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Wed, 30 Nov 2022 in Revista de História (São Paulo)
H.M.R.S. CRESCENT: NAVIO HOSPITAL E PRESIGANGA BRITÂNICA NO PORTO DO RIO DE JANEIRO, 1840-1854
Resumo
Do início de 1840 até 1854 o governo britânico instalou a embarcação H.M.R.S. Crescent no porto do Rio de Janeiro para receber os africanos libertados dos navios negreiros e as tripulações destas embarcações até o julgamento do caso pelo Tribunal da Comissão Mista. A intenção era que essa embarcação servisse, ao mesmo tempo, como alojamento, hospital e prisão. Por meio da documentação consular britânica sobre o tráfico de escravos, este artigo explora a importância desse navio no “esquema de imigração africana” para as colônias das Índias Ocidentais, os benefícios dessa estratégia para os africanos libertados, e o que ela significou para o abolicionismo britânico. Da mesma forma, também avalia como a presença do Crescent incomodou as autoridades nacionais, que viram nele uma violação da soberania brasileira. Por último, conclui que as autoridades britânicas, ainda que motivadas pelo interesse da transferência de trabalhadores para as Índias Ocidentais, estavam de fato preocupadas com o bem-estar dos africanos.
Main Text
Em 6 de abril de 1840, depois de 49 dias de viagem desde Portsmouth, chegou ao porto do Rio de Janeiro a embarcação britânica Her Majesty’s Receiving Ship Crescent.3 Há divergência nas fontes brasileiras quanto à sua classificação, pois ora foi considerado uma fragata, ora uma charrua.4 Já Thomas Nelson, um assistente de cirurgião que trabalhou a bordo deste navio nos primeiros anos em que ele esteve atracado no porto do Rio, o definiu como uma fragata. Também são escassos os dados sobre sua construção e equipamento. Sabe-se, no entanto, que foi lançado em 11 de dezembro de 1810 e esteve em atividade até 1854. Originalmente, era uma embarcação de 1.084 toneladas e possuía 38 canhões. Anterior à utilização do vapor na navegação, era propelido a vela e foi construído em madeira. Suas dimensões sugerem que se tratava de um navio de porte grande em comparação com os padrões das embarcações utilizadas no tráfico atlântico de escravos até meados do século XIX. Quando chegou ao Rio, o Crescent já havia passado por uma série de reformas, que pretendiam garantir mais espaço interno e eliminar seu caráter militar – tratava-se, na linguagem dos oficiais britânicos, de um legítimo hulk (um casco de navio). Já em águas brasileiras, aos poucos foram sendo acrescentadas divisórias, com o objetivo de criar compartimentos separados, adequados para receber homens e mulheres resgatados dos navios negreiros; da mesma forma, foram construídas celas seguras e isoladas, de modo a acondicionar os comandantes e as tripulações das embarcações negreiras capturadas, até que passassem pelo processo de adjudicação do Tribunal da Comissão Mista Anglo-brasileira, estabelecida no Rio deu Janeiro (NELSON, T., 1846, p. 43-44; ELTIS, 1987, p. 128).
Levando em consideração a época e os materiais utilizados em sua construção, o Crescent era uma embarcação já relativamente antiga; por assim dizer, em fim de carreira. Parecia ser mais um caso típico de envio de uma “banheira velha”, conforme reclamou certa vez o Secretário britânico das Relações Exteriores, Lorde Palmerston, do costume do Almirantado, que se livrava de seus velhos navios destinando-os ao Esquadrão de combate ao tráfico de escravos (ELTIS, 1987, p. 329).
Independentemente de sua idade e condições, a chegada do Crescent ao porto do Rio de Janeiro era aguardada com certa ansiedade pelos membros da Legação britânica e os oficiais navais, pois acreditavam que ajudaria a solucionar dois problemas: a detenção das tripulações dos navios negreiros e a necessidade de proporcionar condições adequadas para a recuperação dos africanos resgatados dessas embarcações. Portanto, na visão dos representantes diplomáticos e oficiais da Marinha, o Crescent desempenharia ao mesmo tempo o papel de prisão, hospital e alojamento. E ele atendeu relativamente bem a esses propósitos. Sua presença no porto do Rio, porém, gerou certa divergência com as autoridades brasileiras, que, em certo momento, viram o navio como uma invasão da soberania política do país.
Na verdade, a utilização de um navio para esse propósito não era inédita. Em 1837, a Marinha britânica já havia estacionado o H.M.S. Romney em Havana para acolher os africanos resgatados do tráfico. Contudo, a presença dessa embarcação nas águas cubanas causou enormes constrangimentos e problemas diplomáticos, que levaram os britânicos a abandonar a estratégia em 1845 (ELTIS, 1987, p. 198; NELSON, J., 2015, 2017).
