A paralisia do sono no folclore brasileiro e em outras culturas

Autores

  • José Felipe Rodriguez de Sá Sem Registro de Afiliação
  • Sérgio Arthuro Mota-Rolim Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Hospital Universitário Onofre Lopes

DOI:

https://doi.org/10.11606/issn.2446-7693i8p61-83

Palavras-chave:

paralisia do sono, pisadeira, etnopsicologia, psiquiatria transcultural, sono REM, alucinações hipnopômpicas

Resumo

A paralisia do sono (PS) é um estado dissociativo que ocorre principalmente durante o despertar. A PS caracteriza-se por uma alteração das funções motoras, perceptivas, emocionais e cognitivas, como a incapacidade de realizar movimentos voluntários, alucinações visuais, delírios sobre uma presença assustadora, sensação de pressão no peito, falta de ar, e, em alguns casos, medo de morte iminente. A maioria das pessoas experimenta a PS raramente, e principalmente quando está dormindo em posição supina; no entanto, a PS é considerada uma doença (parasonia) quando recorrente e/ou associada à carga emocional intensa e negativa. Curiosamente, ao longo da história da civilização humana, diferentes povos interpretaram a PS sob uma visão sobrenatural ou mística. Esquimós canadenses, por exemplo, atribuem a PS a feitiços de xamãs, que impedem o movimento e provocam alucinações de uma presença maligna. Na tradição japonesa, ocorre devido a um espírito vingativo que sufoca seus inimigos ao dormir. Na cultura nigeriana, uma personagem demoníaca ataca durante o sono e provoca paralisia. Uma manifestação moderna da PS é o relato de "abduções alienígenas", experimentadas como incapacidade de se mover durante o despertar, associadas a alucinações visuais de alienígenas. Desta forma, podemos dizer que a PS é um exemplo significativo de como um fenômeno neurobiológico específico pode ser interpretado e moldado por diferentes contextos culturais. Para explorar ainda mais a etnopsicologia da PS, nesta breve revisão apresentamos a "Pisadeira", uma personagem do folclore brasileiro originada no Sudeste do país, mas também encontrada em outras regiões com nomes variados. A Pisadeira é descrita como uma mulher idosa, feia, magra e com unhas compridas, que espreita nos telhados à noite e pisa no peito dos que dormem de estômago cheio. Esta lenda é mencionada em muitos trabalhos antropológicos, no entanto, não encontramos uma referência abrangente sobre a Pisadeira sob a perspectiva da ciência do sono. Nesta breve revisão pretendemos preencher essa lacuna. Primeiro, analisamos os aspectos neuropsicológicos da PS, e depois apresentamos o relato popular da Pisadeira. Finalmente, resumimos as muitas manifestações históricas e artísticas da PS em diferentes culturas, enfatizando as semelhanças e diferenças com a Pisadeira.

Downloads

Os dados de download ainda não estão disponíveis.

Referências

ADLER, S. R. Sleep paralysis: night-mares, nocebos, and the mind-body connection. 1. ed. New Brunswick, New Jersey, and London: Rutgers University Press, 2011.

AINA, O. F.; FAMUYIWA, O. O. Ogun Oru: a traditional explanation for nocturnal neuropsychiatric disturbances among the Yoruba of Southwest Nigeria. Transcultural Psychiatry, v. 44, n. 1, p. 44–54, mar. 2007.

AMERICAN ACADEMY OF SLEEP MEDICINE. International classification of sleep disorders: diagnostic and coding manual. 3. ed. Darien, CT: American Academy of Sleep Medicine, 2014.

ASERINSKY, E.; KLEITMAN, N. Regularly occuring periods of eye motility, and concomitant phenomena, during sleep. Science, v. 118, n. 3062, p. 273–274, set. 1953.

BLACKMORE, S. J.; PARKER, J. D. Comparing the content of sleep paralysis and dream reports. Dreaming, v. 12, n. 1, p. 45–59, mar. 2002.

