Fri, 16 Oct 2020 in Revista de História (São Paulo)
IMPERIALISMO, ESTADO E HIERARQUIZAÇÃO SOCIAL NA BAIXA NÚBIA DURANTE O REINO NOVO EGÍPCIO (1550-1070 a.C.)
Resumo
As leituras tradicionais das relações entre egípcios e núbios durante o período do Reino Novo ressaltaram a superioridade das estruturas sociais egípcias e a imposição desta cultura sobre os povos núbios. Tais leituras incorporam uma perspectiva excessivamente herdeira do quadro mental do século XIX, que atribuía uma inferioridade cultural a sociedades da África Subsaariana. Uma análise mais detida do domínio imperial egípcio sobre a Núbia deve considerar, todavia, os conflitos internos inerentes a cada uma destas sociedades. Assim, o artigo busca demonstrar como o imperialismo faraônico tratou de estimular uma forte hierarquização social na Baixa Núbia para garantir a exploração de recursos e o fluxo de bens de prestígio necessários à manutenção do império. Este processo implicou a subsunção das formas produtivas locais aos padrões egípcios e à, consequente, expansão das relações sociais estatais características do Egito.
Main Text
As relações entre os diferentes povos do nordeste africano entre o IIº e o Iº Milênio a. C. foram tradicionalmente analisadas a partir de uma perspectiva que projetou o drama civilizacional eurocêntrico para o chamado Antigo Oriente Próximo (circunscrição que, em si mesma, toma a Europa como centro).
Desde seus primeiros passos, por volta do século XIV, o mundo moderno projetou suas raízes naquilo que veio a ser chamado de período clássico, focado em uma determinada leitura do que foi generalizado como Antiguidade Clássica a partir da tomada de um conjunto de textos literários, inicialmente latinos e posteriormente também gregos (GUARINELLO, 2010, p. 55).
Uma série de motivos fez com que o Egito e a Mesopotâmia antigos fossem inseridos nesta narrativa da civilização, que além da tradição greco-romana contava também com a antiguidade bíblica. Em primeiro lugar, o ímpeto neocolonial fez com que as principais nações europeias se interessassem pela África e pela Ásia. Os primeiros passos deste movimento foram dados com a invasão napoleônica do Egito, em 1798. Logo, as descobertas histórico-arqueológicas foram tão arrebatadoras que se tornou impossível negar o surgimento da civilização naquelas terras. Em especial porque a tal civilização naquele momento baseava-se, segundo critérios estabelecidos pela forma eurocêntrica de narrativa histórica, na existência de estruturas urbanas e linguagem escrita.
Em segundo lugar, o turbulento contexto do século XIX, com a luta de grupos subalternos pelo protagonismo político e o início das organizações de trabalhadoras e trabalhadores, levou a sociedade europeia a uma supervalorização da antiguidade “próximo oriental”, em especial da egípcia. Face a esta realidade de conflitos sociais, algumas elites europeias ocidentais passaram a idealizar o Egito faraônico como uma utopia conservadora, marcada pelas Belas Artes, pela estabilidade milenar, pela religiosidade e pela idolatria de um governo patriarcal, constituindo aquilo que Moreno García chamou de mito do “Egito Eterno” (MORENO GARCÍA, 2009).
A inserção do Egito e da Mesopotâmia como “berço”3 da narrativa civilizacional teve como efeito colateral a transposição dessa lógica civilizacional, cujas raízes foram projetadas no mundo clássico, para a realidade “próximo-oriental”. Portanto, a relação entre egípcios e mesopotâmicos (sedentários) e seus povos vizinhos (especialmente os nômades) passou a ser vista sob a ótica da luta entre civilização e barbárie.
No caso específico do Egito, a adaptação à narrativa histórica linear da civilização europeia levou também a um intenso processo de embranquecimento e afastamento entre os egípcios e os demais povos e tradições africanas. Surgia assim o mito do isolamento do Vale do Nilo, associado às características geográficas da região, para fundar aquilo que foi chamado de “efeito de confinamento” (MANN, 1986, p. 110-114). O afastamento entre Egito e África não teve como única consequência o seu posicionamento como uma cultura do Oriente Próximo ou do Crescente Fértil (BARD, 1996, p. 103-111). A relação da sociedade faraônica (ou mesmo da pré-dinástica) com seus vizinhos africanos (líbios e, especialmente, núbios) passou a ser lida a partir da perspectiva racista do discurso racialista pseudocientífico europeu4. Portanto, os egípcios, racialmente superiores, submetiam e utilizavam a força de trabalho dos negros núbios.