No caso brasileiro, segundo levantamento da própria Legação britânica, a primeira menção à ideia de trazer um casco para o porto do Rio de Janeiro com o propósito de acondicionar os africanos resgatados ocorreu em 31 de dezembro de 1836, no Tribunal da Comissão Mista. O governo brasileiro recebeu a proposta em 18 de fevereiro de 1837.5
Portanto, a chegada do Crescent foi a materialização de uma ideia antiga, e sua instalação e permanência no porto do Rio de Janeiro não sofreu a mesma oposição vista em Havana. Esse navio permaneceu por praticamente 14 anos em águas brasileiras. Até meados de 1842, ele recebeu as tripulações escravistas que aguardavam os navios serem adjudicados. Até 1845, quando expirou o tratado bilateral entre Brasil e Inglaterra para o combate ao tráfico de escravos, ele também serviu para acondicionar os africanos resgatados dos navios negreiros. Depois de 1845, ainda serviu de abrigo para alguns africanos que conseguiram fugir das malhas da escravidão brasileira ou recebeu africanos resgatados de navios que não tinham condições de atravessar novamente o oceano para serem adjudicados nos tribunais do Vice-Almirantado no continente africano. Além disso, em todo o período em que esteve no porto do Rio, o Crescent foi utilizado como depósito e ponto de apoio para a esquadra britânica que vigiava a costa brasileira:
É com muita satisfação que posso informar a Vossa Senhoria que a utilidade e vantagem do H.M.R.S. Crescent não só foram completamente provadas, no que se refere aos objetivos particulares para os quais o governo de Sua Majestade teve o prazer de nomear este navio, mas também foi considerado de grande utilidade para o serviço de Sua Majestade em muitos pontos não expressamente previstos ou especificados.6
O Crescent é conhecido da historiografia especializada no tráfico de escravos e, particularmente, dos historiadores que lidam com os “africanos livres” (BETHELL, 1976, p. 275; MAMIGONIAN, 2010, p. 82; 2011, p. 76; 2017, p. 190, 199 e 269; NELSON, J., 2015, p. 105-139). Mas, em geral, é mencionado apenas como aquilo que realmente foi: um navio-hospital ou depósito, pelo qual os africanos passavam enquanto estavam doentes, precisavam de refúgio ou aguardavam pelo desfecho do processo de adjudicação. Não há nenhum trabalho, entretanto, que tenha sido dedicado exclusivamente a esse navio, que tenha acompanhado as transformações pelas quais passou, os grupos a que deu acolhida e as controvérsias que gerou. A história dos 14 anos desse navio no porto do Rio de Janeiro é, portanto, o objeto desse artigo.
Mas essa história revela mais do que episódios dramáticos de africanos em busca de liberdade ou de disputas sobre soberania política. A história do Crescent no Brasil, contada por meio da correspondência diplomática sobre o tráfico de escravos, tem o objetivo de ilustrar a forma como os britânicos trataram esses africanos que foram direcionados para suas colônias nas Índias Ocidentais. Ela também pretende contribuir para a compreensão das motivações do abolicionismo britânico, uma vez que escravistas e algumas autoridades brasileiras interpretavam as ações repressivas britânicas ao tráfico de escravos como meramente provenientes de interesses comerciais. Como se verá, havia uma clara preocupação em transferir os africanos alojados no Crescent para as colônias das Índias Ocidentais britânicas, de modo a minorar a carência de mão de obra advinda com o fim do trabalho escravo a partir da década de 1830 (ASIEGBU, 1969; MAMIGONIAN, 2011). Mas também se verá que havia nitidamente uma preocupação com a alimentação, a saúde e o bem-estar geral desses africanos, que, em alguns casos, foram incorporados – atendendo ao pedido dos próprios africanos – como marinheiros da Royal Navy ou até mesmo enviados para morar na Inglaterra. A Grã-Bretanha se preocupava em preservar seu “capital moral” e dar um caráter humanitário à sua campanha (BROWN, 2006; MARTINEZ, 2012).
A principal fonte das informações é a correspondência diplomática entre o Foreign Office (Ministério das Relações Exteriores britânico) e os representantes diplomáticos no Brasil sobre o tráfico de escravos, conhecida como F.O. 84, tombada no National Archives, em Kew, Inglaterra. Também foram consultados jornais brasileiros e o Anti-Slavery Reporter, periódico editado em Londres pela British and Foreign Anti-Slavery Society (BFASS). Outra fonte importante da época é o opúsculo de Thomas Nelson, já mencionado. O período estudado é bastante preciso, pois começa com a chegada do Crescent ao Brasil nos primeiros meses de 1840 e vai até os primeiros meses de 1854, quando ele é substituído por outra embarcação. Obviamente, foi necessário fazer algumas incursões em outros anos para contextualizar e explicar os motivos que tornaram necessário o envio desse navio para o porto do Rio de Janeiro.
O “esquema de imigração africana”7 para as Índias Ocidentais
Desde as primeiras décadas do século XIX, as autoridades britânicas direcionaram os africanos resgatados dos navios negreiros para suas forças navais e terrestres; em outros casos, essa mão de obra foi encaminhada para assentamentos controlados pelos britânicos no interior do próprio continente africano, como ocorreu particularmente com a Gâmbia. Também houve remessas ocasionais desses africanos para as Índias Ocidentais. Todavia, o contingente de pessoas envolvido nessas operações foi relativamente pequeno até 1840, pois as capturas de tumbeiros ainda eram modestas quando comparadas às décadas posteriores (BUCKLEY, 1979, p. 130; ANDERSON, 2013, p. 103-105 e 111-116).
Importa também ressaltar que a partir dos últimos anos da década de 1830, com o fim do aprendizado nas colônias das Índias Ocidentais e uma maior carência de mão de obra, houve uma mudança na abordagem da questão pelo Estado britânico, e os africanos resgatados dos navios negreiros passaram a ser vistos como potenciais trabalhadores em suas colônias (MAMIGONIAN, 2017, p. 165-208). A mudança na abordagem deu início à transferência sistemática dos carregamentos apreendidos e de alguns emancipados que, de uma forma ou de outra, foram resgatados pelos consulados britânicos em Cuba e, mais esporadicamente, no Brasil (MURRAY, 1980, p. 120; ADDERLEY, 1999). Portanto, entre o final dos anos 1830 e o início da década de 1840, aquilo que até então era uma prática esporádica e que, muitas vezes, visava a atender a necessidades específicas ou a conveniências de alocação dessas pessoas, passou a ser uma diretriz do Estado britânico.
