Desmembrando o Comitium para preservar a res publica: uma leitura gramsciana das transformações no norte do Fórum Romano no final do século I a.C

Resumo

Este artigo tem por objetivo analisar as transformações ocorridas no Comício do Fórum Romano durante o período consagrado como o último século da República a partir de uma perspectiva gramsciana da política e da memória em relação ao espaço. Para tanto, mobilizamos o conceito de organismo, formulado por Gramsci, para compreender o desenvolvimento da espacialidade do Fórum – e especialmente do Comício, local mais nuclear das relações políticas durante a República – em interação com as dinâmicas de classe ali cultivadas. Esse processo histórico concebeu um espaço convencionado a acolher o conflito e solucioná-lo, dentro de uma estrutura hierárquica que ditava visualmente o papel que cabia a cada classe nessa ação, e indexou na materialidade vivências passadas desses conflitos/resoluções que forjaram uma memória coletiva muito particular daquele local. Contudo, o acúmulo de contradições resultadas do descompassado entre as novas condições materiais do império nascente e a velha estrutura da res publica colocou o Comício em um impasse de natureza dialética, no qual o espaço passou a ser instrumentalizado a favor da escalada da violência política que ameaçava a res publica, ao mesmo tempo em que não podia ser abandonado sob o risco de minar as bases orgânicas republicanas ali gestadas. Recorrendo às reconstituições propostas pelo Atlas of Ancient Rome (2017), organizado por Carandini e Carafa, buscamos demonstrar que o esvaziamento do Comício foi acompanhado da reconstrução de suas estruturas em outros locais do Fórum, tanto para preservar a res publica enquanto processo memorial materialmente coproduzido quanto para desvincular a interação direta das classes, enxertando entre elas a figura mediadora daqueles que futuramente seriam vistos como imperadores.