A interpretação tradicional da relação entre Egito e Núbia, especialmente no Reino Novo, foi associada ao modelo desenvolvido para o colonialismo moderno (AMBRIDGE, 2012, p. 11-13). A expansão faraônica para o território além da segunda catarata do Nilo, hoje submersa na represa de Assuã, teria sido acompanhada de uma egipcianização, através da qual as populações locais foram supostamente aculturadas. Tal lógica seria comprovada nos registros arqueológicos, que marcariam a substituição da materialidade autóctone núbia por uma cultura material de tipo egípcio (VAN PELT, 2013, p. 536). O desequilíbrio de poderes político-econômico e militar entre egípcios e núbios levou sim a um quadro imperialista, mas que em nada refletia uma superioridade racial e tampouco ocorreu sem a resistência dos dominados à potência dominante (FRIZZO, 2015, p. 80-87).
Neste artigo, buscaremos demonstrar que os interesses imperialistas egípcios foram fundamentais na transformação das relações sociais na Baixa Núbia (região da primeira e segunda cataratas do Nilo), criando uma forte hierarquização social local para garantir a exploração de recursos e o fluxo de bens de prestígio necessários à manutenção do império. Tal processo implicou no estabelecimento de uma dinâmica administrativa e produtiva, que significou a subsunção das formas locais à expansão da estrutura estatal faraônica.
O domínio político, econômico e cultural - com a imposição de uma agressiva política de egipcianização5 das elites locais - não deve ser visto pela chave de leitura da dicotomia “Egípcios x Núbios”, mas, por outro lado, deve levar em consideração os conflitos internos inerentes a cada uma das sociedades.
Breve contexto das relações entre Egito e Núbia na transição para o Reino Novo
O reinado de Senusret III, no Reino Médio durante a XIIª Dinastia, modificou a relação tradicional entre Egito e Núbia, invertendo a estratégia de trocas do Reino Antigo, que contava com expedições à Alta Núbia. Passou-se a privilegiar o contato direto com os representantes kushitas, que traziam os produtos até a fronteira egípcia na região da Segunda Catarata. Além de seu papel no comércio, as fortalezas construídas no Reino Médio na fronteira com a Núbia garantiam a segurança das transações, em especial contra aquilo que era entendido pelos egípcios como a ameaça de povos locais - Grupo C, Pan-Grave ou medjayw -, por vezes referidos como “saqueadores dos oásis”6.
William Adams afirma que o quartel general dessa área de transferência - a fortaleza de Buhen - era o centro de controle do primeiro monopólio comercial da história, resultado da ascendência estatal no comércio entre Egito e Kush (ADAMS, 1984, p. 52).
Tal perspectiva poderia ser apoiada pela afirmação de Richard Lobban de que havia uma comunidade de comerciantes egípcios residentes em Kerma7, garantindo a permanência de um governo autônomo naquela sociedade (LOBBAN, 2004, p. 19-27). Novamente, as ideias de Adams são mais radicais, vendo esses egípcios residentes como representantes da influência do faraó sobre os governantes nativos, o que seria a comprovação de que naquele período o Egito exercia uma exploração com o controle indireto da Alta Núbia (ADAMS, 1984, p. 52). Em todo caso, a perspectiva de Adams acerca desse controle indireto egípcio sobre Kerma parece orientada por um modelo de pensamento muito baseado nas diferenças de complexidade política entre o Estado faraônico e a chefatura kushita, quando não há indícios determinantes dessa influência sobre os nativos.
As trocas administradas de forma centralizada pelo Egito teriam resultado num aprofundamento da hierarquização na sociedade de Kerma, com o aumento do prestígio dos chefes locais, responsáveis por coordenar a extração de matérias-primas e supervisionar sua entrega aos egípcios (TRIGGER, 1976, p. 17). A modificação social foi um passo adiante na constituição do Estado material8 da cultura Kerma.