Em geral, as autoridades britânicas utilizavam um termo específico para designar essas pessoas: disposal, ou seja, aquilo que está à disposição, disponível. No Brasil, o termo foi igualmente empregado pelas autoridades consulares britânicas para se referir àqueles que aguardavam sua transferência para as colônias das Índias Ocidentais (ASIEGBU, 1969, p. 48-63; SCHULER, 1980, p. 1-29; MAMIGONIAN, 2017).8
Desde as primeiras décadas do século XIX, a Grã-Bretanha estabelecera tratados bilaterais com os países importadores de escravos. Em geral, esses tratados previam a entrega dos africanos capturados dos tumbeiros às autoridades dos países para os quais eles originalmente se destinavam, onde estavam instaladas as sedes das comissões mistas. Esses africanos deveriam ficar sob a custódia desses governos, que zelariam por sua liberdade e estabeleceriam regras para sua incorporação social. Todavia, a prática não correspondeu à letra da lei. No Brasil e em Cuba, os dois principais importadores de escravos das Américas naquela época, os africanos livres passaram a ser distribuídos a particulares, que utilizavam todos os tipos de artimanhas para transformá-los efetivamente em escravos.9
Obviamente, os abolicionistas britânicos se rebelaram contra essa prática, que infringia não apenas preceitos morais, mas a própria letra do tratado com a Inglaterra. Essa foi, inclusive, uma estratégia para pressionar o governo britânico a tomar medidas especialmente contra Brasil e Cuba.10 Depois de ajudar a acabar com a escravidão nas Índias Ocidentais britânicas no final dos anos 1830, os abolicionistas britânicos decidiram internacionalizar seu movimento e atacar a escravidão em todo o mundo. David Turnbull, um abolicionista que passara alguns anos no Caribe e acabara de escrever um livro sobre o tráfico para Cuba, apresentou um plano para desestabilizar a propriedade escrava no Brasil e naquela colônia espanhola. Embora o plano tivesse outros pontos, o que importa para este artigo é que Turnbull defendia que a Grã-Bretanha fizesse valer a letra de seus tratados e pressionasse os governos brasileiro e espanhol para libertar efetivamente os africanos contrabandeados (TEMPERLEY, 1972, p. 173; MURRAY, 1980, p. 146; MAMIGONIAN, 2011, p. 74; 2017, p. 184).
Se tivesse sido apresentado em outra época e contexto, é bem provável que o plano de Turnbull tivesse sido considerado como mais uma das muitas excentricidades abolicionistas daquele período, mas dois outros elementos contribuíram para lhe emprestar certa credibilidade. O primeiro foi a criação da BFASS em 1839, e sua disposição de enviar no início de 1840 uma missão abolicionista secreta para o Brasil para investigar a extensão do sentimento abolicionista na sociedade brasileira e dar início a atividades antiescravistas. Os abolicionistas da BFASS estavam alarmados com o volume do tráfico brasileiro e com o destino dos africanos capturados pelos cruzadores britânicos. Além disso, eles inegavelmente estavam dispostos a encampar qualquer iniciativa pacífica para combater o tráfico e a escravidão, justificando desse modo a criação e manutenção de sua referida instituição (RÉ, 2016, p. 69-100).
O outro elemento que contribuiu para que o plano de Turnbull recebesse atenção oficial do Estado britânico foi a carência de mão de obra nas Índias Ocidentais, principalmente a partir do fim do aprendizado, em agosto de 1838. Os fazendeiros britânicos dessas colônias não conseguiam competir com o açúcar brasileiro e cubano, produzido com trabalho escravo, e pleiteavam que a metrópole criasse mecanismos para supri-los de mão de obra. Portanto, a transferência dos africanos libertados dos navios negreiros, tanto daqueles que foram capturados no lado americano quanto no lado africano do Atlântico, foi de certa forma uma estratégia para aliviar a carência de mão de obra nessas colônias (ASIEGBU, 1969, p. 48-60; MAMIGONIAN, 2017, p. 186).
Essa estratégia de transferir para as colônias britânicas das Índias Ocidentais os africanos capturados do tráfico transatlântico foi chamada pelos abolicionistas e autoridades britânicas de “esquema de imigração africana”. A primeira manifestação conhecida do Foreign Office para o ministro britânico no Rio de Janeiro transferir os africanos libertados ocorreu em 12 de março de 1841, quando William Gore Ouseley, então ministro britânico na Corte, recebeu a instrução de, após a emissão da sentença do Tribunal da Comissão Mista, “perguntar para cada negro separadamente se ele ou ela gostaria de ir para uma colônia britânica, explicando-lhes que a escravidão havia sido completamente abolida” nesses locais. Em 21 de maio do mesmo ano, Ouseley também avisou o ministro brasileiro dos Negócios Estrangeiros, Aureliano Coutinho, da nova diretriz britânica. Entretanto, as evidências indicam que essas tratativas diplomáticas britânicas já haviam se iniciado pelo menos um ano antes, pois em março de 1840 o mesmo ministro britânico no Rio de Janeiro sugerira ao Foreign Office que os africanos libertados do navio negreiro Flor de Loanda fossem transferidos para uma colônia das Índias Ocidentais. Em outra carta, de outubro de 1840, Ouseley também manifestou a Aureliano “que os negros deveriam ser assumidos pelo gov. de Sua Majestade em antecipação ao arranjo proposto em conformidade com as Instruções de Sua Senhoria algum tempo atrás”.11
Ainda que anos antes já houvesse sido aventada a hipótese de instalar um navio no Rio de Janeiro para acolher os africanos, a nova diretriz ajuda a compreender a importância do Crescent. Até 1840, os africanos capturados dos navios negreiros ficavam sob os cuidados da tripulação responsável por sua apreensão e, depois da adjudicação, eram entregues à custódia do governo brasileiro. Em geral, depois de terem a saúde restabelecida, esses africanos eram então repassados a particulares ou encaminhados para obras públicas. Com a nova diretriz britânica, era necessário manter esses africanos em algum lugar seguro e com instalações hospitalares, longe da terra firme, onde não pudessem ser sequestrados pelos traficantes, e de alguma forma pudessem ser mantidos afastados da soberania brasileira, já que os britânicos os tomavam sob sua responsabilidade. Também era preciso aguardar a adjudicação do navio negreiro e ter a certeza de que o Tribunal da Comissão Mista do Rio de Janeiro tinha competência para julgar o caso (o que não acontecia, por exemplo, com navios de bandeira portuguesa, que deveriam ser julgados por um tribunal do Vice-Almirantado, localizado na África). Uma vez decidido que o navio era boa presa – ou seja, que os cruzadores britânicos, de fato, capturaram um navio envolvido no tráfico ilegal de escravos e sobre o qual o tribunal possuía competência para julgá-lo – e emitida a condenação, os africanos poderiam ser transferidos para alguma colônia britânica. Todavia, esse “protocolo” nem sempre era seguido, e os africanos resgatados de alguns navios foram enviados para as colônias britânicas sem passar pelo Tribunal da Comissão Mista.
