lisboa; e buscaremos demonstrar que a guerra à Jacobeia, promovida pelo pombalismo, pode ter inspirado o vigário geral de Pernambuco a classificar os desvios do Pe. Bernardo como “jacobices”.
Main Text
Ao longo do século XVIII, a ideia de Jacobeia sofreu uma expressiva variação de significados. Inúmeros foram os esforços – especialmente da parte do Santo Ofício e da Real Mesa Censória – para sacramentar a narrativa oficial sobre o movimento e seus participantes. O ponto máximo desses esforços aconteceu durante reinado de D. José I (1750-1777), especialmente em fins da década de 1760, quando foram publicados importantes textos antijacobeus, responsáveis por desencadear uma verdadeira guerra à Jacobeia no Portugal peninsular.
Apesar de se tratar de um tema amplamente examinado pela historiografia especializada, pouco foi dito a respeito da circulação e da recepção dessa propaganda contrária à Jacobeia nos territórios da América Portuguesa. Com a intenção de pensar particularmente nesse problema, este estudo utilizará o caso do padre Bernardo da Silva do Amaral, acusado de praticar “jacobices” no bispado de Pernambuco, como ponto de partida.
O argumento que sustentarei é o de que a tipificação dos delitos cometidos pelo Pe. Bernardo como derivados da mais refinada Jacobeia, está diretamente ligada à repercussão provocada pela publicação da Coleção das Leis Promulgadas, Sentenças Proferidas nos casos da infame pastoral do Bispo de Coimbra D. Miguel da Anunciação da Seita dos Jacobeos, Sigilistas.
“Para maior união dos espíritos e serviço de Deus”
Em 10 de março de 1773, nos cárceres da Inquisição de Lisboa, foi entregue o padre Bernardo da Silva do Amaral. Conduzido ao Santo Ofício pelas mãos do capitão do navio que o trouxe da capitania de Pernambuco, Pe. Bernardo carregava consigo duras acusações, entre elas a divulgação de proposições heréticas, “fundadas na mais refinada Jacobeia.”
Pe. Bernardo da Silva do Amaral era natural da cidade de Lisboa. Nasceu, provavelmente, no ano de 1730, sendo batizado na Igreja de Santa Madalena. Seus pais foram Antônio da Silva do Amaral e Catarina Nunes, naturais, respectivamente, de Alenquer e Cascais. Com relação aos avós, recordava apenas do nome do avô materno, Antônio Nunes, morador de Cascais.
Em Lisboa, aprendeu a ler e a escrever; estudou gramática latina com o Pe. Antônio Garcia Barbuda e filosofia no Colégio Jesuítico de Santo Antão, com o Pe. Diogo da Câmara. Chegou a Pernambuco, ao que tudo indica, por volta de 1748, com dezoito anos. Logo após se instalar na antiga capitania duartina, tomou a roupeta da Congregação do Oratório de São Felipe Neri de Pernambuco. No convento da Madre de Deus, localizado na freguesia de São Pedro Gonçalves do Corpo Santo, deu prosseguimento a sua formação eclesiástica, estudando filosofia e teologia, sob a tutela do mestre Pe. Antônio Cordeiro.
Nesse mesmo período, foi crismado pelo bispo Fr. Luiz de Santa Tereza, de quem também obteve as ordens menores. Em sequência, recebeu as ordens maiores – subdiácono, diácono e presbítero –, conferidas pelo bispo D. Francisco Xavier Aranha. Pouco tempo depois, com licença do ordinário, foi-lhe permitido confessar tanto homens como mulheres. Foi na condição de confessor e diretor espiritual de um conjunto expressivo de mulheres, residentes na cidade de Olinda e na vila do Recife, que a trajetória do Pe. Bernardo da Silva do Amaral ganhou visibilidade.
Conforme Antônio Álvares Guerra, comissário do Santo Ofício, durante o tempo em que esteve entre os congregados da Madre de Deus – em torno de 10 anos –, alguns excessos comportamentais foram percebidos, notadamente a inclinação para confessar exclusivamente mulheres. Proibido de confessar mulheres, por determinação dos seus superiores, Pe. Bernardo decidiu abandonar a roupeta escura dos oratorianos e viver como clérigo secular, o que ocorreu por volta do ano de 1766.3
Como clérigo secular, Pe. Bernardo da Silva tornou-se confessor e diretor espiritual de um número ainda maior de mulheres, algumas delas filhas e esposas de importantes nomes da nobreza da terra. Foi, contudo, no exercício da direção espiritual que o Pe. Bernardo chamou atenção, num primeiro momento, dos poderes diocesanos e, posteriormente, do Santo Ofício, o que acabou por resultar na sua prisão e condenação.
Padre Bernardo chegou a ter mais de uma dúzia de dirigidas espirituais, mantendo aproximação íntima com todas elas. Além das práticas habituais que envolviam a direção espiritual, como a condução do dirigido (a) pelos caminhos espirituais e devocionais, através, especialmente, dos exercícios espirituais e da oração mental, Bernardo da Silva costumava afirmar às suas dirigidas que “dar ósculos abraços, e ter tratos desonestos, não era pecado”, antes, pois, “servia para maior união dos espíritos, e serviço de Deus”.4
Quase todas as dirigidas espirituais que testemunharam no processo inquisitorial aberto contra o Pe. Bernardo confirmaram, além dos ditos “tratos desonestos”, terem experimentado êxtases e revelações. Assim aconteceu com dona Madalena Tomásia de Jesus, esposa do desembargador João Bernardo Gonzaga, moradora da vila do Recife, que confessou que ficava em êxtase ao realizar a oração mental. Também afirmou que cantava alguns versos ao divino, o que lhe trazia o demônio à imaginação, além de algumas imagens, como a de nosso senhor crucificado e a de nossa senhora. O mesmo aconteceu com a filha de dona Madalena Tomásia de Jesus, dona Tomásia de Jesus Maria, a quem o Pe. Bernardo também era confessor e diretor espiritual, que assegurou ter tido muitos êxtases e revelações.
