Volume 2
Edição nº 12
2012
Seção:
DOSSIÊ ESPETÁCULO
Artigo 8
Vera Pallamin
Muito da produção contemporânea em arquitetura e em projetos urbanos, neste país, tem se caracterizado por ‘dar as costas’ à cidade, dificultando ou impossibilitando a ampliação do convívio democrático e impondo-se como intervenções voltadas predominantemente a interesses imobiliários, que reduzem o solo urbano à lógica material de (re)produção do valor. Aspectos históricos ou sociais que não se alinham com as premissas dessas transações são postos em segundo plano ou desconsiderados, o que significa, em termos práticos, a segregação acirrada de espaços e o deslocamento forçado de grupos sociais – via de regra das camadas pobres – das áreas que se tornam o foco dessas intervenções.
“Bom Retiro - 958 metros” contrapõe-se frontalmente a este fluxo: neste trabalho, os espaços urbanos e suas tramas culturais, antropológicas e sociais operam, simultaneamente, como locus, matéria prima e baliza da ação teatral. Essa ação se coloca de frente para a cidade e nos leva a um mergulho nas singularidades da vida urbana do bairro, evidenciando sua porosidade e como esta é atravessada por processos mais amplos, de ordem econômica e produtiva, que percorrem a metrópole como um todo. As oscilações entre o específico e o geral, o local e o global desdobram os achados das cenas, disponibilizando-os a múltiplos alcances. Por um lado, cultiva-se uma temporalidade enraizada no lugar, na vizinhança, capaz de extrair de um antigo muro de pedras, as memórias do entorno. Por outro, essa duração é posta em conjunção e tensão com outras temporalidades, que concorrem, no presente, não para a sedimentação de tecidos sociais, mas para seu desmanche: a vulnerabilidade das relações de trabalho, o enrijecimento dos afetos e a destruição de marcos urbanos.
Na contramão de práticas espaciais convencionais, a poética da caminhada coletiva de anônimos de que se faz esse trabalho – quando temos a chance de experimentar esse formato nas ruas dessa cidade? – abre-se a modos de espacialização que ocupam muros e fachadas, calçadas e esquinas, para usos e efeitos não inscritos em suas espessuras habituais. O frenesi diurno dos circuitos das trocas e vendas é acessado pelo seu avesso, cortando-se galerias desertas, ruas desencarnadas e de paisagens soturnas. Também pelo seu reverso, tomado criticamente, apagam-se as aparências lustrosas desses circuitos, colocando-se como protagonista a presença opaca daqueles que de fato produzem os objetos que aí circulam – mas que, em sua grande maioria, não têm acesso a estes – e labutam em regime de busca pela sobrevivência.
O rebaixamento a que têm sido submetidas essas relações de trabalho é um dos alvos para o qual se volta “958 metros”. As prescrições associadas à fatura e ao comércio de roupas e seus acessórios - característicos do Bom Retiro – mobilizam expedientes que estão no centro das atuais formas de exploração de mão-de-obra e extração de excedente: os chamados serviços e ocupações `flexíveis`, de caráter instável, que dão corpo à lógica da precarização estrutural do trabalho. Assentados na expansão das subcontratações e atividades informais, em que se incluem várias modalidades de marginalização social, estes expedientes alimentam-se de grandes massas de trabalhadores colocados em zonas incertas entre ocupação e desocupação, sem segurança de continuidade de suas atividades, nem garantias laborais de espécie alguma. Numa das pontas dessa cadeia produtiva, francamente pautada em disputas perversas, encontra-se o trabalho praticamente escravo, ou semi-escravo, exercido em oficinas de costura, muitas delas clandestinas – e situadas no bairro – que consistem em espaços oclusos em que se conjugam intensa produtividade e extinção de direitos.
Nas sequências iniciais, contrapondo-se à ambientação das vitrines comerciais e seus fetiches, são trazidas ao primeiro plano essas oficinas, em que o valor de cada artigo preparado e costurado fica na casa dos centavos, forçando seus obreiros a ciclos máximos de atividade e um mínimo de interrupções. Em espaços cênicos duais, cujo verso é a loja e o inverso, a oficina, assumem a dianteira as vozes silenciadas que ali trabalham, quase que infinitamente: as costureiras bolivianas (muitas delas em situação ilegal, o que favorece sua exploração exponencial), para quem a ínfima remuneração por peça tem sido ‘aceitável’, comparativamente às condições de subjugação, enfrentadas em seu país de origem.