Esse arranjo, entretanto, precedeu a chegada do Crescent. Em março de 1840, Ouseley já escrevia ao Foreign Office solicitando autorização para pagamento da contratação e equipamento do casco Nova Piedade, “usado para a recepção dos negros, prisioneiros, doentes e outros que estão a bordo dos navios negreiros condenados e sob adjudicação”.12 A decisão das autoridades britânicas de trazer o Crescent para as águas brasileiras foi, portanto, tomada como uma resposta aos desafios de restabelecer a saúde dos africanos e de protegê-los das invectivas do governo brasileiro e dos traficantes de escravos; seguramente, também atendia ao propósito de ganhar tempo e espaço para o remanejamento desses futuros trabalhadores coloniais.
No campo simbólico, a presença do Crescent reafirmava o abolicionismo do Estado britânico e a disposição de combater o tráfico de escravos. Além disso, essa embarcação representava um enclave soberano britânico no principal porto escravista do Atlântico, em plena Corte brasileira. Seguramente, esse espaço de liberdade não passou despercebido aos escravos brasileiros ou aos africanos livres que tinham consciência de sua situação irregular. O Crescent foi, portanto, uma ponta de lança do imperialismo e das instituições britânicas e, ao mesmo tempo, um contraponto ao escravismo brasileiro, um equipamento ou um espaço ao qual os africanos livres ou mesmo escravos poderiam eventualmente tentar recorrer em busca de auxílio.
Os africanos que passaram pelo Crescent
Segundo Nelson, de 1840 a 1844, passaram pelo Crescent aproximadamente 3.000 africanos libertados, provenientes de oito navios capturados pelos cruzadores britânicos. Os navios mencionados por ele são: Paquete de Benguela, Asseiceira, Dois de Fevereiro, Anna, Nove Irmãos, Nome Desconhecido [provavelmente Antonio], Vencedora e Anna (NELSON, T., 1846, p. 34). Levando-se em consideração os demais casos (expostos mais adiante) mencionados na correspondência diplomática compulsada e o fato de que os navios capturados depois de 1845 eram, em geral, levados a julgamento no Tribunal do Vice-Almirantado na África (uma vez que o Tribunal da Comissão Mista do Rio de Janeiro havia deixado de existir em 1845), o número total de africanos que passou pelo Crescent deve ter girado em torno de 4.000.
Por exemplo, o Crescent recebeu em vários momentos africanos libertados do Flor de Loanda, navio negreiro capturado em 1838. O caso desse navio é bastante abordado pela historiografia e, por isso, apenas uma breve exposição servirá para esclarecer o episódio (BETHELL, 1976, p. 144-148; MAMIGONIAN, 2011, p. 79-82; RAMOS, 2016). Por uma série de motivos, os africanos desse navio foram distribuídos para ingleses residentes na Corte ou nas proximidades. A delegação britânica enviava relatórios pormenorizados sobre a saúde e as condições de cada um deles para o Foreign Office. Em 1846, com a expiração do período de sete anos daquilo que os representantes diplomáticos chamavam de aprendizado, período no qual os africanos deveriam trabalhar e se socializar, capacitando-os para viver em sociedade, a delegação britânica ofereceu passagem para as Índias Ocidentais a todos os africanos ainda vivos do Flor de Loanda. Embora a maior parte tenha decidido permanecer no Brasil, dos 107 sobreviventes, 35 deles aceitaram a oferta e foram encaminhados para o Crescent, onde aguardaram a embarcação que os transportou para Trinidad, em 20 de novembro de 1846. Mas, antes disso, outros africanos do Flor de Loanda também passaram pelo Crescent, como foi o caso, em 1843, de um casal e suas três crianças. Depois de certo tempo na embarcação e do atestado de boa saúde todos foram encaminhados para o Cabo da Boa Esperança.13
Outro caso é o dos escravos capturados do Piratinim, em 1851. Nesse episódio, embora não se tratasse de tráfico transatlântico, os ingleses tiveram conhecimento prévio de que uma carga de escravos seria transferida da Bahia para o Rio de Janeiro, e acionaram os cruzadores para interceptá-la. O Piratinim não tinha condições de navegar até Santa Helena, onde deveria ter seu caso analisado. Por isso, foi afundado e os escravos transferidos para o “depósito Crescent” (MAMIGONIAN, 2011, p. 83-90).14
Provavelmente, o último grande carregamento de africanos libertados levado para o Crescent se deu em outubro de 1849. No dia 15 daquele mês o H.M.S. Hydra, sob o comando de Grey Skipwith, resgatou 353 africanos de um navio pirata que havia naufragado a nordeste da província do Rio de Janeiro. A correspondência não informa o nome da respectiva embarcação. Sabe-se, no entanto, que todos os africanos foram encaminhados para o Crescent e, em 16 de dezembro, os sobreviventes foram enviados para a colônia de Demerara. Infelizmente, mais de 20 não conseguiram se recuperar dos horrores da travessia atlântica.15
Além dos africanos resgatados dos navios negreiros, também passaram pelo Crescent alguns africanos que haviam caído nas malhas da escravidão e lutavam para conquistar sua liberdade. Um deles foi John Eden, escravo que recebera a liberdade de seu senhor inglês, Arthur Moss, diante do cônsul britânico. Na condição de criado livre, Eden acompanhou seu antigo senhor à Inglaterra, onde permaneceu por um ano. Pelo visto, tratava-se do típico caso de um senhor que desejava ser acompanhado por seu escravo na viagem, mas como a Inglaterra não permitia escravos na metrópole, Moss resolveu emancipá-lo. Após seu regresso ao Brasil, decidiu vendê-lo ilegalmente para reaver seu capital, e o fez para uma pessoa de um distrito de mineração, que, por sua vez, o revendeu para outro inglês, o Sr. Platt, da casa do qual Eden saíra para solicitar auxílio da delegação britânica. Em seguida, Eden foi capturado e novamente revendido. Finalmente, conseguira fugir e pedir novamente socorro à delegação, que desta vez o encaminhou para o Crescent, onde passou a trabalhar como marinheiro.