Clara Maria de Jesus, ama do Pe. Bernardo, asseverou ter presenciado inúmeras situações em que o Pe. Bernardo beijava, abraçava e se deitava com as confessadas na cama. Também declarou que ele desposou algumas de suas confessadas e dirigidas. Conforme Clara Maria, em um dos casos, o Pe. Bernardo desposou uma das confessadas, estando ela em êxtase. Nessa mesma direção, encontra-se o depoimento da moça parda, Maria Joaquina da Visitação, que além de confessar que praticou tratos desonestos com o padre inúmeras vezes, certificou que “quando ela denunciante estava em oração tinha alguns êxtases, e umas representações tão vivas na ideia, e fantasia, de várias causas, que lhe parecia que estava vendo com os olhos”.
Pe. Bernardo costumava usar a “união dos espíritos” como justificativa para atestar a legalidade dos atos cometidos. Assim ocorreu com Josefa Maria dos Prazeres, que declarou ao comissário do Santo Ofício, o Pe. Antônio Alves Guerra, que o Pe. Bernardo lhe dizia que ter com ele atos carnais, tendo o pensamento em Deus e reprimindo toda a alteração da carne, não era pecado, mas, sim, a união dos espíritos. Dona Luiza Barbosa da Conceição, moça solteira, filha do capitão Antônio de Souza Marinho, moradora na vila do Recife, afirmou que o Pe. Bernardo dizia que ter oração de união com ele “era coisa boa”, e com isso havia de crescer na perfeição.
Em certa ocasião, quando a já citada dona Madalena Tomásia de Jesus encontrava-se enferma, ao que parece em um surto delirante, teve inúmeras revelações, dentre as quais a que via o menino Jesus entregando-lhe um anel e tomando-a como esposa. Prontamente o confessor e diretor espiritual de dona Madalena, o Pe. Bernardo, foi chamado para dar seu parecer a respeito da situação. Ele exigiu que as pessoas se retirassem da casa, para que a enferma continuasse com as suas cantigas e revelações. Segundo a parda Tereza, que presenciou a cena, o padre teria dormido na mesma cama com dona Madalena Tomásia e com sua filha, dona Tomásia de Jesus Maria: “todos três debaixo de uma mesma cobertura”.5
Pe. Bernardo se comunicava com as suas dirigidas através de cartas de orientação ou espirituais, o que não era uma singularidade do caso em questão, antes, e de maneira geral, as cartas de orientação ou espirituais faziam parte do amplo universo dos textos edificantes que, ao longo da época moderna, eram destinados à circulação de exemplos de intervenção apostólica e como guias de devoção cotidiana.6 Os escritos enviados pelo Pe. Bernardo às suas dirigidas tinham dimensões diversas, sendo em sua grande maioria bilhetes pequenos, o que, por suposição, facilitava sua circulação e a preservação do sigilo do conteúdo.
No auto de desobediência lavrado a mando do vigário geral do bispado de Pernambuco, Manuel Garcia Velho do Amaral, encontra-se que o Pe. Bernardo foi preso com vários escritos de sua própria letra e sinal, endereçados às suas confessadas e dirigidas. Ao todo, foram encontrados com o Pe. Bernardo por volta de quarenta e dois escritos. Diante do significativo número de escritos de orientação – supõe-se, obviamente, que esse quantitativo tenha sido bem maior –, acredita-se que a comunicação escrita tenha ocupado lugar de relevância na relação mantida entre o Pe. Bernardo e suas dirigidas, permitindo, como foi corrente ao longo da época moderna, que o confessor e diretor espiritual exercesse completo domínio emocional e espiritual das orientandas, ainda que estivesse a distância. (BERNARDES, 1785, p. 363-364; VILACASTIN, 1761, p. 43-44).
Nos tais escritos, Pe. Bernardo faz uma verdadeira exortação à virtude, instruindo suas orientandas nos caminhos possíveis para se alcançar a perfeição dos costumes. Dentre os meios preferíveis, aponta a oração mental como o principal: “não há doutor, não há mestre de espírito, não há santo padre, que assim o não diga”. Em carta, sem data e com remetente oculto, o confessor ressalta a necessidade de realizar a oração mental, segundo o modelo estabelecido por Inácio de Loyola em seus Exercícios espirituais. Para mais, destaca – também baseado nos apontamentos inacianos – a importância do exercício das três potências da alma: entendimento, memória e vontade.7 O exercício das três potências consistia em uma prática de purificação da alma, onde o fiel, primeiramente, retratava-se por ter privilegiado os gostos temporais aos eternos, desculpando-se das escolhas erradas que fez; em seguida, pedia perdão pelos remorsos da memória, ou seja, pelas lembranças dos auxílios, benefícios de Deus e mais oportunidades que o penitente teve para poder salvar-se e, por fim, pedia misericórdia pelo remorso da vontade, em outros termos, pelo arrependimento inútil de haver pecado (BERNARDES, 1785, p. 334).