BLANKE, O. et al. Out-of-body experience and autoscopy of neurological origin. Brain, v. 127, p. 243–258, fev. 2004.

BLANKE, O. et al. Linking out-of-body experience and self processing to mental own body imagery at the temporoparietal junction. The Journal of Neuroscience, v. 25, n. 3, p. 550–557, jan. 2005.

BROOKS, P. L.; PEEVER, J. H. Identification of the transmitter and receptor mechanisms responsible for REM sleep paralysis. The Journal of Neuroscience, v. 32, n. 29, p. 9785–9795, jul. 2012.

BURGESS, M. F. et al. The frequency and correlates of sleep paralysis in a university sample. Journal of Research in Personality, v. 29, n. 3, p. 285–305, set. 1995.

CASCUDO, L. C. Dicionário do folclore brasileiro. 12. ed. São Paulo: Global, 2012.

CASSANITI, J.; LUHRMANN, T. M. Encountering the supernatural – a phenomenological account of mind. Religion and Society: Advances in Research, v. 2, n. 1, p. 37–53, abr. 2011.

CHEYNE, J. A. The ominous numinous: sensed presence and ‘other’ hallucinations. Journal of Consciousness Studies, v. 8, n. 5-7, p. 133–150, maio 2001.

______. Maupassants Der Horla und die kulturhistorische transformation des alien. Zeitschrift für Anomalistik, v. 15, p. 235–259, dez 2015.

CHEYNE, J. A.; GIRARD, T. A. The body unbound: vestibular-motor hallucinations and out-of-body experiences. Cortex, v. 45, n. 2, p. 201–215, fev. 2009.

CHEYNE, J. A.; NEWBY-CLARK, I. R.; RUEFFER, S. D. Hypnagogic and hypnopompic hallucinations during sleep paralysis: neurological and cultural construction of the nightmare. Consciousness and Cognition, v. 8, n. 3, p. 319–337, set. 1999.

CLANCY, S. A. et al. Memory distortion in people reporting abduction by aliens. Journal of Abnormal Psychology, v. 111, n. 3, p. 455–461, ago. 2002.

CLANCY, S. A.; MCNALLY, R. J. Sleep paralysis, sexual abuse, and space alien abduction. Transcultural Psychiatry, v. 42, n. 1, p. 113–122, mar. 2005.

CORALINA, C. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. 23. ed. São Paulo: Global, 2014.

CORSO, M. Monstruário: inventário de entidades imaginárias e de mitos brasileiros. 1. ed. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2002.

DAHLITZ, M.; PARKES, J. D. Sleep paralysis. Lancet, v. 341, n. 8842, p. 406–407, fev. 1993.

DAUVILLIERS, Y.; ARNULF, I.; MIGNOT, E. Narcolepsy with cataplexy. Lancet, v. 369, n. 9560, p. 499–511, fev. 2007.

DE SÁ, J. F. R.; MOTA-ROLIM, S. A. Experiências fora do corpo: aspectos históricos e neurocientíficos. Ciência & Cognição, v. 20, n. 1, p. 189–198, abr. 2015.

DEMENT, W. C.; KLEITMAN, N. The relation of eye movements during sleep to dream activity: an objective method for the study of dreaming. Journal of Experimental Psychology, v. 53, n. 3, p. 339–346, maio 1957.

DRESLER, M. et al. Volitional components of consciousness vary across wakefulness, dreaming and lucid dreaming. Frontiers of Psychology, v. 4, p. 987, jan. 2014.

ERLACHER, D.; SCHREDL, M. Do REM (lucid) dreamed and executed actions share the same neural substrate? International Journal of Dream Research, v. 1, n. 1, p. 7–14, jan. 2008.

FERREIRA, A. B. H. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

FIRESTONE, M. The “Old Hag”: Sleep paralysis in Newfoundland. The Journal of Psychoanalytic Anthropology, v. 8, n. 1, p. 47–66, 1985.