Hamilton, o ministro britânico, explicou a situação para Aberdeen, Secretário das Relações Exteriores, informando que estava enviando Eden para morar na Inglaterra, já que ele havia expressado esse desejo. Vale ainda mencionar que Aberdeen não se opôs à solução de Hamilton. Apenas disse que, ao encaminhar o caso para os Advogados da Coroa, recebeu a informação de que o governo não tinha competência para processar o Sr. Moss, mas “ao mesmo tempo, [os advogados] declararam que Eden tinha justa causa na ação contra o Sr. Moss, e sugeriram a conveniência de conceder facilidades a Eden em qualquer processo que ele pudesse ser aconselhado a constituir contra essa pessoa”.16
Pelo Crescent também passaram trabalhadores africanos que prestavam serviços no próprio navio. Este foi o caso de André e Jacob, que, depois de mais de cinco anos atuando como “assistentes dos africanos livres”, solicitaram baixa do serviço para serem encaminhados às Índias Ocidentais junto com os africanos do Flor de Loanda. Embora a correspondência não esclareça os detalhes, aparentemente ambos eram africanos libertados do navio negreiro Antonio. Três anos mais tarde, outros três africanos que serviam no Crescent pediram baixa do serviço e solicitaram passagem para as Índias Ocidentais. Novamente, foram atendidos (MAMIGONIAN, 2010, p. 75-91).17
A utilização de africanos nos trabalhos do Crescent parece ter sido uma prática constante. A Marinha britânica já havia adotado o mesmo procedimento no caso do Romney, no porto de Havana. Lá, inclusive, a guarda do navio era composta de africanos armados, o que alarmou as autoridades da ilha e foi um dos motivos para a desativação do navio. No caso do navio ancorado no Rio de Janeiro não há indicativos de que os africanos que nele trabalhavam atuaram com armas, mas eles se mostraram indispensáveis, especialmente para a comunicação com os recém-libertados e sua ambientação. Além disso, a presença desses trabalhadores africanos significava uma menor necessidade de trabalhadores britânicos, tão suscetíveis às doenças tropicais.
Segurança, alimentação e saúde a bordo do Crescent
Obviamente, a própria natureza de um navio obriga que a quase totalidade dos suprimentos tenha que ser fornecida a partir da costa, e essa é uma atividade aparentemente trivial quando associada a uma embarcação comum. Mas não era assim no caso do Crescent. Esse navio, pelo menos em seus primeiros anos no porto do Rio, abrigava dois tipos de cargas com enorme potencial de gerar problemas ou até mesmo sérios distúrbios: as tripulações dos negreiros e os africanos resgatados. Por isso, o abastecimento e a segurança do Crescent sempre foram motivos de preocupação para os oficiais da Marinha e os representantes diplomáticos britânicos, que cobravam seus superiores para que o navio sempre contasse com um número adequado de sentinelas.
Já em 1841, Ouseley lembrava a Palmerston para recomendar ao Almirantado que atendesse às reivindicações dos próprios oficiais da Marinha britânica em serviço no Rio de Janeiro quanto à necessidade de manter um corpo de guardas sob o comando permanente de um oficial a bordo do Crescent:
Embora um pouco impreciso, o pedido de Ouseley indicava que eram necessários, no mínimo, 30 homens somente para a segurança da embarcação e dos africanos e demais pessoas que ali residiam.19 Na verdade, essa carta de Ouseley para Palmerston era uma satisfação à carta que o ministro no Rio recebera alguns dias antes de Donellan, o primeiro Comandante do Crescent, que lhe relatou algumas dificuldades:
Os africanos que trabalhavam a bordo do Crescent recebiam um subsídio menor do que os marinheiros britânicos. Donellan reclamou disso para a delegação e o ministro no Rio pediu que o Foreign Office sugerisse ao Almirantado que esses homens deveriam receber o subsídio completo. Logo depois, Aberdeen escreveu: “os negros em questão serão alimentados e pagos como compatriotas enquanto permanecerem a bordo do Crescent”.21
Meses depois daquele primeiro episódio, Ouseley voltou a alertar Palmerston sobre as dificuldades relativas à segurança no Crescent:
Nessa carta, Ouseley fez tais observações com a intenção de chamar a atenção do Foreign Office para a contratação de um fornecedor de suprimentos de confiança, pois os empregados dos fornecedores levavam e traziam recados dos traficantes na costa, subornavam as sentinelas e sequestravam os africanos, principalmente as crianças indefesas. Por isso, Ouseley tomou a iniciativa de sugerir que o fornecedor contratado para abastecer o Crescent fosse um inglês de bom caráter e confiável.
Além disso, o fornecedor teria que ter a capacidade de aumentar repentinamente o abastecimento do navio, pois de um dia para outro a chegada de centenas de africanos requereria um acréscimo expressivo de alimentação e outros itens. Ouseley, portanto, solicitava permissão para exercer “um poder discricionário” na escolha do fornecedor, pois “as autoridades brasileiras e particularmente a Comissão Mista aproveitariam de bom grado todas as oportunidades para frustrar o efetivo serviço agora prestado pelo Crescent”. Ouseley não queria nem que George Jackson, o juiz britânico da Comissão Mista, tivesse qualquer participação na elaboração e concessão do contrato para abastecimento do Crescent. O ministro britânico no Rio alertava ainda que “cabe ressaltar que a organização do Her Majesty’s Receiving Ship não deve ser encarada apenas do ponto de vista financeiro”.24
Com essas declarações, Ouseley parece ter sido a primeira autoridade britânica a demonstrar bastante consciência do papel representado pelo navio, tanto no que dizia respeito à sua importância para o “esquema de imigração africana” para as Índias Ocidentais, quanto para o abolicionismo britânico e também – não se pode deixar de reconhecer – para o bem-estar dos africanos resgatados.