Além das cartas de orientação, escritas em português com conteúdo equivalente ao apresentado acima, Pe. Bernardo produziu um conjunto de cartas e bilhetes, escritos a partir de um curioso sistema de cifras, composto por símbolos e números. Parte considerável dos bilhetes foram escritos, exclusivamente, em linguagem criptografada (símbolos e números), enquanto outros, em menor escala, combinaram os códigos cifrados ao português, sugerindo, portanto, que determinados trechos, talvez por se tratar de matéria de natureza herética, foram intencionalmente cifrados com o objetivo de manter o conteúdo da mensagem acessível unicamente pelo Pe. Bernardo e por suas dirigidas.
Ao longo da primeira modernidade, os textos cifrados foram amplamente usados na documentação diplomática, em função, especialmente, do estabelecimento com caráter permanente das embaixadas, do incremento das relações internacionais e da necessidade de assegurar as informações secretas. Contudo, os escritos cifrados não ficaram restritos ao universo da diplomacia. Conforme Juan Carlos Galende, não é estranho encontrar documentação criptografada de qualquer estamento social e sobre qualquer matéria que se pretenda preservar(DIAZ, 1994, p. 160).
Diferentemente da documentação diplomática, que não raro se amparava em dicionários ou tabelas de cifras, os textos de caráter personalista, como no caso dos bilhetes de orientação do Pe. Bernardo, sustentavam-se em um sistema de codificação que estava ao alcance apenas dos envolvidos, o que compromete quase inteiramente a sua decifração. Nenhuma das dirigidas espirituais do Pe. Bernardo afirmou conhecer os significados dos códigos, o que parece se tratar de um artificio puramente retórico. Interrogado pelo vigário geral da capitania de Pernambuco, o doutor Manoel Garcia Velho do Amaral, se reconhecia a autoria dos ditos escritos cifrados, Pe. Bernardo disse que assumia a autoria apenas de alguns. Alegou, ainda, que não recordava do conteúdo dos bilhetes, já que não lembrava do significado exato dos códigos, uma vez que não continham “letra fixa”. Perguntado se possuía a “grade deles”, respondeu que “tal grade não tinha”.8
“Culpa fundada na mais refinada Jacobeia”
Não demorou para que os atos do Pe. Bernardo chamassem atenção dos poderes diocesanos. Em 9 de agosto de 1771, por meio de portaria emitida pelo bispo de Pernambuco, D. Francisco Xavier Aranha, Pe. Bernardo ficava proibido de confessar e administrar o sacramento da penitência, tanto a mulheres quanto a homens. Também ficava determinado que o Pe. Bernardo deveria, no período de três dias, abandonar as praças do Recife e de Olinda, devendo permanecer a cinco léguas de distância. Foi-lhe permitido escolher uma freguesia – considerando o raio do desterro – para assistir e usar suas ordens. No entanto, ficava expressamente proibido de confessar em qualquer parte do bispado.
Apesar da portaria do prelado pernambucano, Pe. Bernardo permaneceu vivendo na Boa Vista, que fazia parte da Freguesia da Sé do Salvador da cidade de Olinda, confessando e administrando outros sacramentos. Segundo dona Francisca Xavier da Soledade, mulher branca, casada com Gonçalo de Souza, mesmo suspenso, Pe. Bernardo rezou missa na Igreja de Santa Cruz, na Boa Vista, além de ter ido, algumas vezes, à casa de D. Madalena, informação ratificada por outras testemunhas, como foi o caso de Josefa Maria do Rosário.9 Além do mais, praticamente todas as dirigidas espirituais que testemunharam afirmaram ter se encontrado com o Pe. Bernardo, numa altura em que as suspensões já haviam sido determinadas. Algumas, inclusive, revelaram ter mantido uma rotina de confissão.
Tendo em conta o desrespeito à letra prelatícia, nova portaria foi lançada em 16 de setembro de 1771. Dessa vez, com caráter mais rígido, exigia-se a prisão e a condução, pelo meirinho geral, do Pe. Bernardo para o aljube da cidade de Olinda. Pouco menos de um mês depois de ter expedido a nova portaria contra o Pe. Bernardo, D. Francisco Xavier Aranha faleceu, sendo substituído por D. Francisco de Assunção Brito, que foi transferido, antes mesmo de chegar a solo pernambucano, para o arcebispado de Goa. Um novo prelado foi nomeado apenas em 18 de abril de 1774, era D. Thomaz da Encarnação Costa e Lima, Cônego Regrante de Santo Agostinho (BARATA, 1922, p. 64). No interstício entre a morte de D. Francisco e a nomeação de D. Thomaz, o caso do Pe. Bernardo foi retomado com vigor, tendo como principal protagonista o vigário geral e juiz dos resíduos do bispado de Pernambuco, o Dr. Manuel Garcia Velho do Amaral.10
Aos 20 de maio de 1772, a última portaria do bispo D. Francisco Xavier Aranha foi executada por ordem do Dr. Manuel Garcia Velho do Amaral. Chama atenção a justificava dada pelo vigário geral para a abertura do processo de diligência no auditório eclesiástico, que deveria ser realizada pelo escrivão Manuel Barbosa Lima: “mandou-me que autuasse tudo para se inquirirem testemunhas citando o dito reverendo padre e fazer-se as mais diligências e perguntas necessárias para se vir no conhecimento da verdade e poder ser castigado conforme a sua culpa fundada na mais refinada Jacobeia”.11
É curioso que o vigário geral tenha decidido tipificar os delitos cometidos pelo Pe. Bernardo como derivados da mais refinada Jacobeia. A referência à Jacobeia, no auto de desobediência, não foi uma aleatoriedade, antes, e de maneira geral, durante as diligências realizadas pelo auditório eclesiástico de Pernambuco, conduzidas pelo próprio Dr. Manuel Garcia Velho do Amaral, optou-se por classificar as ações do Pe. Bernardo como “jacobeias ou “jacobices”.
