Volume 1
Edição nº 11
2011
Seção:
EM PAUTA
Artigo 3
Lilian F. Vilela
Este texto aborda um recorte histórico dentro da vida artística de uma bailarina brasileira[1], Denise Stutz e com ela, as aproximações de estudos da dança com o campo teatral e suas diferentes abordagens.
Denise Stutz, artista mineira, radicada no Rio de Janeiro, sempre quis ser bailarina. A dança foi sua forma de expressão cênica e nela, atuou profissionalmente em sua cidade de origem, Belo Horizonte, em momentos significativos da dança nacional.
Denise Stutz dançou no grupo Corpo, em seus espetáculos iniciais como Maria, Maria e O último trem, fez parte do grupo Trans-Forma, um marco da dança experimental contemporânea em Minas Gerais, e já no Rio de Janeiro, foi uma das bailarinas fundadoras e permaneceu durante 10 anos integrando a Lia Rodrigues Cia. de danças.
Para quem tem familiaridade com o campo da dança cênica, as companhias e seus trabalhos artísticos, referenciados acima, se constituem em obras marcantes da história e afirmação da dança cênica contemporânea no Brasil.
Depois de muitos anos atuando profissionalmente na dança, desde 1976, e mesmo desejando permanecer atuando em cena, esta artista começa a se relacionar com fazeres e práticas corpóreas do campo teatral.
Estas buscas podem trazer reflexões sobre as aproximações entre dança e teatro, e também sobre as fronteiras de estudos inter faceando a preparação corporal de atores e a representação cênica na dança.
O período desta aproximação com o campo teatral deu-se no final da década de 1990 e início da virada secular.
Denise Stutz despedia-se de 10 anos como intérprete-criadora da Lia Rodrigues de Danças, e conhece a Grande Companhia Brasileira de Mystérios e Novidades, de teatro de rua, sob a direção de Lígia Veiga.
Denise Stutz/Companhia Brasileira de Mystérios e Novidades
Junto à vivência de teatro de rua, a bailarina Denise Stutz aprendeu a andar de perna de pau, a cantar e a tocar percussão com a companhia. Para ela, um momento de descontração e contato próximo e festivo com o público, sem restrições e distanciamentos.
Ao mesmo tempo, mergulhou em estudos teatrais fundamentados em Stanislavski, fazendo aulas de teatro com Celina Sodré, no Studio Stanislavski, local de novos encontros para a sua busca enquanto artista.
Resultado desde encontro com Celina Sodré, em 2001, Denise estreou um solo teatral, Ispirituincarnadu, inspirado em Guimarães Rosa, produzido pelo Studio Stanislavskicom o Prêmio Pró Cena do governo do Estado do Rio de Janeiro.
Para esta artista foi “estar em outro lugar” da cena: em um solo, vendada, emitindo sons gruturais, em um trabalho de fisicalidade distinta das proposições de dança, em diversos momentos, sentada e ora, amarrada.
Denise Stutz é uma artista que entende a vida e a arte pelo corpo, em busca de contatos diferenciados dos proporcionados pela dança, ela experimenta em seu corpo, potencialidades cênicas que não estavam presentes no campo da dança contemporânea, a da vivência de rua e do trabalho teatral com investigação de narrativa não-aristolélica e do ator como performer, a partir do método das ações físicas de Stanislavski.
Denise Stutz/ IspirituIncarnadu
As ações físicas, tratadas com esta denominação no campo teatral, são diferentes da denominação de ações corporais e dos gestos, conceitualmente tratadas por Laban e estudadas na dança, apesar das aproximações à importância dada por ambos os teóricos, Stanislavski e Laban, aos impulsos geradores do movimento (MEYER: 2006).
Os grandes teóricos dos estudos teatrais e de dança - respectivamente Stanislavski e Grotowski, no teatro, e Laban, na dança - não contracenam em discussões teóricas e nos mostram a insuficiência dos intercâmbios teóricos entre estes campos irmãos da cena contemporânea. Para o trânsito entre estes estudos, artistas saem e entram em campos de domínio do teatro e da dança, como fez Denise Stutz, ao sair da dança para estudar Stanislavski e Grotowski, no teatro. Os campos do teatro e da dança, das artes cênicas, do espetáculo vivo, possuem aproximações e, às vezes, distâncias, por práticas comuns, espaços de atuação similares e campos de estudo paralelos.
