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Chamada de Trabalhos
Vol. 25, N. 2, 2025
PRAZO ESTENDIDO PARA SUBMISSÃO DE TRABALHOS: 10 de novembro de 2025
Dossiê têmático: Musico-lógicas Insurgentes e Escutas Decoloniais: corpos e epistemologias em travessia
Editor convidado: Prof. Dr. Diósnio Machado Neto (EACH-USP / CNPq)
*** Observação: para este número, a Revista Música receberá apenas trabalhos que estejam inseridos na temática deste Dossiê. ***
Este dossiê convida contribuições que explorem práticas musicais e epistemologias críticas que tensionam a colonialidade do saber, propondo rupturas ontoestéticas e musico-lógicas insurgentes. Interessam-nos modos de escuta, produção e inscrição sonora que emergem de cosmologias e corpos dissidentes, não subsumíveis à racionalidade hegemônica.
Ao longo das últimas décadas, os campos pós-colonial e decolonial deslocaram-se do mero diagnóstico das feridas coloniais para a proposição de práticas de reinvenção epistêmica e estética. Se o pensamento pós-colonial operou como crítica às continuidades da dominação europeia nos saberes e na cultura, o giro decolonial aprofundou a denúncia ao identificar a colonialidade como uma matriz constitutiva do mundo moderno, ativa nos modos de classificar, validar e silenciar corpos, conhecimentos e formas de vida. Nesse caminho, emerge o horizonte insurgente, em que a crítica não se limita a desmontar hierarquias coloniais, mas busca instaurar práticas outras — ontologias e regimes cosmológicos que resistem, vibram e performam mundos não hegemônicos.
Em muitos desses mundos outros — ou mundos possíveis —, a música, ou o jogo dos sons, recusa-se a ser interpretada como 'objeto' apreendido por categorias universais como obra, estilo ou forma. É vivida e concebida como gesto situado e encarnado: uma tecnologia de presença, de memória e de existência. Contra a estética da neutralidade, imposta como medida normativa pela razão ocidental, abre-se espaço para uma escuta crítica e sensível, que reconhece no som uma força de fabulação, pertença e insurgência.
Instada a esse contexto que surge dos múltiplos atos políticos dos processos de descolonização, a musicologia torna-se decolonial, enquanto reforma epistêmica, e insurgente por compromisso ético. Isso não significa sequestrar a geografia do cânone eurocentrado ou reparar silêncios por adição de repertórios nos cânones assimilados. Trata-se de uma ruptura epistemológica e ontológica com os regimes de escuta fundados na colonialidade do saber, que normatizaram o audível e domesticaram a diferença. Neste sentido, esta é uma modalidade de pensamento que não emerge como etnomusicologia expandida, nem como chave pós-moderna da musicologia histórico-analítica ou desdobramento situado dos estudos culturais e teorias críticas. Reconhecer-se nesses moldes seria aceitar, ainda que inconscientemente, a permanência de uma cosmologia eurocentrada que subsume outras formas de escuta e cognição musical.
A proposta, ao contrário, recusa essa dependência estrutural e epistemológica, pois reconhece que mesmo os esforços críticos internos à musicologia acadêmica hegemônica tendem a reforçar sua centralidade simbólica, projetando-se como centro interpretativo também das alteridades sonoras. O que está em jogo, portanto, não é uma mera ampliação do campo analítico — como se bastasse estender as ferramentas existentes às margens do sistema —, mas a abertura de um outro campo ontológico, capaz de acolher modos de escuta e pensamento que se formulam segundo outras musico-lógicas. Ou seja, mais do que uma musicologia — no singular —, deveríamos almejar lógicas sistematizantes pluriversais, indisciplinadas, insurgentes, que nos convocam a reaprender o musical em termos que não nos pertencem.