A Jacobeia foi um “método de vida”, compartilhado especialmente por pequeno grupo envolvido com a direção espiritual do Fr. Francisco da Anunciação (1668-1720), frade eremita de Santo Agostinho, que costumava reunir seus dirigidos no Colégio de Nossa Senhora da Graça de Coimbra no início do século XVIII. Nesses encontros, partilhavam-se experiências íntimas de devoção, à luz de um método que consistia em: corresponder à exata observância das constituições religiosas, no que toca a preceitos e conselhos; realizar, com frequência, os exercícios espirituais e o exame da consciência; além de render total obediência a um diretor espiritual.12
A partir da década de 1720, muitos dos religiosos, dirigidos por Fr. Francisco da Anunciação, começaram a ocupar cargos de destaque na hierarquia eclesiástica peninsular e ultramarina, destacando-se um expressivo número de nomeações para as mitras.13 Os jacobeus, em função sobretudo de sua proximidade com importantes nomes do círculo áulico da corte joanina, especialmente Fr. Gaspar da Encarnação, formaram importante facção político-religiosa, o que acabou por produzir fissuras no seio da Igreja Portuguesa, que se intensificaram ao longo da última década do governo de D. João V.14
No transcurso da década de 1740, durante a querela do sigilo confessional que envolveu o Santo Ofício e parte dos bispos portugueses, alguns destes ligados à Jacobeia, os jacobeus foram acusados de sigilistas pela Inquisição portuguesa, ou seja, padres que, levados pelo fervor do fanatismo religioso, quebravam o sigilo da confissão, exigindo que os confessados delatassem seus cúmplices.15 Além da quebra do sigilo confessional, com alguma frequência se pretendeu demonstrar que os padres sigilistas costumavam atuar como diretores espirituais de mulheres beatas, o que por vezes acabava por recair em algum desvio de natureza sexual.
Nesse quadro em tela, a propaganda inquisitorial, por meio da publicação de número considerável de panfetos difamatórios, livros e papéis insultuosos, produziu extenso repertório para adjetivar os jacobeus, atribuindo-lhes características bastante particulares, como: beatice afetada, hipocrisia, falsa santidade, soberba, sentimento cismático etc. (MELO, 2020b). Embora a perseguição aos jacobeus tenha sofrido arrefecimento no começo da década de 1750, em função, sobretudo, da morte de boa parte dos envolvidos com a questão do sigilo confessional, regressará com intensidade nas décadas de sessenta e setenta, conduzida pela publicista pombalina (MARTINS, 2012, p. 258).
Foi na década de 1760, simultaneamente ao avanço do regalismo e na esteira da publicação da pastoral do bispo de Coimbra, D. Miguel da Anunciação, que os usos e significados da palavra Jacobeia adquiriram novos sentidos, tornando-se um dos grandes projetos retóricos da máquina propagandística montada pelo então Conde de Oeiras, cujo principal ator foi o procurador geral da coroa, José de Seabra da Silva.16 O repertório utilizado reordena o padrão narrativo até então criado. Buscou-se, portanto, introduzir novas ferramentas discursivas que sublinharam o caráter insurreto da Jacobeia, o que foi feito levando em consideração a imagem de beatismo e hipocrisia já sacramentada. Aos jacobeus, foi atribuída, ainda, a capacidade de produzir desarmonia, separação e desunião.
Essa foi a tópica predominante na mais importante fonte publicada no período sobre a questão, a “Coleção das Leis Promulgadas, Sentenças Proferidas nos casos da infame pastoral do Bispo de Coimbra D. Miguel da Anunciação da Seita dos Jacobeos, Sigilistas”, concluída em 1769 (COLEÇÃO, 1769). A coleção apresentada é composta por um conjunto expressivo de sentenças realizadas pela Real Mesa Censória, seguidas por um importante texto assinado por José Seabra da Silva, intitulado “Memorial sobre o cisma do Sigilismo que os denominados jacobeus e beatos levantaram neste Reino de Portugal”. Como se observa, o sigilismo é apresentado como um caso extremado de cisma, um claro plano de desacordo criado por uma perigosa seita dirigida no reino de Portugal pelos jacobeus e beatos. Foi através dessa associação que o sigilismo passou a ser retratado como uma característica da Jacobeia, a ponto de passarem a designar praticamente a mesma coisa.
Não é necessário aprofundar sobre as questões políticas e retóricas que envolveram a produção da Coleção das leis, tendo em vista que essas questões já foram abordadas em outro estudo (MELO, 2020b). Destaca-se apenas a capacidade de circulação do texto nos territórios ultramarinos, o que se considera fundamental para compreender a razão pela qual o vigário geral do bispado de Pernambuco, o Dr. Manuel Garcia Velho do Amaral, tipificou os atos do Pe. Bernardo como derivado de sua mais refinada Jacobeia.