Para Denise, entrar no meio teatral e estudar Stanislavski e Grotowski, bem como, participar de treinamento de teatro de rua, e dos treinamentos do ator propostos pelo LUME[2], foi de certa forma, um afastar da dança. Apesar de vizinhos artisticamente, a aproximação de Denise com o teatro aparentou um momento de rompimento com a dança[3], com novas descobertas sobre seu corpo em cena.
Comecei a fazer trabalhos e treinamentos fora da dança. Fiz butoh, máscara, treinamento energético com a busca de estar em outros lugares, buscar outro corpo, buscar o corpo em novos lugares. Eu tenho que entender no meu corpo. As questões vêm no meu corpo. Não tenho inteligência de fora, tenho intuição. Se eu não viver no meu corpo, eu não entendo. Tenho que estar praticando, eu sou do fazer e tenho muito prazer em fazer. Não me dá preguiça, ao contrário, eu enlouqueço se eu não estiver praticando.(Denise Stutz, depoimento oral, 28/08/2008)
Denise, com o desejo de estar em movimento, fez incursões em outros treinamentos e práticas corporais. Em alguns casos, as práticas entraram em contradição. É o corpo contemporâneo turvo e inquieto, que nos escreve Louppe (2007, 64). Sem fazer, enlouquece, ao fazer, inquieta-se.
Em 2002, no Festival Panorama de dança do Rio de Janeiro, Denise, envolvida com o teatro, foi convidada a participar de uma oficina com proposições do artista da dança alemão Thomas Lehmen, membro da geração conceitual da dança européia dos anos 1990. A oficina era destinada a criadores e propunha questionamentos a estes tais como: Por que você dança? Para quem você dança? Qual o sentido da sua dança?
Denise Stutz / solo DeCor
Apesar de não se considerar criadora, Denise aceitou o convite e participou da residência artística Dialogue[4]. Osquestionamentos político-estéticos propostos durante o projeto geraram turbulência no espírito artístico da bailarina, que os respondeu com uma nova atitude experiencial em sua vida, a de trabalhar sozinha e revisitar sua história de dança no corpo.
Assim, como resposta às provocações feitas no Dialogue, surgiu o seu primeiro solo de dança: DeCor (2003). Decor, De cor, Du coeur, De coração, Decorado. Neste trabalho, a artista ativa sua fisicalidade acessando aquilo que ficou decorado em sua história artística: as lições aprendidas decor instaladas no corpo, as danças de Martha Graham, as sequências coreográficas vividas, os modos de fazer dança no Corpo, com Lia Rodrigues, os treinamentos corporais impressos como inscrições em seu corpo.
Como marcas e mapas, ela mergulhou em si pelas inscrições de sua dança vivida e em suas memórias – ali atualizadas no presente – e as partilhou em cumplicidade com o público, trazendo para sua história uma nova dança pessoal.
Em Decor, ela sobrepôs formas de “se lembrar” no corpo, evidenciando hábitos, memórias e inscrições instaladas no corpo, portanto decorados e, sobre os quais ela se debruça para poder registrar o que faz dela, ela mesma.
A busca do outro lugar no corpo, do personagem que é, em muitos momentos da arte, o mesmo ser, porém revisitado.
A criação artística não se constrói do nada, a criação pressupõe a realidade do conhecimento que a liberdade do artista transfigura e formaliza. “Tudo é construído sobre o anterior.” (Ernesto Sábato em entrevista apud SALLES, 2004, 88).
Denise Stutz/ solo DeCor
O anterior de Denise são suas memórias, suas histórias inscritas no corpo. A elaboração destes elementos no processo criador se dá em transformação ou combinação inusitada, por vezes, imperceptível aos olhos do espectador, porém, de alguma forma, lá.