Até então o abastecimento do Crescent estava sendo feito sob contratos temporários com Charles Tross, um comerciante britânico residente no Rio de Janeiro. A partir de 1842 é estabelecido um contrato mais longo, de dois anos. A proposta foi publicada no Jornal do Commercio, mas Tross foi o arrematante, oferecendo o serviço a 100$000 réis pela alimentação anual de cada africano ou a 170$000 réis pela alimentação por dois anos.25
Um dos contratos de abastecimento com Charles Tross, já em 1840, previa:
Em prestações de conta do abastecimento do Crescent, ainda sob a responsabilidade de Charles Tross, há a especificação dos itens entregues. Nelas constam garrafas de aguardente, caixas de sabão, galões de óleo fresco, cortes de algodão, chita, arroz, rapé, vasilhas, açúcar, chá preto e dezenas de outros itens de alimentação, limpeza ou necessários à conservação do navio. Anos depois, já no início da década de 1850, o comandante do Crescent, G. L. Bradley, escreveu para Hudson, então ministro britânico no Rio, solicitando o abastecimento de carnes e vegetais frescos três vezes por semana. O pedido foi prontamente atendido.27
Aparentemente, havia uma preocupação com a qualidade e quantidade da comida oferecida, bem como com a higiene, já que uma das intenções dos britânicos era justamente restabelecer a saúde debilitada daqueles que atravessaram o Atlântico para que pudessem seguir viagem até alguma colônia das Índias Ocidentais. Outra preocupação era com a qualidade da água, e, em 1845, houve ordem para substituição dos barris de armazenamento por recipientes de metal.28
Importante destacar ainda que o custo da manutenção dos africanos a bordo do Crescent durante o período em que aguardavam pela adjudicação do Tribunal da Comissão Mista era dividido entre o governo britânico e o brasileiro. Em geral, essa soma era coberta pela venda do navio condenado. Mas é importante também salientar que o governo brasileiro criava uma série de empecilhos, depois da adjudicação, para retardar ao máximo a venda dos navios, a transferência dos africanos ou a divisão do dinheiro arrecadado nos leilões das embarcações. Isso gerava elevados custos para os britânicos, que sempre reclamavam dos procedimentos do governo brasileiro.29
O restabelecimento da saúde dos africanos a bordo do Crescent era outro fator constante de preocupação dos britânicos, tanto assim que uma ala do navio foi transformada em hospital para atender os mais debilitados (GRADEN, 1996, 2014). Tross também era o fornecedor de remédios e produtos hospitalares. Em geral, sempre havia um ou vários médicos oficiais do esquadrão prestando assistência; quando eram insuficientes ou não estavam disponíveis ocorria a contratação ou a designação de um médico para trabalhar constantemente no navio. A delegação diplomática também manifestou preocupação em adquirir camas para acondicionar pacientes e pessoas em recuperação.30
Em 1843, entretanto, houve uma epidemia de oftalmia entre os africanos resgatados do negreiro Anna. Esse provavelmente foi o caso mais dramático de saúde vivenciado no Crescent, pois os recém-chegados também estavam em péssimas condições físicas em virtude da enorme privação de alimentos e água à qual foram submetidos durante a travessia atlântica.31 Uma descrição dessa situação apareceu no Anti-Slavery Reporter, o periódico da BFASS, de Londres. Trata-se da republicação de relato de 13 de setembro de 1843, escrito por um viajante do navio norte-americano St. Louis, que subiu a bordo do Crescent:
O governo britânico, nessa época, chegou a pagar mais de £ 1.425 para o abastecimento do Crescent e as despesas com a saúde dos africanos que vieram dos negreiros Anna e Vencedora. Robert Hesketh, o experiente cônsul britânico no Rio, estava pressionando para que as colônias que receberiam esses africanos ajudassem a arcar com os custos de sua manutenção.33
Outra séria doença que afetou os africanos a bordo do Crescent foi a diarreia, tão comum nas expedições escravistas. Em 1842, o então comandante Donellan alertou Hamilton de que dos 410 africanos embarcados no negreiro Nove Irmãos no início da viagem, havia apenas 279 no momento da captura. O que indicava que já estavam sofrendo com a doença na travessia atlântica. E a diarreia continuou dizimando vários africanos deste carregamento mesmo depois de serem alocados no Crescent. Donellan ainda expressava preocupação, pois não havia navios mercantes naquele momento para transferir os africanos saudáveis para as colônias britânicas das Índias Ocidentais, e isso poderia elevar a mortalidade.34
Em geral, na questão da saúde, as autoridades britânicas manifestaram satisfação com os benefícios trazidos pela presença do Crescent no porto do Rio. Isso foi expresso em várias ocasiões, mas uma merece citação:
Embora a maior parte dos africanos fosse transferida para as colônias de Demerara ou Trinidad tão logo tivessem a saúde restabelecida, alguns permaneceram no Crescent por longo período. Por exemplo, em dezembro de 1846, Hudson informou a Palmerston que sete africanos cegos, resgatados do carregamento do Anna no final de 1843, ainda estavam a bordo da embarcação. No ano seguinte, Palmerston respondeu que todos os africanos cegos a bordo do Crescent e os que surgissem posteriormente deveriam ser enviados para Demerara para serem tratados no hospital, ou então serem colocados sob os cuidados do coletor de impostos da alfândega daquela colônia, de acordo com a natureza de seus respectivos casos. Em setembro de 1849, portanto seis anos após sua chegada ao Crescent, os sete africanos cegos foram encaminhados para Demerara. Entre os cegos havia uma mulher, cujo marido era ajudante no navio e pediu baixa para acompanhá-la. Seu pedido foi atendido. Junto com esses africanos, seguiram as instruções detalhadas do ministro James Hudson e do cônsul Robert Hesketh sobre a forma como o governo de Demerara deveria tratar esses africanos.36
Os britânicos também tinham a preocupação de imunizar rapidamente com vacinas o maior número de africanos, mas isso nem sempre era possível, pois faltavam as doses necessárias, tanto no estoque da esquadra quanto na cidade do Rio de Janeiro.37
A questão sanitária e epidemiológica era um assunto que não afetava apenas os africanos. Os britânicos também foram severamente castigados pelas doenças tropicais e as patologias que dizimavam os africanos. Em 1844, o elogiado comandante do Crescent, tenente Malachi Donellan, depois de quatro anos de serviços, precisou retornar imediatamente à Inglaterra para “salvar sua vida”. Hamilton expressou sua estima pelo comandante ao enviar um relatório ao Foreign Office exaltando sua dedicação e solicitando que esse documento chegasse às mãos do Almirantado. Aberdeen acatou sua sugestão.38