No IIº Período Intermediário egípcio, o comércio direto com os kushitas cessou em razão do enfraquecimento da centralização do Estado faraônico. Os bens de prestígio vindos da Alta Núbia deixaram de ser encontrados no Baixo Egito, mas os produtos egípcios continuaram aparecendo constantemente nos contextos da Baixa Núbia, mesmo após Kerma ter submetido as fortalezas egípcias à sua esfera de hegemonia, em conjunto com os núbios do Grupo C.
O apogeu da cultura Kerma - em seu período arqueológico conhecido como clássico (1750-1580 a.C.) - foi facilitado pela crise na centralização do Egito no IIº Período Intermediário. A situação do faraó em Tebas, como visto, era problemática, pois no mesmo território que havia estado sob o controle de seus ancestrais do Reino Médio agora havia um governante hicso e outro kushita dividindo o poder com ele. Kamés, o último monarca da XVIIª Dinastia, descreveu essa situação:
De Tebas, isolado por poderes estrangeiros no norte e no sul da “Terra Negra”, Kamés decidiu lançar expedições militares para reunificar o Egito sob sua coroa dupla. Barry Kemp parece correto em afirmar que a Núbia figurava como parte do Egito no texto da estela (KEMP, 1978, p. 21-22), considerando que a presença do Grupo C não parece ter avançado acima da Primeira Catarata.
Um quadro mais razoável é desenhado por Adams, que afirma que a conquista de Ahmés na Núbia tinha como objetivo a retomada da hegemonia sobre o comércio de bens de prestígio com o sul (ADAMS, 1984, p. 61), que jazia nas mãos do Grupo C sob a influência de Kerma, além do controle sobre as rotas das minas de ouro núbias.
A Arquitetura da Dominação Faraônica sobre a Núbia
A reconquista das fortalezas do Reino Médio foi prioridade no início da XVIIIª Dinastia, para que a rede fosse usada como base para o domínio da Núbia. No Reino Novo, contudo, essas fortalezas acabaram perdendo sua função original. Se Semna permaneceu abrigando uma guarnição, outras tiveram seu caráter modificado, como Uronarti e Kumma, que se tornaram comunidades sacerdotais, enquanto Buhen e Aniba viram o crescimento de novas cidades ao seu redor (TÖRÖK, 2009, p. 185).
A ocupação da fronteira sul foi marcada pela construção de cidades templárias conhecidas como mnnw10. Segundo Ellen Morris:
A já mencionada modificação de uma ocupação de caráter majoritariamente militar e voltado para a defesa para um controle apoiado num funcionalismo “civil” está ligada ao estabelecimento dessas cidades templárias, que contavam com o governo de altos funcionários - como os prefeitos (ḥAty-a) - e eram responsáveis por manter uma grande população assentada fiel ao governo egípcio, protegendo a área de forças hostis. A opção por grandes assentamentos viria da percepção de que áreas despovoadas são mais vulneráveis à penetração externa.
A estrutura da cidade templária era um modelo aplicado durante toda a XVIIIª Dinastia na tentativa de dominar o território núbio, em especial até a Terceira Catarata. No território entre a Terceira e a Quarta Cataratas a situação era um pouco diferente. Ali os assentamentos egípcios ocupavam uns poucos pontos estratégicos, em especial Napata, centro religioso que abrigou um templo de Amon e chegou a ser área de culto a Aton no período amarniano. Smith afirma que a estratégia usada para a ocupação desta região se devia às dificuldades ligadas à viagem até lá (SMITH, 2003, 1996). Morkot, por outro lado, prefere enfatizar que o poder e a autonomia dos povos locais (herdeiros de Kerma) teriam levado os egípcios a estabelecerem ali relações diplomáticas e trocas de presentes (MORKOT, 1991, p. 294-301. Morris vê a ausência de mnnw em Kawa e Napata como um indício importante da validade dos argumentos de Morkot (MORRIS, 2005, p. 812). Logo, esta localidade de Kush deve ser tratada de forma distinta na dinâmica de explicação das relações entre o Egito e a Núbia.