Como já dito, não acreditamos que o vigário geral tenha usado a fórmula “refinada jacobeia” de forma aleatória. Longe disso, demonstrou que estava atento ao que vinha acontecendo na corte, sendo cirúrgico na sua escolha. Manuel Garcia Velho do Amaral era doutor em cânones pela Universidade de Coimbra. Durante o governo do bispo D. Francisco Xavier Aranha e, posteriormente, com o episcopado de D. Thomaz da Encarnação, ocupou as seguintes funções no bispado de Pernambuco: vigário geral de Olinda, juiz dos casamentos e resíduos, juiz das justificações de gênere, visitador, promotor, governador do bispado, meio cônego, cônego, tesoureiro-mor e vigário do Cabo (SANTOS, 2019, p. 145; PIO, 1994, p. 34). Simultaneamente ao processo aberto contra o Pe. Bernardo, o Dr. Manuel Garcia Velho do Amaral ainda foi nomeado comissário do Santo Ofício, em 18 de maio de 1773.17
Diante do exposto, não seria uma ilação infundada aceitar a hipótese de que o vigário geral da capitania de Pernambuco e comissário do Santo Ofício, Manuel Garcia Velho do Amaral, tenha consultado um exemplar da “Memorial sobre o cisma do sigilismo que os denominados Jacobeus, e Beatos levantaram neste reino de Portugal”, o que talvez tenha influenciado sua interpretação do caso do Pe. Bernardo da Silva.18
Ao longo do ano 1770, foram enviados exemplares dos textos produzidos pela Real Mesa Censória, ao que se pode supor, para todas as dioceses do reino, o que foi feito através da Secretaria da Marinha e Ultramar, cujo secretário era o próprio irmão de Sebastião José de Carvalho e Melo, Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Como Pe. Manuel governou o bispado de forma interina algumas vezes, é bem provável que tenha consultado uma cópia do texto ou até mesmo algum tipo de instrução para intervir em casos dessa natureza.
Em 12 de janeiro de 1770, o vigário capitular do bispado do Pará, Giraldo José de Abranches, remeteu ofício para o Secretário de Estado da Marinha e do Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, acusando a recepção de três exemplares do Memorial sobre o cisma do sigilismo, levantado pelos jacobeus e beatos, injuriando o santo sacramento da penitência; quatro exemplares da coleção das provas, citadas na 1ª e 2ª partes da Dedução Cronológica e Analítica e três exemplares do seu índice, a repartir com o procurador da coroa naquele Estado.19
Em Minas Gerais, D. José Luís de Menezes, governador da capitania, enviou carta a Mendonça Furtado em 29 de dezembro de 1769, confirmando o recebimento de exemplares do Memorial sobre o cisma do sigilismo que os chamados jacobeus e beatos levantaram neste reino.20 Na capitania de Goiás, o governador João Manuel de Melo também confirmou o recebimento do Memorial que os jacobeus e beatos levantaram em Portugal.21 Assim também aconteceu na capitania de Mato Grosso, como se pode ver no ofício do governador Luís Pinto de Souza Coutinho, remetido a Mendonça Furtado, acusando o recebimento do Memorial.22
Fica evidente o empenho da propaganda pombalina em divulgar, com eficiência, o conteúdo dos textos antijacobeus, principalmente o Memorial sobre o cisma do sigilismo, escrito por José Seabra da Silva, obra de síntese de toda a questão. É sintomático que o vigário geral tenha apontado os desvios do Pe. Bernardo como “jacobices”, especialmente por se tratar de um período em que a Jacobeia não havia sido formalmente transformada em delito pelo Santo Ofício, o que aconteceu somente a partir do último regimento da Inquisição, em 1774.23 Nessa ordem de ideias, é bastante plausível que o Dr. Manuel Garcia Velho do Amaral tenha se inspirado na leitura do Memorial sobre o cisma do sigilismo.
Soma-se, a isso, o fato de que Manuel Garcia Velho do Amaral estudou em Coimbra, entre os anos de 1745 e 1751, numa altura em que a questão do sigilismo estremecia os ânimos na corte de D. João V.24 Além do mais, Coimbra foi, talvez, o principal epicentro dos embates que envolveram o sigilo confessional, o que leva a acreditar que Manuel Garcia Velho tenha se apropriado do debate enquanto realiza seu curso de cânones. É possível que a memória daqueles anos, acrescida da leitura do Memorial sobre o cisma do sigilismo, tenha contribuído com a interpretação do vigário geral.
Um jacobeu em Pernambuco?
Voltemos ao caso do Pe. Bernardo da Silva do Amaral. Ao longo do ano de 1772, Pe. Bernardo permaneceu no aljube da cidade de Olinda, enquanto as diligências eram realizadas. É bastante sugestiva a forma como o vigário geral interpelava as testemunhas: “se sabia algo acerca da Jacobeia e mais procedimentos do reverendo autuado”, ou “o que sabe sobre as jacobeias e procedimentos do reverendo autuado”. Ao que as orientadas e confessadas respondiam sem nenhuma referência direta à Jacobeia. O que sugere, por suposição, um completo desconhecimento sobre a matéria.
A imagem de Jacobeu compartilhada pelo Dr. Manuel Garcia Velho do Amaral se aproxima do perfil apresentado por José Seabra da Silva no “Memorial sobre o Cisma”, divergindo em um único aspecto que julgamos crucial. Como já dito, todo material produzido através da Coleção das Leis Promulgadas pretendeu provar que havia indissociável relação entre Jacobeia e sigilismo. Sob esse escopo, é curioso notar que ao longo do processo do Pe. Bernardo não há qualquer referência à quebra do sigilo confessional.
Mesmo não havendo menção à quebra do sigilo confessional, o vigário geral se amparou em outros qualificativos presentes no Memorial sobre o Cisma para identificar os desvios do Pe. Bernardo com o rótulo de jacobices, nomeadamente: fingimento, hipocrisia, fanatismo e perniciosidade. Além disso, o valor dado à meditação, a busca pela perfeição no caminho da virtude, o abandono dos excessos, a união estreita com Deus, o lugar de protagonismo exercido pela oração mental, tópicos presentes nas cartas de orientação escritas pelo Pe. Bernardo, também influenciaram a interpretação do Dr. Manuel Garcia Velho do Amaral (SILVA, 1769, p. 137).