Dois anos depois, Hamilton informou a Aberdeen que o Dr. Gunn, médico do Crescent, também estava retornando à Inglaterra para cuidar de sua saúde. O ministro também elogiou a dedicação do médico e sugeriu que Aberdeen lhe entrevistasse para conhecer a real condição de cegueira dos escravos capturados do Anna.39
Mas o Crescent não foi um ambiente apenas de sofrimentos. Em 1846, Hudson escreveu para informar Palmerston de que o ex-ministro, Hamilton Hamilton, que acabara de retornar para a Inglaterra, soube do nascimento de uma criança a bordo do Crescent, e levou um capelão para perguntar aos pais dessa criança se desejavam se casar. Os pais da criança assentiram no casamento e mais um casal também quis se unir religiosamente. Os filhos de ambos os casais foram batizados. A carta ainda informava que nos últimos dois anos haviam nascido três crianças a bordo do navio.40 Talvez aqui seja importante uma observação pontual. Tanto a iniciativa dos agentes consulares britânicos em formalizar os casamentos, quanto a dos africanos em aceitar tais formalidades, seguramente atendiam a estratégias distintas com vistas a atingir mais facilmente interesses muitas vezes não confessados. Qualquer formulação mais detalhada requereria comprovação empírica, mas isso não pode ser fornecido pelas fontes consultadas.
O Crescent e a soberania brasileira
Em 1841, Agostinho Fernandes Castanho de Vasconcellos e a tripulação do brigue brasileiro Convenção, capturado por suspeita de participação no tráfico de escravos, foram aprisionados a bordo do Crescent. Agostinho escreveu a Aureliano de Souza Coutinho, então ministro brasileiro dos Negócios Estrangeiros, e este entrou em contato com Hamilton, então ministro britânico no Rio, encaminhando-lhe a petição dos defensores de Agostinho:
Na carta, Aureliano ainda solicitava que Hamilton lhe ministrasse os “necessários esclarecimentos” sobre o que estava acontecendo. Três dias depois, Hamilton respondeu à carta de Aureliano dizendo que Agostinho, chefe da tripulação do brigue apreendido, permaneceria “como de costume” a bordo do Crescent durante a adjudicação.42
Numa longa carta de 38 páginas, Aureliano respondeu de forma furiosa e erudita à missiva do ministro britânico:
Ainda segundo Aureliano, pela comunicação do Sr. Ouseley, de 20 de março de 1841, se depreendia que o Crescent “se destinava a servir de hospital; e foi a isto que o governo Imperial anuiu”. Em seguida, Aureliano lançou nova invectiva: “uma prisão flutuante revestida do caráter de presiganga, com bandeira inglesa, nas águas da capital do Império é certamente um fenômeno difícil de acreditar-se e que deveria ter merecido uma ampla justificação antes de ser tentada por aqueles que a empregaram”.44 Depois dessas explanações mais gerais, o ministro brasileiro sacou argumentos jurídicos para censurar Hamilton:
Segundo Aureliano, as Comissões Mistas eram, na verdade, uma exceção a essa regra geral, e justamente por isso tinham limites. E um desses limites era sua competência puramente civil, ou seja, cabia-lhe pronunciar sobre o julgamento da coisa e jamais das pessoas – a ironia aqui, à qual coube a Aureliano contornar, está no fato de que, obviamente, a Comissão Mista podia se pronunciar sobre os africanos resgatados, que, “juridicamente falando”, conforme sublinhou o ministro brasileiro, eram considerados como coisas enquanto não eram emancipados. A seguir, Aureliano elencou vários outros motivos jurídicos que impediam a manutenção dos súditos brasileiros num cárcere administrado pelos ingleses. Além dos motivos jurídicos, o ministro brasileiro reafirmou mais uma vez os pontos relativos à dignidade nacional que estavam sendo aviltados por essa medida tomada contra os súditos do Império.46
Diante do teor e da fundamentação das críticas de Aureliano, era impossível Hamilton lhe dar uma resposta satisfatória no campo do Direito. Por isso, a alternativa foi tergiversar, e reconhecer que “subsequente à chegada do Crescent não parece ter se dado nenhuma comunicação entre a legação de Sua Majestade e o governo brasileiro em que se fizesse qualquer menção precisa sobre os serviços ao qual ele estava destinado”. Em seguida, Hamilton passou a lembrar que em casos anteriores de detenção de navios envolvidos no tráfico, o casco Nova Piedade foi utilizado para acondicionar tanto os africanos quanto as tripulações negreiras; em outros casos, os súditos brasileiros ficaram detidos dentro dos próprios navios apreendidos ou no navio de guerra britânico que foi responsável pela captura até a emissão da sentença pelo Tribunal da Comissão Mista. Hamilton lembrou ainda correspondências de Aureliano e outros ministros anteriores demonstrando conhecimento de que as tripulações capturadas estavam sob a custódia dos ingleses enquanto aguardavam o desfecho de seus casos. Vale mencionar que, mais ou menos nessa mesma época, a Comissão Mista entrava num impasse e não julgaria mais nenhum navio até sua expiração em 1845 (MAMIGONIAN, 2017, p. 186-193).47
O imbróglio ainda teve continuidade por mais alguns meses. Em agosto de 1842, Aureliano enviou nova correspondência a Hamilton defendendo que os súditos brasileiros não poderiam ser aprisionados no navio. Em outubro do mesmo ano, o ministro britânico informou que recebeu ordens de seu governo para cessar a prática de deter brasileiros no Crescent; dizia ainda que o “governo de Sua Majestade tinha firme esperança de que o governo do Brasil adotasse medidas eficientes para manter em custódia segura as pessoas das tripulações dos navios brasileiros envolvidas no tráfico de escravos”, ou seja, a linguagem diplomática não escancarava a devolução dos prisioneiros, mas foi isso o que aconteceu. Aparentemente, o assunto teve poucos desdobramentos posteriores.48
Conclusão
A historiografia já apontou que, para combater o tráfico de escravos, o Estado britânico adotou medidas contrárias à ordem internacional e aos princípios jurídicos que a própria Grã-Bretanha vinha se esforçando para estabelecer e difundir. Em vários casos, essas transgressões eram inclusive incentivadas pelos abolicionistas britânicos. Igualmente, também já foi apontado que o abolicionismo serviu como ponta de lança do imperialismo britânico (ELTIS, 1987; PAQUETTE, 1988, p. 184; PETERSON, 2010; HEARTFIELD, 2016, p. 1).