Dito isso, este dossiê nasce de uma utopia concreta: a de que uma musicologia decolonial é possível quando se realiza a partir de uma condição epistêmica situada — não subordinada nem derivada, mas constituinte e própria. Uma musicologia que pulsa porque nasce de uma condição à deriva dada na própria colonização. É uma condição histórica de periferia mestiça, de fusão difusa, de territórios plurinacionais atravessados por camadas vivas de cosmologias. Esta condição se dá em Abya Yala. Nascemos feitos de sobreposições móveis: de ameríndios, negros e brancos em configuração cabocla; de modernidades e arcaísmos; de temporalidades justapostas que coexistem em tensão, como entre o urbano e o ancestral, o amazônico e o cibernético. Por sermos contradição latente, marcados por uma modernidade que nos foi imposta como condição de nos colonizarmos ciclicamente, mas cuja tradução tensionamos por dentro, nos tornamos condição crítica viva. É nessa tessitura de mundos — tecidos em conflito e sobrevivência — que se torna possível escutar o que escapa à gramática universal do eurocentrismo.
Acreditando nesta capacidade trans podemos abrir passagem para uma escuta que rompe com o tempo-espaço homogêneo da razão moderna — como formulado por Kant — e nos orientarmos por temporalidades espirais, descentradas, onde a partilha do sensível é interespécie, interespiritual e intertecnológica. Ao nosso lado convivem culturas onde o humano não é o centro: é parte de uma ecologia expandida onde corpos, espíritos, paisagens, e hoje algoritmos descentralizados, compartilham agência estética. É nesse entrelugar — entre o pós-humano e o mais-que-humano, entre a desconstrução do sujeito e a cosmopolítica e cosmogonia da escuta na diversidade — que a musicologia decolonial se afirma como insurgência. Pois não se trata apenas de ouvir com o mundo: trata-se de inscrever no som um gesto político de reexistência, onde o saber musical deixa de ser objeto de análise e torna-se mundo em devir — forjado na legitimidade da alteridade e na recusa ativa à colonialidade do sensível. Enfim, estamos na condição onde a musicologia torna-se, ou pode se tornar, performatividades de corporalidades dissidentes.
Assim, o presente dossiê acolherá contribuições que desloquem os modos hegemônicos de constituição do conhecimento das sonoridades organizadas (inclusive em termos pós-humanos e mais-que-humanos), instaurando reflexões sobre infraestruturas sensíveis de pesquisa que coexistam em tensão com as arquiteturas coloniais do saber, aquelas que negam a coautoria entre corpos, territórios, espíritos e máquinas. Nesse gesto de desobediência epistêmica — entendido aqui como recusa ativa às estruturas universalizantes da razão moderna hegemônica — articulam-se projetos pan-africanistas, feminismos em suas múltiplas vertentes (com ênfase nas epistemologias negras, trans e decoloniais que formam a base do fenômeno da interseccionalidade), cosmopolíticas indígenas, expressões dissidentes de gênero e sexualidade, assim como modos não normativos de existência que abrangem corpos funcionalmente diversos, neurodivergentes e marcados por experiências de deficiência. Em síntese, formas de perceber, sentir e habitar o mundo que tensionam as normatividades da escuta, da presença e do saber, instaurando outras ecologias do sensível e outros regimes de audibilidade que escapam às arquiteturas coloniais do conhecimento.
Interessa-nos mais do que estudos que equacionem o som enquanto natureza sensível organizada como fato social ou signo cultural — categorias fundamentais que atravessam a tradição etnomusicológica e alimentam vertentes da musicologia crítica —, abordagens que captem o que escapa à sua inscrição disciplinar; uma escuta que se dirige às formas, às intensidades, às estruturas e aos gestos sonoros como modos de significação na pluriversalidade, entendida não como diversidade, mas como sobreposição viva de mundos inconciliáveis — mundos que coexistem em tensão, como estados vibratórios simultâneos, sem síntese nem hierarquia. Este dossiê anseia por tratar e incentivar o cultivo de uma escuta sensível e analítica, insurgente e situada, comprometida com a musicalidade como campo autônomo de produção de sentido — irredutível às categorias que lhe são exteriores. O que aqui nos move são formas sonoras que não se deixam capturar pela gramática da representação, que não pedem legitimação da norma canônica, e que se enunciam a partir do corpo-território, na concretude da escuta que fabula, resiste e cria. Nessa chave, a escuta deixa de ser apenas método: torna-se aliança indisciplinada — modo de estar com, de vibrar com, de habitar a contradição sem reduzi-la.