O ato criador manipula a vida em uma permanente transformação poética para a construção da obra. A originalidade da construção encontra-se na unicidade da transformação: as combinações singulares. Os elementos existiam, a inovação está no modo como são colocados juntos (SALLES, 2004, 89).
O processo criador é feito de acúmulos e eliminações, aparições e desconstruções. Denise, em sua sensibilidade poética, une, faz fundir experiências díspares em uma unidade, o processo criador de DeCor teve como ação transformadora atar um elemento vivido a outro aparentemente disperso, mas contido na mesma matéria que dança: seu corpo.
Ao investigar em imersão sua experiência de vida dançada, Denise (re) contextualiza sua história e suas memórias instaladas na fisicalidade. O que foi aprendido decor em suas lições de dança são (re) vividas no presente e “criam no corpo disposições novas para agir” (BERGSON, 1999, 63) sobre aquilo que permanece no corpo se estendendo do passado a um momento presente.
As memórias inscritas e as “esquecidas-latentes” que podem ser evocadas - e também os esquecimentos - habitam e convivem em um só espaço, o corpo. A mistura destas memórias junto à imaginação do que tenha sido faz este material vivido uma potência de investigação de si mesma. Neste caso, a sua memória trabalhada no solo Decor atuou como uma “preservação de si mesmo” (IZQUIERDO, 2002) e marcou seu retorno ao corpo dançante.
Este retorno foi provocado por uma residência artística, um contato corpo a corpo com outros criadores. Denise referencia esta residência a uma análise lacaniana. E é justamente o psicólogo Lacan que traz a ideia de que a identidade não é algo unificado, mas algo que se forma pelo olhar do outro. Uma identidade em dança instigada pelo olhar do outro e também compartilhada, pois não se trata de uma instância absolutamente pessoal (GREINER, 2007).
No solo DeCor, Denise traz à luz da cena, a história do seu corpo no fazer cênico e da sociedade, e faz, sobretudo, um manifesto sobre o artista da dança e sobre suas possibilidades de fazer dança com consciência crítica. É um solo recheado de narrações fragmentadas e depoimentos sobre si mesma, contudo, estes dados autorreferentes são um pretexto para sua criação, afinal um espetáculo de dança é arte, e não realidade, mesmo quando a retrata (ALBANO, 1998, 155).
Depois do contato com a criação solo, sem pertencer a companhias estáveis de dança e ampliando suas experiências cênicas, Denise participou de um grupo de treinamento e improvisação cênica baseada nos conceitos do Viewpoints e do Método Suzuki orientado por Enrique Diaz, diretor da Companhia dos Atores, no Rio de Janeiro.
Enrique Diaz e sua companheira Mariana Lima estavam chegando de um estágio em Nova York na SITI Company, companhia americana dirigida por Anne Bogart, e pretendiam continuar os estudos de cena e da improvisação. Com isto, propuseram um grupo de estudos, depois denominado Coletivo Improviso, com artistas multidisciplinares e carreiras independentes que se reuniam periodicamente para trocar experiências e possibilidades cênicas a partir do improviso.
/O Coletivo Improviso apresentou sua primeira performance na Fundição Progresso - Cinelândia, como parte da programação do Festival Riocenacontemporânea, em 2002. Esta primeira apresentação já demonstrava que o treinamento desenvolvido pelo coletivo seria o suporte das apresentações performáticas criadas de modo colaborativo pelos integrantes e que estes artistas multidisciplinares travariam diálogo entre suas carreiras independentes e o coletivo, trazendo como vínculo a vontade de aprofundar o conhecimento artístico em uma forma de intercâmbio de experiências no ato cênico.
“Com o coletivo Improviso aprendi outra forma de improvisação, diferente do que fazíamos na dança. Era outra improvisação, outra maneira, não só usando o corpo, explorando as possibilidades do movimento do corpo. Era um improviso que trabalhava arquitetura, texto.”(Denise Stutz, depoimento oral, 30/09/2009)
Não Olhe Agora
Em 2004, o coletivo improviso apresentou a peça Não Olhe agora no Festival Riocenacontemporânea, e viajou por diversos festivais de teatro no Brasil e exterior.