De volta às cidades templárias, tais estruturas eram retangulares, cercadas por muros de tijolos com torres intervaladas e portais de pedra na muralha exterior. O interior da urbe era cortado por ruas estreitas e contava com três categorias de edificações. As construções mais proeminentes eram os templos de pedra, aos quais estavam associados armazéns de grãos e outras matérias-primas, que poderiam ser usadas/obtidas nas trocas com populações seminômades. O restante da área era ocupado por edifícios domésticos e administrativos, construídos de tijolos. Kemp nota que a única diferença entre o modelo das cidades templárias e a estrutura dos templos egípcios é que, na Núbia, as muralhas incluem grandes áreas residenciais, enquanto os muros templários no Egito delimitavam um espaço ocupado apenas pelo templo e seus armazéns (KEMP, 1972, p. 661).
Várias dessas cidades templárias foram construídas na Núbia, centradas em templos e com uma estrutura econômica relativamente grande, planejada para volumosos grupos de trabalhadores e trabalhadoras. Paralelamente, fortalezas do Reino Médio foram ampliadas para serem adaptadas a este modelo. Redford acentua que o uso do termo egípcio spAt11 na documentação mostraria que o modelo de centro urbano com sua gleba adjacente estaria presente ao sul do Egito (REDFORD, 2004, p. 893).
Além de trabalhadores e trabalhadoras, as divindades que habitavam essas fundações religiosas eram dotadas de propriedades, cuja administração e produção jazia sob responsabilidade dos templos. Segund Kemp,
As doações de terras, trabalhadores e matérias-primas em geral aos templos eram um mecanismo estatal de controle da riqueza e uma forma de expansão do Estado egípcio, tanto na “Terra Negra”, quanto no exterior.
Esta expansão imperialista do modelo faraônico de controle da produção é vista por Kemp como uma criação de “colônias”. Segundo o autor, isto não envolvia anexação territorial, mas uma forma de exploração intensiva do potencial agrícola por meio da introdução de responsabilidades baseadas na atribuição de lotes de terra (KEMP, 1978, p. 34).
Morris concorda que a construção das cidades templárias mostra o esforço de criação de um foco econômico e espiritual para os assentamentos acima da Primeira Catarata, numa forma de exploração semelhante à do Egito (MORRIS, 2005, p. 812). Isto ajuda a explicar as doações de terras na Núbia a cultos e templos egípcios. Um exemplo de alguns séculos após o domínio, já durante a XIX Dinastia, é a doação de uma estrutura imensa ao cenotáfio de Osíris em Abidos, atestada pelo Decreto de Naury (GRIFFITH, 1927).
As mnnw poderiam ser encaradas como sedes administrativas e grandes proprietárias de terra, mas também como elementos de redistribuição que favoreciam especialmente as elites nativas cooptadas pelo sistema econômico imperial. Por outro lado, havia ainda um caráter religioso, expresso não apenas nos festivais do calendário sagrado, mas, também, cotidianamente, nas partes acessíveis do templo, nas estátuas e imagens externas, que deveriam servir de local de culto da religiosidade popular. Desta forma, ao mesmo tempo em que provavelmente eram usados pela população em sua devoção pessoal, os templos também comunicavam a autoridade do faraó sobre a região. Segundo Adams, era o templo e não a fortaleza que simbolizava o poder egípcio na Núbia do Reino Novo (ADAMS, 1984, p. 57).
A localização das mnnw na Núbia obedecia a um caráter estratégico voltado para a garantia do domínio egípcio, assegurando as rotas de trocas e, consequentemente, mantendo o fluxo de bens de prestígio. Para isto, os locais escolhidos para os assentamentos fortificados deveriam considerar a manutenção de uma distância máxima entre eles, bem como a proximidade aos recursos locais (agrícolas e minerais, em especial) e a geografia propícia para construção de monumentos e recepção de embarcações (SPENCER et Al., 2017, p. 20-21).
Ao tratar dos sítios escolhidos para a construção de cidades templárias durante o reinado de Ramsés III, na XIXª Dinastia, por exemplo, Török elencou uma série de critérios que parecem ter sido utilizados: a manutenção dos centros tradicionais; a situação das terras férteis; e a distância coberta por navio/dia corrente acima (25-30 km) e abaixo (60-80 km) (TÖRÖK, 2009, p. 245). Desta maneira, seus santuários se encaixavam no itinerário de viagem pelo Nilo, facilitando a integração dos territórios imperiais e o abastecimento de vários destes templos que nem sempre eram dotados de terras próximas que os abastecessem.