FUKUDA, K. et al. High prevalence of isolated sleep paralysis: Kanashibari phenomenon in Japan. Sleep, v. 10, n. 3, p. 279–286, jun. 1987.

FUKUDA, L. et al. The prevalence of sleep paralysis among Canadian and Japanese college students. Dreaming, v. 8, n. 2, p. 59–66, jun. 1998.

HINTON, D. E.; HUFFORD, D. J.; KIRMAYER, L. J. Culture and sleep paralysis. Transcultural Psychiatry, v. 42, n. 1, p. 5–10, mar. 2005.

HINTON, D. E. et al. Sleep paralysis among Cambodian refugees: association with PTSD diagnosis and severity. Depression and Anxiety, v. 22, n. 2, p. 47–51, jan. 2005.

______. ‘The ghost pushes you down’: sleep paralysis-type panic attacks in a Khmer refugee population. Transcultural Psychiatry, v. 42, n. 1, p. 46–77, mar. 2005.

HOBSON, J. A.; PACE-SCHOTT, E. F.; STICKGOLD, R. Dreaming and the brain: toward a cognitive neuroscience of conscious states. Behavioral and Brain Sciences, v. 23, n. 6, p. 793–842, dez. 2000.

HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

HUFFORD, D. J. Sleep paralysis as spiritual experience. Transcultural Psychiatry, v. 42, n. 1, p. 11–45, mar. 2005.

______. The terror that comes in the night: an experience-centered approach to supernatural assault traditions. 1. ed. rev. Philadelphia, PA: University of Pennsylvania Press, 1989.

JALAL, B.; HINTON, D. E. Rates and characteristics of sleep paralysis in the general population of Denmark and Egypt. Culture, Medicine and Psychiatry, v. 37, n. 3, p. 534–548, set. 2013.

JALAL, B.; RAMACHANDRAN, V. S. Sleep paralysis and the shadowy bedroom intruder: the role of the right superior parietal, phantom pain and projection of body image. Medical Hypotheses, v. 83, n. 6, p. 755–757, dez. 2014.

JOUVET, M. What does a cat dream about? Trends in Neurosciences, v. 2, p. 280– 282, dez. 1979.

JOUVET, M.; DELORME, F. Locus ceruleus et sommeil paradoxal. Comptes Rendus des Seances de la Societe de Biologie et de ses Filiales, v. 159, p. 895–899, 1965.

KIRMAYER, L. J.; LAW, S. Inuit interpretations of sleep paralysis. Transcultural Psychiatry, v. 42, n. 1, p. 93–112, mar. 2005.

KOMPANJE, E. J. O. ‘The devil lay upon her and held her down’: hypnagogic hallucinations and sleep paralysis described by the Dutch physician Isbrand van Diemerbroeck (1609-1674) in 1664. Journal of Sleep Research, v. 17, n. 4, p. 464–467, dez. 2008.

LABERGE, S. et al. Lucid dream verified by volitional communication during REM sleep. Perceptual and Motor Skills, v. 52, n. 3, p. 727–732, jun. 1981.

LINS, W. O médio São Francisco: uma sociedade de pastores guerreiros. 3. ed. São Paulo: Nacional, 1983.

MACK, J. E. Abduções. Tradução de Domingos Demasi. Rio de Janeiro: EDUCARE, 1997.

MAHOWALD, M. W. et al. State dissociation, human behavior, and consciousness. Current Topics in Medicinal Chemistry, v. 11, n. 19, p. 2392–2402, 2011.

MAUPASSANT, G. As grandes paixões: contos de Guy de Maupassant. 2. ed. Tradução. Rio de Janeiro: Record, 2005.

MCNALLY, R. J.; CLANCY, S. A. Sleep paralysis in adults reporting repressed, recovered, or continuous memories of childhood sexual abuse. Journal of Anxiety Disorders, v. 19, n. 5, p. 595–602, fev. 2005.