Em síntese, este dossiê busca reunir perspectivas ontoestéticas que, longe de buscar legitimação nos horizontes disciplinares colonizadores, operam na chave da ruptura: tensionam os alicerces ontológicos da modernidade do pensamento musicológico-tipo — sujeito/objeto, razão/corpo, humano/natureza, realidade/fantasia, memória/arquivo — e ressoam com paradigmas pós-humanos e mais-que-humanos. Reiteramos: são estudos onde o som emerge como forma insurgente de conhecimento, fabulação crítica e (re)encantamento do real. Trata-se, enfim, de práticas sonoras que não representam o mundo — o abrem a um “outro” possível. Desestruturam as gramáticas do visível e do audível dada na condição hierarquizada, descolonizam os sentidos e reinscrevem mundos alternativos que recusam o lugar de alteridade
Aceitaremos contribuições nos seguintes formatos e abordagens:
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Formato/Tipo |
Descrição
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Artigos acadêmicos |
Investigações teóricas ou empíricas, com enfoque crítico ou interdisciplinar.
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Ensaios críticos |
Reflexões analítico-poéticas, narrativas insurgentes e proposições epistêmicas.
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Entrevistas |
Diálogos com agentes sonoros, mestres/as de saberes musicais, artistas e pensadores/as de práticas insurgentes.
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Comentários e análises |
Textos que incorporem grafias sonoras situadas, inclusive notações herdadas da tradição ocidental, desde que tensionadas ou ressignificadas.
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Relatos de experiência |
Práticas colaborativas, pedagógicas, rituais e contextos de escuta encarnada.
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Produções multimodais |
Trabalhos que integrem som, imagem, gesto, texto ou outras formas expressivas.
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Projetos contracoloniais |
Expressões ancoradas em epistemologias insurgentes, modos não hegemônicos de produzir e partilhar conhecimento.
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O dossiê acolherá contribuições que dialoguem, principalmente, com os seguintes eixos:
- Arquivos vivos e regimes de memória
Práticas de transmissão oral, rito, corporalidade e ancestralidade como formas de inscrição sonora e processos de significação. - Escuta como prática crítica e insurgente
A escuta como gesto político, forma de resistência e campo de desestabilização epistêmica. - Cânones, domesticação epistemológica e crítica institucional
Desconstrução dos dispositivos de consagração e normalização no campo musical. - Territorialidades sonoras e cosmopoéticas
Som como agente de transformação e fabulação, a partir de mundos sonoros contra-hegemônicos e mais-que-humanos. - Metodologias situadas e abordagens transdisciplinares
Práticas colaborativas, encarnadas e interdisciplinares que articulam arte, pesquisa e comunidade. - Regimes digitais da escuta, superdiversidade e tecnologias de mediação cultural
Plataformas, algoritmos e infraestruturas digitais como vetores de controle e criação estética. - Epistemologias da significação musical e semióticas decoloniais
Reconfigurações dos estatutos do signo, do símbolo e da narrativa sonora a partir de epistemologias descolonizadas da significação. - Estéticas da decolonialidade e filosofia da música
Investigações que problematizam os fundamentos filosóficos da música a partir de cosmologias dissidentes, instaurando uma ontologia relacional e insurgente da arte sonora.
Idiomas aceitos: português, espanhol e inglês.