A administração egípcia na Núbia era composta por um organograma complexo de cargos e funções. Num segundo nível do escalão administrativo da Núbia, indicados diretamente pelos vice-reis, estavam os seus dois auxiliares, os “Delegados do Filho Real” (idnw n sA-nsw) para Wawat e para Kush. Estes funcionários estavam instalados na Núbia e ocupavam os mais altos postos da administração local, uma vez que o vice-rei e o “Comandante das Tropas” viviam em Tebas. Os Delegados eram escolhidos entre as famílias das classes dominantes locais para intermediar a relação com as populações núbias, e suas tumbas se encontram em Aniba (Miam) e Soleb.
Houve, a partir do Reino Novo, uma modificação súbita na cultura material da Baixa Núbia, que deixou de ser dominada pelos costumes do Grupo C, dos Pan-Grave e de Kerma e passou a apresentar características próprias da cultura egípcia em praticamente todos os sítios. A primeira interpretação deste contexto foi a de uma instalação em massa de imigrantes da “Terra Negra”, relacionada a um êxodo da maioria da população nativa, conforme, por exemplo, Firth:
Firth relaciona, portanto, a migração iniciada após as campanhas de Ahmés na Núbia com a aculturação dos elementos restantes da população local, constituída majoritariamente por mulheres. Neste sentido, a questão de gênero teria um importante papel no processo de sobreposição cultural nos grupos nativos, por meio da submissão destes à cultura egípcia através do casamento com colonos da “Terra Negra”. Há aí um pressuposto preconceituoso de que o gênero feminino é culturalmente passivo em situação de matrimônio, submetendo-se aos costumes tradicionais de seus cônjuges, o que não encontra qualquer comprovação empírica.
Os trabalhos da Scandinavian Joint Expedition (SÄVE-SÖDERBERGH, 1979) e de outras missões responsáveis por regiões mais ao sul contribuíram para o melhor entendimento deste contexto histórico, apontando a improbabilidade de um êxodo e da substituição da população local pelo assentamento de colonos egípcios. O desaparecimento quase total da cerâmica e das formas de enterramento autóctones durante a primeira metade da XVIIIᵃ Dinastia passou a ser visto como um sinal, não mais da expulsão e migração da população nativa, mas da aculturação do Grupo C e dos Pan-Grave, segundo os costumes da “Terra Negra”.
Morkot enquadra esta nova forma de dominação como uma modificação clara de uma política do Reino Médio para a região, que envolvia ignorar ou remover a população, para outra, que buscava integrar as elites por meio da administração e da cultura (MORKOT, 2009, p. 232). Morris acrescenta que este processo de transposição para um modelo administrativo e cultural deve ter sido facilitado pelo fato de que os povos da Baixa Núbia eram parte de uma sociedade nilótica frouxamente integrada (MORRIS, 2005, p. 32).
Neste contexto, a religião teve um papel fundamental, tanto em seu aspecto templário quanto funerário. Conforme já foi observado, os assentamentos egípcios na Núbia eram dominados por estruturas templárias e, portanto, reproduziam a religião da “Terra Negra”. Ainda no Reino Médio, houve a associação de cultos locais à introdução do deus Hórus, com a adoção do nome “Hórus, deus de tA-sty (Núbia)”, que teria permanecido durante o IIª Período Intermediário. O próprio culto a Senusret III, conquistador da Núbia, poderia ser visto no Reino Novo como uma retomada da adoração a uma divindade local.
Como os nativos núbios utilizavam cavernas como locais privilegiados de contato com o sagrado, a dominação egípcia usou como estratégia a construção de templos cavados nas rochas, como em Abu Simbel e Jebel Barkal, num processo claro de subsunção de elementos do sagrado local à religião imperialista. Török afirma que o uso de deuses tradicionalmente associados à Baixa Núbia foi comum nos templos construídos entre os reinados de Tutmés II e Tutmés III, enquanto a introdução de “novas” divindades egípcias esteve inicialmente subordinada ou mesclada a outros cultos nativos, como o de Dedwen e Khnun (TÖRÖK, 2009, p. 217-220). Este foi, por exemplo, o caso de Amon - introduzido já por Ahmés - em sua forma de carneiro (animal cujo simbolismo religioso era difundido em Kush).
O culto das divindades propriamente egípcias se fortaleceu a partir do reinado de Tutmés III e foi mais radical em centros tradicionais como Amada. Os deuses tiveram um papel importante na solidificação do império egípcio, com a renovação dos cultos a divindades da “Terra Negra” instaladas há tempos na Núbia, ou com a egipcianização de deuses nativos, cuja forma já havia se perdido.