MCNALLY, R. J. et al. Psychophysiological responding during script-driven imagery inpeople reporting abduction by space aliens. Psychological Science, v. 15, n. 7, p. 493–497, jul. 2004.

MOREIRA, M. E. C. B. et al. Mitologia brasileira: resgate do patrimônio cultural. Anais da Jornada dos Cursos de História, Geografia e Arquitetura, Vol. 1. Espaço, História e Globalização. Bauru, SP: Universidade do Sagrado Coração, 2009.

MOTA-ROLIM, S. A.; ARAÚJO, J. F. Neurobiology and clinical implications of lucid dreaming. Medical Hypotheses, v. 81, n. 5, p. 751–756, nov. 2013.

MOTA-ROLIM, S. A. et al. Dream characteristics in a Brazilian sample: an online survey focusing on lucid dreaming. Frontiers in Human Neuroscience, v. 7, dez. 2013. Disponível em: <https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fnhum.2013.00836/full>. Acesso em: 09 abr. 2023.

MYRONE, M. Henry Fuseli. 1. ed. Princeton: Princeton University Press, 2001.

NISHINO, S. Clinical and neurobiological aspects of narcolepsy. Sleep Medicine, v. 8, n. 4, p. 373–399, jun. 2007.

PIRES, C. Conversas ao pé-do-fogo: estudinhos – costumes – contos anedotas – cenas de escravidão. Edição da Tipografia Piratininga. Itu, SP: Ottoni, 2002.

PIRES, M. L. N. Sleep habits and complaints of adults in the city of São Paulo, Brazil, in 1987 and 1995. Brazilian Journal of Medical and Biological Research, v. 40, n. 11, p. 1505–1515, nov. 2007.

SHARPLESS, B. A.; BARBER, J. P. Lifetime prevalence rates of sleep paralysis: a systematic review. Sleep Medicine Reviews, v. 15, n. 5, p. 311–315, out. 2011.

SHARPLESS, B. A.; DOGHRAMJI, K. Sleep paralysis: historical, psychological and medical perspectives. 1. ed. Oxford: Oxford University Press, 2015.

SHARPLESS, B. A. et al. Isolated sleep paralysis and fearful isolated sleep paralysis in outpatients with panic attacks. Journal of Clinical Psychology, v. 66, n. 12, p. 1292– 1306, dez. 2010.

SHERMER, M. Por que as pessoas acreditam em coisas estranhas: pseudociência, superstição e outras confusões dos nossos tempos. Tradução de Luís Reyes Gil. 1. ed. rev. e ampl. São Paulo: JSN Editora, 2011.

STEWART, C. Erotic dreams and nightmares from antiquity to the present. Journal of the Royal Anthropological Institute, v. 8, n. 2, p. 279–309, jun. 2002.

STRIEBER, W. Comunhão. Tradução de Carlos André Oighenstein. 1. ed. Rio de Janeiro: Record, 1987.

VAN EEDEN, F. A study of dreams. Proceedings of the Society for Psychical Research, v. 26, p. 431–461, 1913.

VOSS, U. et al. Lucid dreaming: a state of consciousness with features of both waking and non lucid dreaming. Sleep, v. 32, n. 9, p. 1191–1200, set. 2009.

WILSON, S. A. K. The narcolepsies. Brain: A Journal of Neurology, v. 51, n. 308, p. 63–109, mar. 1928.

YEUNG, A.; XU, Y.; CHANG, D. F. Prevalence and illness beliefs of sleep paralysis among chinese psychiatric patients in China and the United States. Transcultural Psychiatry, v. 42, n. 1, p. 135–145, mar. 2005.

Downloads

Publicado

2023-10-21

Edição

Seção

ARTIGOS

Como Citar

A paralisia do sono no folclore brasileiro e em outras culturas . (2023). Revista Estudos Culturais, 8, 61-83. https://doi.org/10.11606/issn.2446-7693i8p61-83