É importante chamar à atenção para o repertório acima apresentado. Ainda que a oração mental, a obediência irrestrita a um diretor espiritual, o exame da consciência, a prática dos exercícios espirituais, a busca pela perfeição dos costumes, o uso frequente da confissão e a procura por formas particulares de devoção sejam os pilares da espiritualidade divulgada pelos Jacobeus a partir do começo do século XVIII, não representavam nenhuma novidade, antes, e de maneira específica, faziam parte de amplo vocabulário espiritual, próprio do catolicismo moderno (DELUMEAU, 1973, p. 53; LEBRUN, 2009, p. 78).
A divulgação dessas formas de espiritualidade remonta ao desenvolvimento das tendências interioristas que influenciaram vários círculos religiosos no século XVI, adquirindo expressividade através da ação das congregações religiosas, em especial a Companhia de Jesus e os Oratorianos de São Felipe Neri (PAIVA, 2000). O vocabulário espiritual de tendências interioristas não ficou restrito aos eclesiásticos, sendo compartilhado também pelos leigos, notadamente mulheres. Autores como José Sebastião da Silva Dias, Maria de Lurdes Correia Fernandes e José Pedro Paiva apontaram a assimilação dessas práticas, sobretudo a oração mental e os exercícios espirituais, pelas mulheres, algumas delas sendo, inclusive, acusadas de santidade fingida (DIAS, 1960, p. 381; FERNANDES, 1999; PAIVA, 2000). Além das mulheres, outros grupos historicamente excluídos tiveram acesso a esse tipo de espiritualidade. Esse foi o caso dos rústicos europeus, que se apropriaram dessa linguagem através – sobretudo no caso português – da intervenção missionária das ordens religiosas, com destaque para os Oratorianos, os Franciscanos do Seminário Apostólico do Varatojo e os Eremitas de Santo Agostinho.
Isso posto, a atuação do Pe. Bernardo como diretor – referindo-se tão somente aos atos e às práticas espirituais, tal qual a administração dos exercícios espirituais (a exemplo do exercício das três potências da alma) e a prescrição da oração mental – não representam nada de original, especialmente se levarmos em consideração que, durante aproximadamente dez anos, o Pe. Bernardo fez parte da Congregação do Oratório de São Felipe Neri de Pernambuco. Conforme Paiva (2000, p. 243-265), os oratorianos tiveram papel primordial na difusão popular de formas de espiritualidade mais individualizadas, o que acabou provocando, em determinadas circunstâncias, interpretações viesadas.
Os oratorianos foram obstinados defensores da oração mental e da direção espiritual. Nos estatutos da Congregação do Oratório de Lisboa – que também regia a Congregação de Pernambuco –, Bartolomeu de Quental, fundador da congregação lisboeta, aponta a oração mental como fundamento de toda a reforma e perfeição da vida espiritual, devendo ser realizada três vezes ao dia. Segundo Quental, a oração mental seria uma elevação espiritual a Deus, sua falta acarretaria pouca ou nenhuma esperança em haver perfeição na virtude e nas santas resoluções, sendo caminho necessário aos que buscam atingir a perfeição (QUENTAL, 1682).
Além da oração mental, Quental dedica especial atenção ao exame de consciência e aos exercícios espirituais, a ponto de destinar um cargo específico para a administração dos exercícios entre padres: o de prefeito espiritual. A confissão também gozava de singular notoriedade na agenda oratoriana, devendo ser ministrada em qualquer hora, sendo função dos congregados levá-la aos lugares pobres e humildes, como cárceres e hospitais, devendo evitar, quando possível, os palácios (DIAS, 1966, p.14-15).
Durante os anos em que o Pe. Bernardo vestiu a roupeta do Oratório no Convento da Madre Deus, certamente se ocupou desse extenso vocabulário espiritual. Ressaltamos um dos livros que o Pe. Bernardo confessou ter lido no Convento da Madre de Deus, durante as rotinas espirituais: trata-se do Exercício de Perfeição e virtudes cristãs, escrito pelo jesuíta Afonso Rodrigues (1531-1617), que, coincidentemente, também servia como manual espiritual dos Jacobeus, nas reuniões realizadas no Colégio da Graça de Coimbra, no começo do século XVIII (MELO, 2020a). Além dos Exercícios de Perfeição do Pe. Afonso Rodrigues, Pe. Bernardo parece ter utilizado outro conhecido livro como guia para as orientações que realizou: o Lucerna Mística, escrito pelo Pe. José López Ezquerra, reconhecido como importante referência sobre a conversação de clérigos com mulheres e no trato com filhas espirituais (TAVARES, 2002, p. 356). Entre os papeis recolhidos na casa do Pe. Bernardo, foram encontrados trechos da Lucerna Mística.25
Causa admiração que o Dr. Manuel Garcia Velho do Amaral tenha, por suposição, levado em conta o repertório acima exposto para rotular o Pe. Bernardo como Jacobeu, o que mais uma vez leva a acreditar na influência da leitura do Memorial sobre o cisma do Sigilismo que os denominados jacobeus e beatos levantaram neste Reino de Portugal. É igualmente admirável que ao longo do processo conduzido pelo auditório eclesiástico de Pernambuco, o vigário geral não tenha se inclinado a investigar com rigor a proposição “dar ósculos abraços, e ter tratos desonestos, não era pecado”, ao contrário “servia para maior união dos espíritos, e serviço de Deus”, de tendência nitidamente molinosista.