Segundo Török, o projeto de Ramsés II para ocupar o Nilo núbio com templos era uma prova clara do contraste em relação à ocupação egípcia durante o Reino Médio. Enquanto as fortalezas enfatizavam o poder do conquistador em seu destaque na paisagem, as estruturas templárias estavam integradas ao cenário local, representando a integração dos núbios no Reino Novo (TÖRÖK, 2009, p. 217-220).
É importante ressaltar, em síntese, que a despeito da introdução de santuários dedicados a divindades tradicionais egípcias, em diversos templos os deuses da Baixa Núbia (os Hórus de Kuban, Aniba, Abu Simbel e Buhen; Khnun, Satat e Anuket) ocupavam lugares tão importantes quanto os seres sagrados da “Terra Negra”. A diferença é que as divindades núbias serviam ao papel de legitimação da integração entre Wawat e Egito. Alguns deuses locais continuaram a ser cultuados até o reinado de Ramsés XI (TÖRÖK, 2009, p. 257-262).
Logo, deve-se rejeitar uma posição unidirecional como a de Kemp, que divide os deuses egípcios na Núbia em três grupos (divindades tradicionais egípcias que aparecem inalteradas ou com epítetos núbios; os Hórus da Núbia; e os reis egípcios divinizados) para depois afirmar que:
Imperialismo e Expansão Estatal: Incorporação e Fortalecimento das Elites Nativas
Tanto na Baixa Núbia, onde a classe dominante que operava o Estado político egípcio escolheu o esforço deliberado aculturação, quanto em Kush, a relação dos agentes imperiais faraônicos se estabelecia majoritariamente com as elites nativas. Foi isso que Säve-Söderbergh constatou a partir da análise dos cemitérios da região de Debeira, na margem ocidental do Nilo, entre a Primeira e a Segunda Cataratas. Segundo o autor, a concentração de enterramentos egipcianizados na necrópole da elite em Teh-Khet, em comparação aos cemitérios próximos, seria um indício de que o processo de egipcianização foi executado verticalmente, a partir das classes dominantes (SÄVE-SÖDERBERGH, 1991, p. 189).
Stuart Smith concorda com a posição de Säve-Söderbergh acerca do papel central das elites nativas no processo de aculturação, declarando que:
O controle local da riqueza e da ideologia pelas classes dominantes da Núbia servia como marcador de status e moeda de troca política na tarefa de assegurar a lealdade da elite nativa e compensar sua participação na extração de tributos, que eram usados localmente na manutenção da estrutura do império.
Partindo da associação com categorias de análise atuais, Kemp constrói a sua abordagem - um pouco mais voltada para a esfera política - das vantagens das classes dominantes da Baixa Núbia no processo de egipcianização. Segundo o autor, embora não haja evidências de uma ideia de cidadania legal no Egito, poder-se-ia considerar a adoção da cultura egípcia e a ocupação de um cargo na estrutura do Estado político imperial como critérios para um núbio ter um status similar ao de uma cidadania faraônica. Neste sentido, elementos nativos deveriam estar ansiosos para mostrar pertencimento ao poder dominante. Em suas palavras,
O processo de egipcianização e incorporação dos príncipes locais à estrutura imperialista faraônica tinha suas fundações na educação dos herdeiros núbios desde crianças na corte tebana, junto com os filhos da elite central do império no chamado kAp13. O sequestro de membros das classes dominantes estrangeiras e sua educação na corte faraônica era uma estratégia imperial corrente no Reino Novo, tanto ao sul de Elefantina, quanto ao norte, no Levante. O relato, por exemplo, da expedição de Tutmés II à Núbia, gravado entre Assuã e Philae, mostra isto:
Na XIXª Dinastia, Setau, o vice-rei de Ramsés II, declara ter sido trazido e educado no kAp. Os textos de duas estelas, uma de Wadi es-Sebua e a outra a Estela Cairo J. 41395, mostram trechos da biografia do “Filho Real”:
(...) [um servo] trazido por Sua Majestade para a Corte e aquele que cresceu na Casa Real14. (...) [Eu fui] um [servo] que Sua Majestade [mesma] instruiu no Salão das Duas Verdades, (como), sob a tutela do Palácio. Eu cresci na Casa Real, enquanto eu era novo. [Quando o] mensageiro estava sem palavras; (então) eu interpretei a ordem, fui provido com boas rações como escriba de todos cornudos (gado), [sem] negligenciar os livros na escola.(KITCHEN, 1993, p. 64)
A indicação de um membro da elite local para desempenhar uma função administrativa era um assunto delicado de responsabilidade do vice-rei, mas para o qual o faraó estava bastante atento, a julgar pela carta enviada por Amenhotep II ao seu “Filho Real de Kush”, Usersatet, registrada numa estela encontrada em Semna. No documento, o monarca mostra-se preocupado com a escolha dos chefes locais e suas artimanhas.