Essa sistêmica desvalorização do trabalho também se afigura em outros planos, como a intensificação da competição e das rivalidades, transformando empregos e locais de serviços em verdadeiras arenas de luta. Os mecanismos de afastamento ou exclusão se multiplicam, sendo interiorizados por aqueles que participam desse jogo, para nele se manterem, ainda que temporariamente. Sem vínculos estáveis ou promessas sociais, ‘o homem lobo do homem’, na expressão de Thomas Hobbes, se atualiza sob novos formatos, nas situações mais cotidianas. Em um dessas situações, teatralizada numa esquina do percurso, presenciamos motoristas, ônibus e passantes surpresos com uma inusitada cena noturna de mulheres em conflito, cuja força artística se apropriou deste público, integralmente: fomos todos reconfigurados num coletivo ampliado. Nessa dinâmica, espaço cênico e espaço urbano se fundiam e se separavam fluidamente, sem que um se perdesse no outro, oscilando ininterruptamente.
A habilidade na decupagem dos espaços, articulada ao entrelaçamento poético entre teatro e intervenção urbana, performance e espaço público, arquitetura e ação artística de tipo ‘site specific’ peculiarizam “Bom Retiro – 958 metros” como um todo. Embora em suas encenações tenha sido mantida a tradição de pleno domínio da montagem em ambientes internos, a sua movimentação nos espaços externos pautou-se pela acuidade no manejo das distintas escalas, proximidades e distâncias – operando um tipo de conhecimento sensível que a própria paisagem construída desta cidade aponta ser incomum. A definição do trajeto mostrou-se enxuta e contundente.
Nessa trajetória, o público é conduzido por meio de um saber-fazer artístico que o convida à vivência espacial dos lugares encenados, permitindo-se a experiência de ser envolvido pelas cenas, de estar no meio delas. Seus corpos, suas posições, seus ruídos e sons fazem diferença, e a cada deslocamento buscam o melhor ajuste para seus ângulos de visada. Espaços e corpos imbricam-se mutuamente e se auto-referenciam, em plena afinidade com os ganhos advindos do campo expandido praticado nas ações artísticas contemporâneas.
No trato com a ‘especificidade local’, a atenção à história urbana do bairro intensifica os planos de sua paisagem arquitetônica. O trabalho de ficção teatral provoca uma série de descontinuidades sensíveis em determinados lugares, pelas quais se aproximam ou se justapõem signos e alusões às redondezas, capazes de nomear não só seu peso na identidade local, como também um processo mais vasto de seu apagamento. No intento de se burilar tais aspectos, a cidade e o teatro emprestam-se suas verdades: as primeiras cenas ocorrem em meio a uma cidade fantasma: uma rua quase em coma, em que mesmo ao longe só há ausência: sensação de ruptura, desligamento. Aos poucos, caminhando arquitetura adentro, presenciam-se as ilusões, dores e sofrimentos da mão-de-obra sobre a qual fatura a indústria da moda e seus feitiços. Nesse movimento cênico, investe-se não nas sedutoras aparências, mas na dinâmica material que está por trás delas. E a decantada estética dos locais de compras - limpos, iluminados e decorados - transfigura-se em cenário a desvelar a desunamização, alienação e coisificação do outro.
As modulações sobre as situações urbanas vão se adensando progressivamente e incorporando outras dimensões próprias à vida cotidiana do bairro, seus frequentadores, usuários típicos e moradores, as distintas culturas dos grupos de imigrantes. Estes múltiplos olhares rebatem-se nos papéis que a paisagem e suas transformações registram ao longo do tempo, e no seu confronto com as tensões do presente, em narrativas que se entrecruzam. Em uma delas, pequenas marquises e platibandas transmutam-se em palco elevado, e adquirem profundidade histórica e espacial pelas palavras e gestos de uma noiva. Tornam-se o lugar de onde se aponta a destruição de heranças e referências urbanas, coincidindo com imagens de modos como a cidade devorou a si mesma.
