"Gente como a gente": o conceito de homem anatomicamente moderno

Autores

Palavras-chave:

humanidade, cultura, biologia, evolução

Resumo

Nota da tradutora:

Há quase meio século, em ensaio que se tornaria justamente clássico (“O impacto do conceito de cultura sobre o conceito de homem”, de 1966), Clifford Geertz criticava a noção então corrente de que a capacidade humana de produzir e transmitir cultura só emergiu depois que a evolução biológica da espécie virtualmente se completou. Com o apoio dos conhecimentos paleontológicos disponíveis à época, Geertz sustentava que a cultura, ao invés de se acrescentar a um organismo biologicamente “pronto”, foi um ingrediente essencial no próprio processo de produção do Homo sapiens.

Embora apresentasse uma perspectiva renovada sobre a “natureza humana”, o argumento reintroduzia implicitamente a própria premissa que pretendia afastar: a universalidade biológica dos seres humanos passava a ser concebida como incompletude, tendo como corolário a inelutável dependência de padrões culturais para dirigir sua existência e realizar, de formas sempre particulares, as capacidades inerentes à espécie. Em síntese, “todos os seres humanos começam (biologicamente) iguais e terminam (culturalmente) muito diferentes”.

É precisamente essa ideia, mais ou menos consensual entre os antropólogos nas décadas posteriores, que Tim Ingold coloca em questão ao argumentar que as próprias diferenças culturais são, num sentido muito preciso, biológicas. Não se trata obviamente de reviver velhos dogmas racistas, mas de reconectar biologia e cultura de forma produtiva, a partir de uma sofisticada crítica à teoria evolutiva neo-darwiniana (e, no mesmo movimento, à concepção da cultura como um sistema de “planos, receitas, regras, instruções”).

Como mostra Ingold, é a redução contemporânea do biológico ao genético que torna necessário, para escapar ao racismo, insistir na separação entre evolução e história, conferindo aos seres humanos um estatuto fundamentalmente ambíguo: de um lado, organismos da natureza como todos os demais seres vivos; de outro, as únicas criaturas que transcenderam de tal modo o mundo da natureza “a ponto de fazer dela um objeto de sua consciência”.

Biografia do Autor

  • Tim Ingold, University of Aberdeen
    Professor Emérito de Antropologia Social na University of Aberdeen, Fellow da British Academy e da Royal Society de Edinburgh.
  • Ciméa Barbato Bevilacqua, Universidade Federal do Paraná

    Professora titular do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal do Paraná. É doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (2002) e realizou estágios pós-doutorais na London School of Economics and Political Science (2010) e na Universidade Federal de São Carlos (2016). Atua nas áreas de antropologia do estado e do direito, com ênfase no estudo etnográfico de práticas burocráticas e técnicas jurídicas. 

     

Referências

Bourdieu, P. 1977. Outline of a theory of practice, trans. R. Nice. Cambridge: Cambridge University Press.

DOI : 10.1017/CBO9780511812507

Brown, D. E. 1991. Human universals. New York: McGraw Hill.

Darwin, C. 1871. The descent of man, and selection in relation to sex. London: John Murray.

DOI : 10.1515/9781400820061

Durham, W. H. 1991. Coevolution: genes, culture and human diversity. Stanford: Stanford University Press.

DOI : 10.1515/9781503621534

Foley, R. 1985. Optimality theory in anthropology. Man (N.S.) 20: 222–42.

DOI : 10.2307/2802382

Geertz, C. 1973. The interpretation of cultures. New York: Basic Books.

Goodwin, B.C. 1988. Organisms and minds: the dialectics of the animal–human interface in biology. In What is an animal?, ed. T. Ingold. London: Unwin Hyman.

Hinde, R. A. 1991. A biologist looks at anthropology. Man (N.S.) 25: 583–608.

DOI : 10.2307/2803771

Ho, M-W. 1991. The role of action in evolution: evolution by process and the ecological approach to perception. Cultural Dynamics 4(3): 336–54.

DOI : 10.1177/092137409100400306

Howells, W. 1967. Mankind in the making: the story of human evolution. Harmondsworth: Penguin.

Ingold, T. 1986. Evolution and social life. Cambridge: Cambridge University Press.

DOI : 10.4324/9781315560397

_____ 1990. An anthropologist looks at biology. Man (N.S.) 25: 208–29.

_____ 1991. Becoming persons: consciousness and sociality in human evolution. Cultural Dynamics 4: 355–78.

_____ 1998. Evolution of society. In Evolution: society, science and the universe, ed. A. C. Fabian. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 79–99.

Kandel, E. R. and R. D. Hawkins 1992. The biological basis of learning and individuality. Scientific American 267: 53–60.

DOI : 10.1038/scientificamerican0992-78

Kay, L. E. 1998. A book of life? How the genome became an information system and DNA a language. Perspectives in Biology and Medicine 41: 504–28.

DOI : 10.1353/pbm.1998.0038

Lestel, D. 1998. How chimpanzees have domesticated humans: towards an anthropology of human–animal communication. Anthropology Today 14(3): 12–15.

DOI : 10.2307/2783050

Lewontin, R.C. 1992. The dream of the human genome. The New York Review, May 28th 1992, pp. 31–40.

Lieberman, P. 1985. Comment on S. T. Parker, ‘A socio-technical model for the evolution of language’. Current Anthropology 26: 628.

Lock, A. J. 1980. The guided reinvention of language. London: Academic Press.

Lovejoy, C. O. 1988. Evolution of human walking. Scientific American 259: 82–9.

DOI : 10.1038/scientificamerican1188-118

Marx, K. 1963 [1869]. Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte. New York: International Publishers.

Mauss, M. 1979. Sociology and psychology: essays. London: Routledge & Kegan Paul.

DOI : 10.2307/3032558

Medawar, P. 1967. The art of the soluble. London: Methuen.

DOI : 10.4324/9781003221036

Molleson, T. 1994. “The eloquent bonus of Abu Hureyra. Scientific American 271: 60-65.

Oyama, S. 1985. The ontogeny of information: developmental systems and evolution. Cambridge: Cambridge University Press.

DOI : 10.1515/9780822380665

Richerson, P. J. and R. Boyd 1978. A dual inheritance model of the human evolutionary process, I: Basic postulates and a simple model. Journal of Social and Biological Structures 1: 127–54.

DOI : 10.1016/S0140-1750(78)80002-5

Savage-Rumbaugh, E. S. and D. M. Rumbaugh 1993. The emergence of language. In Tools, language and cognition in human evolution, eds K. R. Gibson and T. Ingold. Cambridge: Cambridge University Press.

Street, B. V. 1984. Literacy in theory and practice. Cambridge: Cambridge University Press.

Thelen, E. 1995. Motor development: a new synthesis. American Psychologist 50: 79–95.

DOI : 10.1037/0003-066X.50.2.79

Downloads

Publicado

2011-12-30

Edição

Seção

Traduções

Como Citar

Ingold, T. (2011). "Gente como a gente": o conceito de homem anatomicamente moderno (C. B. Bevilacqua , Trad.). Ponto Urbe, 9, 1-24. https://revistas.usp.br/pontourbe/article/view/217231