Na própria Núbia, os príncipes tinham papel central na vida cotidiana das cidades templárias, por exemplo, fazendo oferendas nos templos egípcios ou recrutando força de trabalho para os empreendimentos faraônicos.
Pode se apontar, assim, para um quadro mais complexo do que uma exploração imperial dicotômica dividindo o centro opressor egípcio e os oprimidos núbios. Sem deixar de envolver a exploração, o cenário possibilitava diferentes benefícios para egípcios e núbios, dependendo dos grupos sociais aos quais pertencessem.
Os egípcios investiram também na modificação das formas tradicionais de propriedade da Núbia e na substituição do padrão de exploração agrícola, mas sem alcançar a visão de Redford de que ali foram instaladas plantations com o confisco de terras para a Coroa, para os templos e para os funcionários de altos postos, com a introdução de colonos egípcios e o uso de força de trabalho compulsória de prisioneiros de guerra deportados para a Núbia ou de nativos reduzidos à servidão (REDFORD, 2004, p. 893-912).
A agricultura núbia foi de fato reorganizada, mas para assumir moldes egípcios baseados na doação de terras para que templos exercessem seu controle tributário, gerando uma produção agrícola mais sistemática. A realidade é que o império faraônico precisava desenvolver seu modelo de exploração baseado na redistribuição da produção agrícola local para garantir sua ocupação, manter seu controle sobre a região e, por conseguinte, o fluxo de bens de luxo. Para isto, exportou o padrão utilizado na “Terra Negra” para submeter a produção das comunidades aldeãs, usando os templos e os palácios para exercerem o papel central como extensões do poder estatal.
A modificação no padrão de exploração foi o motor de transformações na relação de propriedade, que refletem uma mudança na estrutura da sociedade núbia. As chefaturas locais abandonaram uma forma de posse mais próxima de lógicas comunitárias e familiares para dar lugar ao estabelecimento de uma superestrutura baseada na propriedade templária (TÖRÖK, 2009, p. 188) e, consequentemente, a uma maior hierarquização social e extração de sobretrabalho. Neste processo, foi fundamental a incorporação dos chefes locais nativos como correias de transmissão do poder estatal egípcio. Nas palavras de Adams, a Núbia passou de uma estratificação étnica à condição de uma sociedade de classes (ADASM, 1984, p. 59).
A utilização do mesmo padrão egípcio na administração da Núbia foi caraterizada desta maneira por Säve-Söderbergh:
Uma posição mais interessante neste debate é assumida, por exemplo, por Török, que aponta uma razão material para a expansão da fronteira egípcia até o máximo possível, identificando esta razão como a aquisição de produtos especiais essenciais à manutenção da estrutura econômica egípcia como um todo, o que é consideravelmente diferente da busca pela obtenção de lucro (TÖRÖK, 2009, p. 182). Diferentemente de associar a motivação econômica, a partir da realidade capitalista, à obtenção de lucro, o autor ressalta que a intenção era assegurar um fluxo contínuo de bens de prestígio, necessários à continuidade e coesão da classe dominante imperial e, portanto, da exploração da classe subalterna. Consequentemente, a expansão e a aquisição de bens de prestígio eram, neste sentido, elementos fundamentais para a manutenção da estruturação da produção, calcada na exploração do trabalho, e da circulação desigual de seus frutos.