No curso ficcional, por um lado somos conduzidos por um encadeamento de cenas, cuja intensidade é crescente, em paralelo à complexidade dos espaços trabalhados. Por outro, observamos fios transversais a todas elas, que reafirmam em estratos correlatos a crítica mobilizada pelo conjunto. Num deles, vê-se um novo ciclo de desvalorização incidindo sobre corpos já desvalorizados, que a cada trecho, oferecem-se por quantias sempre menores, em direção à sua total anulação. Noutro, os manequins, que são corpos-objeto - metáfora da sistêmica funcionalização dos trabalhadores – não resistem à depreciação a que são submetidos por equivalentes mais baratos, sendo por fim completamente desprezados.
Neste crescendo, chega-se ao Teatro de Arte Israelita Brasileiro (Taib), signo de importância histórica, política e cultural não só do bairro, mas da própria cidade, e que há anos encontra-se morto, abandonado. Deparar-se por um instante com toda a sua ampla fachada em vidro iluminada, em contraste com seus arredores, revelou como num lampejo a chance e o desejo de sua ressurreição. E em nome dessa possibilidade, “958 metros” ingressa em seu interior, vivificando seus espaços gélidos, danificados e depauperados. Nesse entremeio, e sem saber nada ao certo, vemo-nos imersos numa rede de ambigüidades entre vida e morte, ilusão e realidade, existência e ausência, fé e descrédito, esperança e desalento
Em seus espaços internos, acessados como uma catacumba, plateia e palco despontam como surpresa e apreensão, dó e aflição. Fendas abertas, buracos, poltronas faltantes, pisos desfeitos, paredes úmidas, mofo, manchas e sombras. O espetáculo que se contempla é o da desaparição, destruição e aniquilamento, misturando-se, então, com cenas de síntese dos processos de embrutecimento: vício, desilusão, fenecimento. Mais que isso, dramatizam-se no teatro as suas relações de trabalho, que também sofrem a mesma precariedade como todo o resto, nada ficando ileso.
O impacto é considerável e a força daquele lugar é de enorme eficácia simbólica. Acreditando na ficção, somos convencidos da chance de seu reavivamento, da possibilidade de tudo aquilo voltar a respirar vida urbana, novamente. Ultrapassando obstáculos e reveses a arte toma a dianteira, e passamos a imaginar, sem de fato tê-lo presenciado, o que terá sido aquele local em plena vitalidade cultural. Porém, mal tomamos este fôlego, ele se esvai completamente. Os ventos da cidade e suas investidas na valorização do valor penetram a fundo todos os cantos do teatro, retomando-o para seus próprios interesses, e nos expulsam dali acintosamente, varrendo-nos, como insetos, para o meio da rua.
O ambiente é desinfetado, expurgado de suas memórias e utopias, trancado, cerrando suas portas à espera da melhor aposta financeira. Passa-se o ponto. Mas não se trata de exceção ou decisão pontual. Antes, repetem-se ali as sórdidas políticas de higienização social que têm sido empregadas no centro desta e de muitas outras grandes cidades, as quais eliminam do caminho todos aqueles classificados como insolventes. Comunidades inteiras são expulsas de suas moradias e vizinhanças, em função de políticas estatais que tratam os espaços urbanos como canteiros de negócios, privilegiando poucos em detrimento de muitos.
A potência estética com que este trabalho enfrenta tudo isso tem a astúcia de nos colocar na pele dos atingidos, dos que são expulsos, afastados e enjeitados. Temos a experiência dos nossos corpos serem postos para fora da cena: somos descartados. E pela força inequívoca da ficção, ficamos sem palavras, atônitos, olhando para um e outro lado da rua, em busca de algum indício. Na pele de muitos, ficamos como que sem nada, meio à deriva, olhando de frente para uma cidade, que ali nos vira as suas costas.
Vera Pallamin é arquiteta e bacharel em filosofia, professora da FAU - USP