Rubens Rodrigues Torres Filho (1942-2023)
Quando Rubens se tornou aluno do curso de graduação de filosofia em meados da década de 1960, cursava direito no Mackenzie. Teve sua destinação alterada quando descobriu uma nova vocação assistindo a uma aula inaugural do jovem sociólogo Fernando Henrique Cardoso, na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, na rua Maria Antônia, em São Paulo. Em 1967, defendeu um mestrado sobre “A finitude do eu na primeira filosofia de Fichte”. Em 1972, após um longo estágio na França, veio a tese “O espírito e a letra. A crítica da imaginação pura, em Fichte”, publicada como livro em 1975. O próprio Rubens nunca teve em alta conta o seu mestrado, que ele considerava um trabalho imaturo (a leitura dessas páginas faria corar muitos estudantes mais pretensiosos que vieram depois). Quanto ao doutorado, estava perfeitamente ciente, sem nenhuma falsa modéstia, de que se tratava de um trabalho extraordinário. Começando em meados da década de 70 e indo até os da década de 90, escreveu ensaios que desenvolvem suas pesquisas anteriores e abrem caminhos para novas, estimulantes. Foram parcialmente reunidos em Ensaios de filosofia ilustrada (1987; 2ª edição aumentada, 2004). Adepto da disciplina acadêmica da “história da filosofia”, elevou-a a níveis de rigor poucas vezes vistos no Brasil. Aplicou sua destreza no manejo das línguas (com destaque para o alemão, o francês e o português) não somente em benefício de seus estudos, mas, também, em traduções esmeradas, que permanecem como referências da arte. Verteu para o português, na coleção os Pensadores e alhures, textos de Adorno, Benjamin, Kant, Fichte, Nietzsche, Novalis e Schelling, entre outros. Além de “professor de filosofia” (como gostava de dizer), Rubens foi poeta, e dos bons. Estreou na cena em 1963 com Investigação do olhar. Em 1981, foi premiado com o Jabuti em poesia pelo volume O voo circunflexo (mantinha a estatueta à vista, na mesa de centro da sala de estar). Reuniu sua obra poética (incluindo um punhado de traduções de autores como Hölderlin, Rimbaud e Schiller) em Novolume, publicado em 1997 pela editora Iluminuras, à qual se associara desde a década anterior como diretor da coleção Pólen, na qual até hoje são publicadas traduções comentadas de textos filosóficos. Os que foram seus alunos haverão de se lembrar da facilidade com que extraía dos textos os significados mais inesperados, de sua ironia fina, não raro associada a certa mordacidade, e da maneira generosa com que compartilhava achados preciosos, que eram seus. Os que privaram de sua amizade não esquecerão da sedutora urbanidade que permeava o seu trato e do fascínio exercido por uma figura de envergadura intelectual que não cabia nos limites do mundo acadêmico.
Pedro Paulo Pimenta
***
O ritual era simples. A cada 15 dias, uma garrafa de uísque à mesa, 2 copos, vários cinzeiros. Eu sentava e lia trechos de uma tradução em andamento. Ele ouvia, corrigia, eu anotava, protestava às vezes, ele contra-argumentava e a solução dele era sempre melhor que a minha. Semanas se passavam, a tradução terminava e ele me entregava um outro texto, uma outra tarefa. Mesma dinâmica. Durante os anos finais da minha graduação e mesmo início da pós, ele me “adotou” para uma espécie de iniciação científica (que não existia ainda) caseira, informal, num sobrado de vila perto da Rua Oscar Freire – nas palavras de um amigo dele, também tradutor, ele morava “numa cidade do interior a um passo de distância de Manhattan”. Outro ritual, igualmente simples, era em sala de aula. Seus cursos começavam quase sempre com um seminário, dado por ele, sobre um trecho do texto que seria lido ao longo do semestre. Era um “É assim que se faz”, o mais elegante que já vi. Nas semanas seguintes, os alunos se esfalfavam, se contorciam, tartamudeavam e demais verbos assemelhados para apresentar seus respectivos seminários. Ao final de cada exposição, ele pigarreava, fazia um comentário mais genérico, depois dizia algo como “Tem uma coisa aqui, no começo do texto, um verbo, que merece um comentário mais detido”. A seguir, dava novamente o mesmo seminário feito pelo aluno ou aluna e mostrava aspectos que ninguém havia percebido, talvez nem mesmo o autor clássico das linhas analisadas. A cada aula, portanto, tínhamos demonstrações reiteradas e deslumbrantes de leitura e interpretação de texto, feitas com uma minúcia e um rigor que jamais encontrei superados – uma atividade dificílima, que ele resumia numa fórmula falsamente simples: “uma experiência de texto”. Quando alguém genial nos deixa, sentimos ainda mais nossa pequenez. Rubens Rodrigues Torres Filho, nosso maior tradutor, nosso melhor leitor, nosso melhor intérprete, nossa junção única de filósofo brilhante e poeta finíssimo, era isso: um gênio.
Marcio Sattin
***
Na Discurso, Rubens Rodrigues Torres Filho publicou diversos artigos, traduções e resenhas:
Verificação das afirmações de Rousseau (trad. de J. G. Fichte)
Teatro e Teoria: A Filha Natural em Berlim
Respondendo à pergunta: quem é a ilustração?
Inês de Castro e a Doutrina-da-Ciência
Friedrich Nietzsche. Visão de Dionísio (trad.)
Saiba mais sobre Rubens Rodrigues Torres Filho (1942-2023)