Por um lado, o caso do Crescent se inseria claramente na tentativa britânica de estender sua influência no Atlântico por meio do abolicionismo, ainda que paradoxalmente ele também contrariasse alguns princípios caros ao modelo civilizacional que a Grã-Bretanha se esforçava para difundir. O governo brasileiro (ainda que não necessariamente movido pelas melhores intenções) apontou essa contradição ao indicar como a prisão de súditos brasileiros por uma potência estrangeira no Brasil estava em desacordo com os princípios mais elementares do Direito Internacional.
Resolvida essa questão, até 1854, quando foi substituído pelo Madagascar, o Crescent parece não ter sido motivo de sérias discórdias entre os dois governos. Mesmo a imprensa da época, cuja boa parte era simpática ao tráfico de escravos, mencionou o Crescent poucas vezes e, quando o fez, teve a intenção apenas de informar a transferência de africanos capturados dos navios negreiros e a substituição do comando da embarcação. Num caso específico, o Crescent foi até saudado por ter socorrido botes que haviam se perdido em virtude de uma tempestade. Isso é um forte indício de que a presença deste navio no porto do Rio não gerou controvérsias semelhantes às enfrentadas pelo Romney no Porto de Havana.49
Se, por um lado, o Crescent serviu como afirmação do abolicionismo britânico, como percebeu precocemente o então ministro William Gore Ouseley, conforme apontado anteriormente, e inegavelmente foi um elo primordial para a transferência dos africanos libertados para as colônias britânicas das Índias Ocidentais, por outro lado também é preciso reconhecer que a ideia de implantação de um navio hospital precedeu em vários anos o início do “esquema de imigração africana”. Isto permite afirmar que já em meados dos anos 1830 havia, de fato, uma verdadeira preocupação dos britânicos com o bem-estar dos africanos libertados e também com o bom andamento das operações de captura e restabelecimento da saúde desses africanos.
Obviamente, os fazendeiros britânicos das Índias Ocidentais tinham interesse em receber trabalhadores saudáveis, fato que poderia justificar os esforços britânicos para restabelecer a saúde dos africanos. Mas considerar que todos os esforços diplomáticos e militares britânicos nesse caso tiveram o interesse exclusivo de fornecer trabalhadores saudáveis para os fazendeiros britânicos do Caribe parece não fazer justiça àqueles que muitas vezes colocaram a própria vida em risco para ajudar os africanos. Além disso, vários episódios supramencionados indicam que havia uma verdadeira preocupação com a sorte dos resgatados. Os cuidados com a preparação das acomodações, alimentação, não separação das famílias, batizados e casamentos a bordo do Crescent indicam que o tratamento dispensado a esses homens, mulheres e crianças envolveu mais do que um cálculo frio sobre arregimentação de mão de obra barata. E isso talvez possa ser melhor ilustrado pela preocupação de Aberdeen de ordenar que os trabalhadores africanos do Crescent deveriam ser tratados como “compatriotas” e ter os mesmos benefícios que os britânicos; ou a ordem de Palmerston para encaminhar os africanos cegos para serem tratados no hospital de Demerara.
Na avaliação do historiador David Murray, o Romney foi um “símbolo vívido da futilidade dos esforços britânicos para acabar com o tráfico de escravos para Cuba”, mas ponderou que “os efeitos simbólicos variavam de acordo com o observador” (MURRAY, 1980, p. 127). No Brasil, justamente pelo fato da presença do Crescent não ter levantado grandes controvérsias em comparação com Cuba, seu simbolismo parece ter sido bastante efêmero. Vale a pena lembrar que a principal entidade antiescravista britânica do período, a British and Foreign Anti-Slavery Society, fundada um ano antes da chegada do navio ao Rio de Janeiro, fez apenas três menções ao Crescent em seu periódico, o Anti-Slavery Reporter, durante os 14 anos em que ele esteve estacionado na baía de Guanabara. E mesmo essas menções não permitem que o leitor saiba precisamente quais eram as funções e os propósitos do navio. Da mesma forma, as poucas menções historiográficas sobre o Crescent indicam que os historiadores podem não ter se dado conta de sua importância ideológica ou simbólica na difusão do sentimento antiescravista na sociedade brasileira. Seja como for, o artigo não tem o propósito de explicar a pouca atenção historiográfica dada ao Crescent, mas de ajudar a despertar essa atenção.
Deste modo, parece ser justo concluir que os maiores beneficiários da presença do Crescent nas águas brasileiras foram, de fato, os africanos resgatados dos navios negreiros, que passaram a contar com uma efetiva proteção contra a escravização e cuidados para aliviar os sofrimentos e doenças ocasionados pela travessia atlântica.
Resumo
Main Text
O “esquema de imigração africana”7 para as Índias Ocidentais
Os africanos que passaram pelo Crescent
Segurança, alimentação e saúde a bordo do Crescent
O Crescent e a soberania brasileira
Conclusão
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