Segundo o diretor Enrique Diaz[5], o Coletivo Improviso propõe uma abertura e ampliação da concepção teatral, da representação no teatro formal preso aos moldes e padrões do séc. XIX. O processo colaborativo adotado pelo Coletivo Improviso se distingue da criação coletiva dos anos 1960 e 1970, que tem uma ideologia próxima ou vizinha ao anarquismo (FISCHER, 2003). A criação coletiva destes anos anteriores era uma manifestação de formas anárquicas de organização e de negação da autoridade cerceadora, que fazia sentido como forma libertária de criação pelo regime militar em vigor[6].
O teatro de criação coletiva tinha como resultado uma autoria partilhada com contribuições de todos os integrantes de um núcleo. “A suposta hierarquia teatral é apaziguada ao propor a descentralização autoral e ruptura da liderança impositiva” (FISCHER, 2003,14). Segundo Fischer (2003), a criação coletiva acabava com a presença de alguém no grupo como “chefe”, com dominação sob os demais.
O processo colaborativo das companhias teatrais atuais pressupõe o avanço do conceito democrático do coletivo, no qual há uma participação essencial e íntegra de todos, sem abolir a delegação de responsáveis pela coordenação de determinados setores.
Com estas alterações, a função do artista intérprete sofreu uma mudança de eixo. Com a modificação das condições de criação, ele deixa de ser um especialista da arte de interpretar assumindo outros papéis na cena, na construção do texto, na concepção musical e estética geral da peça.
No processo de criação colaborativa, o artista da dança também assume e diversifica seus papéis não sendo apenas um especialista-executor de sequências coreográficas. Ele cria, compõe, indaga procedimentos, organiza marcações, usa sua voz e sua história cenicamente e, às vezes, executa cenários e figurinos, ampliando sua atuação artística e, por vezes, sua responsabilidade perante o grupo.
Na criação coletiva e no processo colaborativo, o papel do artista, do bailarino, é diferenciado de uma posição que permite seu potencial criador para outro de co-responsabilidade na criação, ampliando suas funções e potencializando suas especificidades na produção cênica. Na estruturação de um trabalho artístico coletivo, a ética, as formas de organização, a repartição de tarefas e funções são diferenciadas da visão convencional de dança.
O Coletivo Improviso permanece atuante até os dias de hoje e Denise Stutz ainda se integra ao grupo de formação artística variada, atualizando suas questões na partilha da criação colaborativa entre seus pares.
Em 2010, o Coletivo Improviso estreou Otro, uma obra que transita entre diversas vertentes artísticas e com narrativa de intensidade física, fazendo muitas vezes transparecer a dramaturgia por meio da movimentação dos corpos em cena, ou como diz o diretor Enrique Diaz “os corpos dos bailarinos parecem fundar um lugar que oscila entre a atuação, o movimento, a memória e o não dito”. (In MELLÃO, 2011)
Denise Stutz, ali se encontra, neste espaço multifacetado de formações variadas, fazendo valer que a especialização do artista cênico na contemporaneidade pode ser conquistada pela ampliação de fontes referenciais do corpo, de contato com as múltiplas técnicas e dos estudos de interfaces entre o teatro e a dança.
Ana Maria Rodriguez Costas Artista da dança, educadora somática, Socióloga (FFLCH/USP), mestre em Artes (IA/UNICAMP) e doutora em Educação (FE/UNICAMP). É professora titular do Curso de Dança da Universidade Anhembi Morumbi. Presta consultorias a projetos de formação profissional e educação continuada para artistas e professores de dança.
Este tema é tratado mais amplamente em uma tese de doutorado intitulada “Uma vida em dança: Movimentos e percursos de Denise Stutz”, produzida no LABORARTE/ Faculdade de Educação da UNICAMP, em 2010.^
Site dos artistas ou grupos citados
(em ordem de citação)
Denise Stutz
Grupo Corpo
Lia Rodrigues cia de danças
Studio Stanislavski, verbete da Enciclopédia Itaú Cultural
Enrique Diaz, verbete da Enciclopédia Itaú Cultural
Mariana Lima, verbete da Enciclopédia Itaú Cultural
SITI Company