Chegamos ao último ponto fundamental para a compreensão da ação imperial na Núbia: a reorganização das sociedades de chefaturas locais em sociedades estratificadas conforme as linhas egípcias. A melhor síntese neste sentido foi feita por Ellen Morris:
Em outras palavras, era imperativo disseminar pela Baixa Núbia o processo de expansão do Estado material faraônico, algo que já ocorria em âmbito interno e que acabou levando à utilização do mesmo modelo, baseado na doação de terras e no papel administrativo de instituições estatais como palácios e templos, coligados com a incorporação-cooptação de elites e a subsunção de dinâmicas sociais locais.
A necessidade de usufruir do fluxo de bens de prestígio garantido principalmente pelas minas auríferas e rotas comerciais, demandava uma estrutura de exploração de classe que não estava presente na sociedade relativamente igualitária das chefaturas núbias, que ainda contavam com formas de propriedade próximas das lógicas comunais e com uma baixa hierarquização social. A solução encontrada foi expandir o modelo da cidade templária, suas formas de propriedade e exploração do trabalho. Nas palavras de Smith:
O aumento da exploração e o processo dialético de crescimento da hierarquização social podem ser notados a partir da cultura material encontrada na necrópole dedicada a pessoas que não faziam parte da elite, em Fadrus.
Observando a evolução da aculturação neste sítio, podemos constatar que no período inicial, entre o princípio do Reino Novo e o final do reinado de Tutmés II, há um relativo equilíbrio entre os enterramentos classificados como de baixo, médio e alto status. No período imediatamente posterior, entre os reinados de Hatshepsut/Tutmés III e o início do governo de Amenhotep III, já há um enorme crescimento dos enterramentos de baixo status, seguido de um aumento menor nos de médio status e uma redução daqueles de alto status. Por fim, no último período, entre Amenhotep III e Horemheb, há o completo desaparecimento dos enterramentos de alto status (que passam a ser feitos em uma necrópole próxima), uma diminuição considerável nos enterramentos de baixo status e uma redução ainda maior naqueles referentes ao status médio (SÄVE-SÖDERBERGH e TROY, 1991, p. 247-251).
Considerando-se: 1) a mudança dos enterramentos da elite local para tumbas cavadas na rocha em estilo egípcio e, portanto, muito mais dispendiosas; 2) a diminuição dos enterramentos de médio status, tendendo ao seu desaparecimento; 3) o salto dos enterramentos de baixo status, que, mesmo após a diminuição do segundo para o terceiro período, ainda permaneceu com o dobro do número inicial, pode-se perceber um avanço da desigualdade social, com o crescimento dos grupos subalternos da população, a diminuição das camadas médias e a redução e enriquecimento das classes dominantes.
Conclusão
Em suma, o imperialismo egípcio voltou-se para a Núbia em busca da garantia de um fluxo constante e crescente de bens de prestígio destinados à manutenção da centralidade interna e das relações internacionais no império. A diferença entre Wawat e Kush parece residir no fato de que a estrutura da hierarquização social da primeira não facilitava a exploração do trabalho local. Desta maneira, foram necessários a instalação de uma administração egípcia e o agravamento do processo de hierarquização, além do estabelecimento de um Estado material entre os núbios do Grupo C, através da egipcianização e do emprego da elite local na estrutura do Estado político faraônico.
Entre a Terceira e Quarta Cataratas, em Kush (assim como nas regiões levantinas sob o domínio faraônico), a relação estatal já estava bem estabelecida, sendo, portanto, mais vantajoso para a classe dominante central do império manter a estrutura local com sua autonomia e conseguir os bens de prestígio necessários por meio das trocas.
No bojo deste processo, tanto a elite tradicional kushita quanto os altos funcionários emergentes de Wawat aproveitaram-se do contato com o centro imperial para aumentar o seu prestígio local e assentar as bases das relações que findariam por se desenvolver em um domínio independente de Tebas, quando o centro imperial se enfraqueceu.
A compreensão de que grupos núbios foram favorecidos pelo domínio imperialista egípcio ajuda a desmistificar uma visão herdeira de perspectivas tradicionais oitocentistas, que analisaram tais relações através da chave da superioridade civilizacional e racial, indicando a inferioridade dos povos entendidos como negros e nômades.
Resumo
Main Text
Breve contexto das relações entre Egito e Núbia na transição para o Reino Novo
A Arquitetura da Dominação Faraônica sobre a Núbia
Imperialismo e Expansão Estatal: Incorporação e Fortalecimento das Elites Nativas
Conclusão