Os molinosistas foram aqueles que seguiam as doutrinas do sacerdote aragonês Miguel de Molinos (1628-1697), místico defensor de uma forma de oração contemplativa, bastante controversa no catolicismo moderno: a chamada quiete. A quiete, ou quietismo, enfatizava o caminho interno e passivo à contemplação e união com Deus, através do abandono total da alma do orante nas mãos divinas. No estado de abandono da vontade pessoal, admitia-se que o corpo pudesse ser sujeito a movimentos sensuais, estimulados pelo demônio, cuja responsabilidade moral não era imputável a quem cometia (MARCOCCI; PAIVA, 2013, p. 283).
O molinosismo fez parte do que se costumou chamar de heresias do amor divino, uma vez que na sua interpretação da quite – quies mentis (repouso do espírito) – aceitava-se que a alma, no momento do abandono a Deus, ficaria indiferente às tentações que a pudessem assaltar, aceitando passivamente, inclusive, casos extremos, como deixar a salvação e correr para a condenação, caso fosse essa a vontade divina. Sob esse ponto de vista, a relação entre voluptuosidade e oração, teoricamente ilógica, não representava uma aproximação paradoxal (DANIEL-ROPS, 2000, p. 382-387).
Como foi dito, a união dos espíritos fazia parte da direção espiritual guiada pelo Pe. Bernardo, sendo estimulada através da contemplação e da meditação. Os êxtases e as revelações descritas se aproximam das experiências comuns aos adeptos da oração da quiete, sugerindo absoluto repouso do espírito. Isso explica a fórmula usada pelo Pe. Bernardo para atenuar a face delituosa dos seus atos: “dar ósculos abraços, e ter tratos desonestos, não era pecado; servia para maior união dos espíritos, e serviço de Deus”. Assim aconteceu com o já citado caso de Josefa Maria dos Prazeres, que confessou ter mantido atos carnais com o Pe. Bernardo, tendo o pensamento em Deus. Ou mesmo no testemunho de Clara Maria, que asseverou ter visto o Pe. Bernardo desposar uma confessada que estava em êxtase, o que sugere o total repouso do espírito.
A condenação às teses de Miguel de Molinos se deu por meio da bula Coelestis pastor, em 1687. A longo do século XVIII, conforme aponta Pedro Villas Boas, o assunto foi amplamente discutido pela Inquisição Portuguesa, ainda que a reação às teses molinosistas, ao menos num primeiro momento, tenha sido lenta e sem qualquer zelo especial (TAVARES, 1994, p. 160). Segundo os dados computados por José Pedro Paiva e Giussepe Marcocci, até meados do século XVIII, o Santo Ofício condenou, por heresia, cerca de 60 pessoas que, para além de solicitarem penitentes, entendia--se que adotavam as teses de Molinos. Curiosamente, um dos primeiros condenados por molinosismo em Portugal foi um padre da congregação do Oratório, Antônio da Fonseca, diretor espiritual de Arcângela do Sacramento (MARCOCCI; PAIVA, 2013, p. 282-283).
Marcocci e Paiva (2013) sustentam, ainda, que os condenados parecem não ter sido profundos conhecedores de Molinos, consistindo seu molinosismo, notadamente, em invocarem argumentos para justificar os comportamentos sexuais ilícitos com mulheres, sobretudo quando se tratava de padres diretores espirituais. Ora, estamos diante de um perfil idêntico ao traçado até aqui para o Pe. Bernardo da Silva do Amaral.
Suspeitando do caráter herético das proposições do Pe. Bernardo, mais precisamente do claro conteúdo solicitante das suas ações, o que escapava à alçada do auditório eclesiástico de Pernambuco, o processo foi remetido ao Tribunal do Santo Ofício de Lisboa, através de termo de remessa lavrado em 26 de novembro de 1772. Dessa forma, como já dito, o Pe. Bernardo chegava a Lisboa em 10 de março de 1773, sendo aprisionado nos cárceres da Inquisição.
Nas diligências conduzidas pela Inquisição, a menção à Jacobeia foi completamente suprimida. Na recolha dos testemunhos realizada pelo Pe. Antônio Alvares Guerra, comissário do Santo Ofício e morador na vila do Recife, o interrogatório aplicado se concentrou basicamente em dois eixos:
3º - Se sabe que algum confessor secular no ato da confissão sacramental, antes ou posterior, ou em lugar destinado para isso solicita-se a alguma pessoa para atos torpes e desonestos.
4º - Se sabe que algum confesso secular ou regular sendo diretor espiritual de pessoas do sexo feminino tenha tido com as mesmas atos desonestos, copula carnal, ósculos, e abraços, e dormindo com as mesmas em uma cama, lhe administra-se logo depois disto o sacramento da penitência, e eucaristia, e se celebrasse o sacrifício da missa sem se reconciliar, aconselho-as a que se não confessassem a outro confessor, nem disso fizesse com escrúpulo por nem ser pecado, mas sim para maior união espíritos.26
Fica claro, pois, que o Tribunal do Santo Ofício abandou a tese da Jacobeia, substituindo-a pelo delito de sollicitatio ad turpia, solicitação confessional, e molinosismo.27 Durante as diligências conduzidas pelo juízo eclesiástico de Pernambuco, inúmeras testemunhas fizeram menção ao delito de sollicitatio ad turpia; no entanto, ao que parece, o Dr. Manuel Garcia Velho do Amaral interpretou como parte do universo de transgressões da Jacobeia.
Durante sua confissão ao Tribunal do Santo Ofício, o Pe. Bernardo da Silva do Amaral negou ter realizado a solicitação confessional – embora tenha confirmado que cometeu os delitos sexuais –, reconhecendo, todavia, os erros e as falsidades da doutrina que promovia. Contudo, não declarou nominalmente a influência das teses de Molinos. Não se sabe onde e através de quais livros o Pe. Bernardo acessou as proposições molinosistas, mas supõe-se que tenha sido durante a rotina de leitura dos autores espirituais no Convento da Madre de Deus.
A sentença do Pe. Bernardo da Silva do Amaral foi decretada no dia 27 de fevereiro de 1776. Ficou determinado que estaria proibido, para sempre, de celebrar missa e de ministrar o sacramento da confissão. Também lhe foi desautorizado, por dez anos, o exercício de suas ordens e o retorno a Pernambuco sob quaisquer circunstâncias. Por fim, foi degredado para a cidade de Lamego, pelo mesmo período de dez anos. À semelhança dos demais molinosistas condenados ao longo do século XVIII pelo Tribunal do Santo Ofício, Pe. Bernardo, além de ter sido sentenciado por “seguir a conduta espiritual de Miguel de Molinos e a errônea doutrina dos quietistas sectários deste mesmo”, também foi culpabilizado pelo crime de solicitação.28
À guisa de conclusão, o caso do Pe. Bernardo da Silva do Amaral permite avaliar a eficiência da propaganda pombalina, conduzida pela Real Mesa Censória, em fazer circular, por meio da publicação de textos condenatórios, uma indiscutível campanha de perseguição à Jacobeia. Através desses textos, os jacobeus foram apresentados como os novos inimigos da monarquia, representando um perigo análogo ao simbolizado pela Companhia de Jesus – aniquilada há menos de dez anos.29
Sob esse ponto de vista, a partir de uma perspectiva retórico-política, a guerra aos jacobeus serviu como uma espécie de batalha final, que encerrava definitivamente o que poderia ser chamado de uma “trama jacobeia-jesuítica”. Não à toa, naquela altura, duas obras podem ser apresentadas como um projeto de síntese do programa reformista planejado por Sebastião José de Carvalho e Melo, especialmente no que toca ao relacionamento com a Igreja, marcado por uma lógica moderna de Estado, que buscou limitar os poderes do corpo eclesiástico, agindo particularmente contra alguns grupos específicos que ameaçavam o desenvolvimento do projeto político que se delineava (SOUZA, 2015, p. 278).30
A primeira obra foi a conhecida Dedução Cronológica e Analítica (1767), seguramente o primeiro grande compêndio que buscou projetar o ideário político do que se convencionou chamar de “época Pombalina”. A Dedução Cronológica apresentou--se como a última cartada de um inequívoco projeto que pretendeu transformar a Companhia de Jesus no maior inimigo da monarquia portuguesa. Não por acaso, a obra foi produzida quando os Jesuítas já haviam sido expulsos dos territórios da monarquia há quase dez anos, o que sugere outra intenção: notadamente, a de perseguir os possíveis colaboradores dos inacianos, com especial destaque àqueles que partilhavam visões de mundo diametralmente opostas ao plano reformista introduzido pelo Conde de Oeiras.31
A segunda foi a já citada Coleção das Leis Promulgadas, Sentenças Proferidas nos casos da infame pastoral do Bispo de Coimbra D. Miguel da Anunciação da Seita dos Jacobeos, Sigilistas, publicada dois anos depois (COLEÇÃO, 1769). Ambas foram crias de José Seabra da Silva, um dos principais doutrinários das novas ideias implementadas a partir da década de 1760, no âmbito do consulado pombalino.32 Isso posto, a vitória contra a Jacobeia passou a significar a coroação de um projeto político. Não sem motivo, como observa Simão José da Luz Soriano, na segunda metade do século XIX, a Inquisição teria servido como instrumento político nas mãos do Marquês de Pombal, que a utilizou para perseguir aqueles que reprovavam a sua política, nominando-os de jacobeus e sigilistas (SORIANO, 1867, p. 28).
Nessa ordem de ideias, é provável que o vigário geral do bispado de Pernambuco tenha buscado comprovar seu total alinhamento com o que vinha acontecendo na corte, mostrando-se atualizado sobre arroubos heréticos que assolavam a monarquia. Devido a quase completa ausência da documentação produzida pelo auditório eclesiástico de Olinda, não é possível afirmar, com algum grau de certeza, que outros padres foram acusados, talvez pelo próprio Manuel Garcia Velho do Amaral, de terem suas “culpas fundadas na mais refinada Jacobeia”. Porém, levando em consideração as fontes coevas para o período, parece muito pouco provável que outras acusações contra “pad res jacobeus” tenham acontecido no bispado de Pernambuco.33
No âmbito do Santo Ofício português, até onde foi possível verificar, nenhuma condenação efetuou-se cujo motivo tenha sido “jacobices”. Como já dito, as raras menções à Jacobeia aconteceram em casos nos quais o réu fora acusado de sigilismo, especialmente a partir de 1774, quando foi publicado o novo regimento do Santo Ofício. Fora desse arranjo, ao que parece, o que predominou foram acusações de quebra do sigilo confessional, sem qualquer referência à Jacobeia,34 o que leva a acreditar que o caso do Pe. Bernardo da Silva do Amaral tenha sido verdadeiramente excepcional.
Resumo
Main Text
“Para maior união dos espíritos e serviço de Deus”
“Culpa fundada na mais refinada Jacobeia”
Um jacobeu em Pernambuco?
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